sábado, 28 de novembro de 2009

Elogio Histórico da Razão


Texto de Voltaire de 1775 (na imagem a gravura de Goya sobre a razão):

Fez Erasmo, no século XVI, o elogio da Loucura. Vós me ordenais que vos faça o elogio da Razão. Essa Razão, com efeito, só costuma ser festejada duzentos ano após sua inimiga, e às vezes muito mais tarde; e existem nações onde ela ainda não foi vista.

Era tão desconhecida entre nós, no tempo do. druida, que nem sequer tinha nome em nossa língua. César não a levou nem à Suíça, nem a Autan, nem a Paris, que não passava então de uma aldeola de pescadores; e ele próprio quase a não conhecia.

Possuía tantas e tamanhas qualidades que a Razão não pode encontrar lugar em meio delas. Esse magnânimo insensato saiu de nosso país devastado para ir devastar o seu e para deixar-se mimosear com vinte e três punhaladas por vinte e três outros ilustres furiosos que estavam longe de emparelhar com ele.

O sicambro Clodvich, ou Clóvis, cerca de quinhentos anos depois, veio exterminar parte da nossa nação e subjugar a outra. Não se ouviu falar em razão, nem no seu exército nem nas nossas infelizes aldeias, a não ser na razão do mais forte.

Apodrecemos por muito tempo nessa horrível e aviltante barbárie, da qual as Cruzadas não nos tiraram. Foi essa, ao mesmo tempo a mais universal, a mais atroz, a mais ridícula e desgraçada das loucuras. A essas longínquas cruzadas, sucedeu a abominável loucura da guerra civil e sagrada que exterminou tanta gente da língua de oc e da língua de oil. A Razão não tinha como achar-se ali. Em Roma reinava então a Política, que tinha como ministras suas duas irmãs, a Velhacaria e a Avareza. Via-se a Ignorância, o Fanatismo, a Fúria, percorrerem sob suas ordens a Europa toda; a Pobreza lhes seguia o rastro; a Razão ocultava-se num poço, como a Verdade sua filha. Ninguém sabia onde ficava esse poço, e, se o farejassem, ali teriam descido para degolar mãe e filha.

Depois que os turcos tomaram Constantinopla, redobrando os espantosos males da Europa, dois ou três gregos, ao fugir, tombaram nesse poço, ou antes, nessa caverna, semimortos de fadiga, de fome e de medo.

A Razão recebeu-os com humanidade, deu-lhes de comer sem distinção de carnes (coisa que jamais haviam conhecido em Constantinopla). Receberam dela algumas instruções, em pequeno número: pois a Razão não é prolixa. Obrigou-os a jurar que não revelariam o local do seu retiro. Partiram, e chegaram, depois de muito andar, à corte de Carlos V e Francisco I.

Receberam-nos ali como a prestidigitadores que viessem fazer seus passes de mágica para distrair a ociosidade dos cortesãos e das damas, no intervalo de seus encontros galantes. Os ministros dignaram-se olhá-los nos momentos de folga que lhes pudessem permitir a lufa-lufa dos negócios. Chegaram até a ser acolhidos pelo imperador e pelo rei de França, que lhes lançaram um olhar de passagem, quando iam ter com suas amantes. Mas eles colheram melhor fruto nas pequenas cidades, onde encontraram alguns burgueses que ainda tinham, não se sabia como, algum vislumbre de senso comum.

Esses flébeis clarões se extinguiram em toda a Europa, entre as guerras civis que a assolaram. Duas ou três faíscas de razão não podiam aclarar o mundo no meio das tochas ardentes e das fogueiras que o fanatismo acendeu durante tantos anos. A Razão e sua filha ocultaram-se mais do que nunca.

Os discípulos de seus primeiros apóstolos suicidaram-se, com excepção de alguns que foram bastante desavisados para irem apregoar a Razão desarrazoadamente, e fora de tempo: isso lhes custou a vida, como a Sócrates; mas ninguém prestou atenção à coisa. Nada mais desagradável do que ser enforcado obscuramente. Por tanto tempo se havia a gente ocupado com noites de S. Bartolomeu, massacres da Holanda, cadafalsos da Hungria, e assassínios de reis, que não havia nem tempo, nem suficiente liberdade de espírito para pensar nos crimes miúdos e nas calamidades secretas que inundavam o mundo, de um extremo a outro.

