«Do lentisco verdadeiro de Brotero (Pistacia lentiscus), que se cria pelos mattos e vallados das fazendas, se póde colher a almecega ou mastique que tem uso nas boticas, e na composição dos vernizes. Os habitantes da Ilha de Chio na Grécia são os que aproveitão esta rezina, fazendo no principio de Agosto incisões na cortiça do tronco do arbusto, sem tocar nos ramos novos, e por ellas vai distillando o suco nutritivo em pequenas lágrimas que amadurecendo formão os grãos de mastique, e se apanhão no mesmo arbusto, onde durão todo o mez; ou na terra quando tem cahido. (...)
Ainda que os botânicos dêm a este arbusto o nome de lentisco, com tudo no Algarve ninguem o conhece por tal, e sim pelo de aroeira, chamando-se lentisco ao Phyllirea angustifolia de Linneo, lentisco bastardo de Brotero. (...)
Os Romanos atribuião aos palitos da aroeira a virtude de firmar as gengivas, o que ainda tem credito entre nós; e até chamavão aos que trazião por ostentação o palito na boca, de roedores de lentisco (lentiscum arrodere). As mulheres do Imperador da Turquia, e dos seus magnates fazem grande uso do mastique para lhes conservar a alvura dos dentes, o bom hallito da boca, e a firmeza das gengivas». João Baptista da Silva Lopes, «Corografia ou memória económica, estatística e topográfica do reino do Algarve», Academia Real das Ciências de Lisboa, 1841.
Chios, a ilha no mar Egeu a menos de 10 km da costa turca (a oeste de Izmir) referida por Silva Lopes é conhecida ainda hoje não apenas por, supostamente, ter sido o berço de Homero, mas igualmente pela exportação de mastique, a resina da aroeira utilizada na confecção de inúmeros e famosos produtos gregos, turcos, egípcios, macedónios, búlgaros e demais países desta zona do globo, dando nome a uma bebida alcoólica muito apreciada, a Mastika. As «lágrimas de Chios» continuam ingrediente indispensável na gastronomia e cosmética locais, mas alguns dos produtos confeccionados com esta goma têm fama internacional, como é o caso das delícias turcas ( «Turkish Delight»).
Os venezianos e genoveses, que dominaram a ilha durante quatro séculos até esta passar em 1566 para domínio turco, foram os primeiros a comercializar o mastique. A Grécia reconquistou o domínio da ilha em 1913, quase um século depois dos terríveis massacres turcos que Eugène Delacroix, talvez o mais conhecido pintor romântico francês, imortalizou no quadro «Massacre em Chios» que pode ser apreciado no Louvre.
Cristovão Colombo, que conhecera em Chios os efeitos terapêuticos do mastique, incluiu na famosa carta de Fevereiro de 1493 para o chanceler do Tesouro de Aragão, Luis de Sant Angel, que tinha descoberto mastique no Novo Mundo, uma substância que Colombo considerava quasi uma panaceia. Na realidade, Colombo confundiu a Pistacia lentiscus com a Bursera simaruba, gumbo-limbo ou árvore da terpentina, cuja seiva os nativos reivindicavam (em linguagem gestual) possuir características terapêuticas semelhantes ao mastique.
De facto, mesmo antes de Galeno as referir, as virtudes terapêuticas da pastilha elástica da Grécia Antiga foram evidenciadas em algumas obras de referência, nomeadamente por Dioscórides.
Pedáneo Dioscórides, autor da obra cuja tradução latina, De materia medica, permaneceu uma fonte importante de informação sobre plantas medicinais até ao século XVIII, refere os poderes curativos muito diversificados do mastique (que tem origem controversa, da palavra grega para mastigar ou de uma palavra fenícia).
O mastique foi considerado durante séculos quasi o Graal da medicina que curaria até a peste negra - e de facto, embora não seja uma panaceia universal, nos últimos anos a sua acção terapêutica tem sido muito investigada. Mesmo sem a desculpa de efeitos terapêuticos o certo é que mastigar o equivalente às actuais pastilhas elásticas - resinas e gomas vegetais sortidas quando disponíveis ou mesmo pele de baleia crua, o mutak dos esquimós - é um hábito ubíquo que nos acompanha há milénios.