A Razão, informada do que ocorria por alguns exilados que se haviam refugiado no seu retiro, sentiu-se tomada de compaixão, embora não passe por ser muito terna. Sua filha que é mais ousada do que ela, animou-a a que fosse ver o mundo e tratasse de curá-lo. Apareceram as duas, falaram mas encontraram tantos malvados interessados em contradizê-las, tantos imbecis a soldo desses malvados, tantos indiferentes apenas preocupados consigo mesmos e com o momento actual e que não se importavam nem com elas nem com seus inimigos, que resolveram ambas voltar muito sabiamente para o seu asilo.

Todavia, algumas sementes dos frutos que elas carregam sempre consigo, e que haviam espalhado, germinaram na terra; e até sem apodrecer.

Enfim, há algum tempo lhes deu vontade de ir em peregrinação a Roma, disfarçadas e anónimas, por medo da Inquisição. Logo de chegada, dirigiram-se ao cozinheiro do papa Ganganelli – Clemente XIV. Sabiam que era o menos ocupado cozinheiro de Roma. Pode-se até dizer que era, depois de vossos confessores, o homem mais folgado da sua profissão.

Esse homem, depois de ter servido às duas peregrinas uma refeição quase tão frugal quanto a do papa, levou-as à presença de Sua Santidade, a quem encontraram lendo os Pensamentos de Marco Aurélio. O papa reconheceu os disfarces e beijou-as cordialmente, apesar da etiqueta.

"— Minhas Senhoras, se eu pudesse imaginar que estavam neste mundo, ter-lhes-ia feito a primeira visita.”

Após os cumprimentos, trataram de negócios. Logo no dia seguinte, Ganganelli abulia a bula In coena Domini, um dos maiores monumentos da loucura humana, que por tanto tempo ultrajara a todos os potentados. No outro dia, tomou a resolução de destruir a companhia de Garasse, de Guiguard, de Garnet, de Busenbaum, de Malagrida, de Paulian, de Patouillet, de Nonnotte; e a Europa bateu palmas. No terceiro dia, diminuiu impostos de que o povo se queixava. Animou a agricultura e todas as artes; fez-se estimado de todos aqueles que passavam por inimigos de seu posto. Disseram então, em Roma, que não havia mais que uma nação e uma lei no mundo.

As duas peregrinas, atônitas e satisfeitas, despediram-se do papa, que lhes fez presente, não de agnus e de relíquias, mas de uma boa carruagem para continuarem a viajar. A Razão e a Verdade não tinham até então o hábito de andar a gosto.

Visitaram toda a Itália, e surpreenderam-se de encontrar, em vez do maquiavelismo, uma verdadeira emulação entre os príncipes e as repúblicas, desde Parma a Turim, para ver quem tornaria seus súbditos mais honrados, mais ricos e mais felizes.

Minha filha – dizia a Razão à Verdade, – creio que o vosso reinado bem poderia começar, após tão longa prisão. Alguns dos profetas que nos foram visitar no poço devem ter sido mesmo muito poderosos em palavras e obras, para assim mudarem a face da terra. Bem vês que tudo vem tarde. Era preciso passar pelas trevas da ignorância e da mentira antes de entrar em teu palácio de luz, de que foste escorraçada comigo durante tantos séculos. Acontecerá connosco O que aconteceu com a Natureza; esteve ela coberta de um véu, e toda desfigurada, durante inumeráveis séculos. Afinal chegou um Galileu, um Copérnico, um Newton, que a mostraram quase nua, fazendo os homens se enamorarem dela.

Assim conversando, chegaram a Veneza. O que consideraram mais atentamente foi um procurador de S. Marcos que segurava um grande par de tesouras, diante de uma mesa toda coberta de jarras, de bicos e de plumas negras.

Ah! – exclamou a Razão, – Deus me perdoe, lustrissimo Signor, mas creio que essa é uma das tesouras que levava para o meu poço, quando ali me refugiei com minha filha! Como a obteve Vossa Excelência, e que faz com ela?

— Lustrissima Signora – respondeu o procurador, – bem pode ser que a tesoura tenha pertencido outrora a Vossa Excelência; mas foi um chamado Fra Paolo que no-la trouxe há muito, e dela nos servimos para cortar as garras da Inquisição, que vedes espalhadas sobre esta mesa.