Muitos de nós pensariam que o hábito de mascar pastilha elástica era uma inovação firmada nos Estados Unidos por William Wrigley Jr. ou Thomas Adams em finais do século XIX e exportada para o resto do mundo no século seguinte. Na realidade, existem vestígios de «roedores» de mastiques sortidos pelo menos desde o Mesolítico, como é corroborado pelo descoberta há menos de um mês de mais uma pastilha elástica milenar, neste caso do Neolítico.
Pensa-se que esta pastilha da Idade da Pedra obtida de resina de bétula seria mastigada pelas suas qualidades antisépticas. Não só os fenóis e outros compostos que contém protegem as gengivas de infecções, como mastigar estimula a produção de saliva - o que protege os dentes (se o mastique não contiver açúcar, claro). Para além da resina de bétula, esxudações de árvores sortidas foram (e algumas continuam a ser) mascadas tal qual as pastilhas elásticas actuais. Por exemplo, os maoris da Nova Zelândia mascam kapia como os seus antepassados, pastilha elástica feita com resina da árvore kauri misturada com leite da planta puha.
Na América do Norte os índios usavam para o mesmo fim seiva de abeto, hábito que passaram aos colonos norte-americanos. A pastilha elástica moderna resulta do sucesso do produto obtido desta resina, a «State of Maine Spruce Pure Gum», comercializada pela primeira vez em 1848 por John Bacon Curtis e que doze anos depois justificava 200 empregados que asseguravam em finais do século XIX uma produção de cerca de 150 toneladas de goma pura de abeto.
Na mesma altura, nas América do Sul e Central milhares de chicleros recolhiam e processavam um látex esbranquiçado conhecido como chicle, o único legado da civilização maia que sobreviveu incólume à sua queda, e se traduz na arte de bem mascar a seiva da Sapodilla, Manilkara zapota, continuada até à data.
O chicle foi introduzido nos Estados Unidos pelo ex-presidente do México, o general Antonio Lopez de Santa Anna, que trouxe os primeiros carregamentos de chicle para tentar substituir na produção de pneus o polímero natural de cis-isopreno, cahuchu, que Charles Goodyar vulcanizara uns anos antes. As tentativas de Santa Anna de produção de borracha a partir do chicle (igualmente um politerpeno) foram infrutíferas assim como as de Thomas Adams, um fotógrafo de Long Island que conheceu o ex-ditador mexicano em 1869. Existem várias histórias sobre o que motivou Adams a pensar no chicle como material mastigável, mas é incontestável que em Fevereiro de 1871 se podia comprar a Adams' New York Gum, a precursora da Chiclets actuais, chicle rapidamente aromatizado primeiro com alcaçuz - Adams' Black Jack - depois com outros sabores. Em 1888, a pastilha Tutti-Frutti produzida por Adams começou a ser vendida em máquinas automáticas nas estações de metro de Nova Iorque.
A grande expansão do negócio das pastilhas elásticas aconteceu pela mão de um jovem ambicioso chamado William Wrigley Jr. Filho de um fabricante de sabão, Wrigley teve a ideia de oferecer fermento com o produto familiar que comercializava em 1891, o Wrigley's Scouring Soap. Rapidamente passou a vendedor de fermento, com oferta de pastilha elástica, quando descobriu ser este um produto mais vendável que o sabão. A pastilha elástica provou ser um sucesso comercial e a Wrigley, que montou a primeira campanha publicitária de uma marca comercial, rapidamente ultrapassou em vendas a companhia liderada por Adams.
Hoje em dia, que eu saiba, apenas a GleeGum comercializa pastilhas elásticas feitas de chicle e este foi substituído por polímeros de síntese, análogos em composição aos existentes nos latexes naturais, isto é, polímeros contendo apenas carbono e hidrogénio. O mercado, dominado pela Wrigley - o actual William Wrigley detinha em 2005 uma das maiores fortunas pessoais nos Estados Unidos - conheceu uma explosão após a II Guerra Mundial e não apenas nos Estados Unidos, tendo sido consumidas em 2005 cerca de 100 000 toneladas de pastilha elástica.
O problema é que 100 000 toneladas são muitas pastilhas elásticas e boa parte delas terminam os seus dias «decorando» passeios ou os sapatos dos transeuntes um pouco por todo o mundo (excepto, devido a legistação draconiana, em Singapura). Como muitos de nós sabemos por experiência própria, não é trivial remover resíduos de pastilha elástica onde quer que estes se colem. Em Inglaterra, onde o consumo de pastilha elástica está generalizado, este problema assume proporções tais que justificou a criação de um grupo de acção para o combater, o Chewing Gum Action Group. Em Julho último, o ministro irlandês do Ambiente ofereceu mesmo um milhão de euros à Universidade deste país que desenvolvesse um material de fácil remoção. Este grupo de acção e agências governamentais britânicas têm trabalhado com a indústria alimentar no sentido de obviar o problema, nomeadamente financiando investigação de novos produtos mastigáveis que não apresentem os óbices dos sucessores dos mastiques gregos.
A Revolymer, uma companhia «spin out» da Universidade de Bristol, produziu um polímero realmente revolucionário que poderá em breve resolver este problema peganhento. Tal como as pastilhas elásticas da Idade da Pedra, algumas das quais persistem após 9000 anos, os polímeros base das pastilhas elásticas - análogos às borrachas utilizadas nos pneus - são quasi indestrutíveis e certamente não são biodegradáveis.
Os polímeros desenvolvidos pela Revolymer podem ser incorporados nas pastilhas elásticas resultando num produto que mantém as características destas mas que é muito mais fácil de limpar e é (muito possivelmente) biodegradável. Como referiu Leith Penny, responsável pelo Ambiente na câmara de Westminster, estas pastilhas «limpas» serão certamente bem-vindas mas a prioridade máxima das autoridades consiste na educação do público para o que já está prevista uma campanha de sensibilização que movimentará dois milhões de euros apenas na Irlanda.
O novo polímero ainda não foi aprovado mas Roger Pettman, o director executivo da empresa, espera que tal seja conseguido antes do final do ano e prepara o lançamento do produto para 2008. Os fabricantes de pastilhas elásticas estão muito receptivos ao novo produto pelo que, se Pettman estiver certo, para o ano passear na rua será certamente mais higiénico que actualmente. Excepto talvez em Portugal, especialmente em Lisboa e nas imediações do Técnico, onde os donos dos cães das redondezas insistem em deixar os passeios públicos num estado que recomenda a locomoção de olhos pregados no chão...
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
FOI PUBLICADO O ÚLTIMO LIVRO DE EUGÉNIO LISBOA
Otília Pires Martins, teve a amabilidade de me enviar notícia da publicação, a título póstumo, do último livro de Eugénio Lisboa , Manual Pr...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Cap. 43 do livro "Bibliotecas. Uma maratona de pessoas e livros", de Abílio Guimarães, publicado pela Entrefolhos , que vou apr...
5 comentários:
Andar nalgumas ruas de Lisboa é mesmo uma aventura cheia de "presentes" de cães. Ao pé do Técnico e em muitas zonas "típicas" há muitas dessas. Dá-me ideia que os moradores dessas ruas já são meio velhotes e não há campanha de sensibilização que lá chegue.
Espero que essas pastilhas não peganhentas cheguem cá depressa. O cinzeiro do meu carro e os meus ténis agradecem :)
Já me constou que há donos desses lulus que esperam que os carros de limpeza passem para sair com as bestíolas... afinal os pequenos príncipes não podem usar passeios sujos...
Não é trivial remover...Ponha a roupa num saco de plástico no congelador, passado 1 H, retire a patilha quebradiça.
Caro Óscar:
Nem tudo dá para pôr no congelador. O cabelo, o tablier do carro, a alcatifa, as botas...
Enviar um comentário