Essas plumas negras pertenciam a harpias que vinham comer o alimento da república; nós lhes aparamos todos os dias as unhas e a ponta do bico. Se não fora essa precaução, teriam acabado por devorar tudo; nada teria sobrado para os grandes, nem para os pregadi, nem para os cidadãos.

Se passardes pela França, talvez encontreis em Paris vosso outro par de tesouras, em poder de um ministro espanhol, que as empregava da mesma forma que nós em seu país, e que será um dia abençoado pelo género humano.

Depois de terem assistido à Ópera veneziana, partiram as duas viajantes para a Alemanha. Viram com satisfação esse país, que no tempo de Carlos Magno não passava de uma floresta imensa entrecortada de pântanos, coberto agora de cidades florescentes e tranquilas; esse país, povoado de soberanos outrora bárbaros e pobres, e agora todos polidos e magníficos; esse país, cujo sacerdócio, nos tempos antigos, só era constituído por feiticeiras, que então imolavam criaturas humanas sobre pedras grosseiramente talhadas; esse país que fora depois inundado por seu próprio sangue, para saber ao certo se a coisa era in, cum, sub, ou não; esse país que enfim acolhia ao seio três religiões inimigas, espantadas de viver pacificamente juntas.

“Louvado seja Deus! – disse a Razão. – Essa gente veio afinal a mim, à força de demência.”

Conduziram-nas à presença de uma imperatriz muito mais que sensata, pois era generosa. Tão contentes ficaram com ela as peregrinas, que não levaram em conta alguns costumes que as chocaram; mas ambas se enamoraram do imperador seu filho.

Redobrou-lhes o espanto ao chegarem à Suécia. “Como!” – diziam, – “uma revolução tão difícil e no entanto tão rápida! tão perigosa e no entanto tão pacifica! E, desde esse grande dia, nem um só dia perdido para a prática do bem, e tudo isso na idade que é tão raramente a da razão! Bem fizemos em sair de nosso esconderijo quando esse grande acontecimento enchia de admiração a Europa inteira!”

Dali, atravessaram às pressas a Polónia. “Ah! minha mãe, que contraste! – exclamou a Verdade. – Dá-me até vontade de voltar para o poço. Eis no que dá ter esmagado sempre a mais útil porção do gênero humano e tratado aos lavradores – pior do que eles tratam aos animais que os servem! Esse caos de anarquia só podia redundar em ruína: já o haviam predito claramente. Lamento um monarca virtuoso, sábio e humano; e ouso esperar que ele seja feliz, pois os outros reis começam a sê-lo, e as vossas luzes se comunicam gradualmente.

“Vamos ver – continuou ela – uma transformação mais favorável e surpreendente. Vamos a essa imensa região hiperbórea, tão bárbara há oitenta anos e hoje tão esclarecida e invencível. Vamos contemplar aquela que cumpriu o milagre de uma nova criação...” Lá acorreram, e confessaram que não lhes haviam exagerado.

Não cessavam de admirar o quanto mudara o mundo em alguns anos. Concluíram que talvez um dia o Chile e as Terras Centrais fossem o centro da civilização e do bom gosto e que se teria de ir ao pólo antárctico para aprender a viver.

Chegadas que foram à Inglaterra, disse a Verdade à sua mãe:

— Parece-me que a felicidade desta nação não é constituída como a das outras; foi mais louca, mais fanática, mais cruel e mais infeliz do que qualquer uma das que eu conheço; e eis que instituiu um governo único, no qual conservou tudo o que a monarquia tem de útil e tudo o que uma república tem de necessário. É superior na guerra, nas leis, nas artes, no comércio. Apenas a vejo embaraçada com a América setentrional, que conquistou num extremo do universo, e com as mais belas províncias da Índia, subjugadas no outro extremo. Como carregará ela esses dois fardos da sua felicidade?

— O peso é considerável – disse a Razão, – mas, desde que ela me escute um pouco, há de encontrar alavancas que o tornarão mais leve.

Afinal a Razão e a Verdade passaram pela França, onde já haviam feito algumas aparições, tendo sido dali escorraçadas. “Não vos lembrais – dizia a Verdade à sua mãe – do grande desejo que tivemos de nos estabelecer entre os franceses nos belos dias de Luís XIV? Mas as impertinentes querelas dos jesuítas e dos jansenistas nos obrigaram a fugir em seguida. Não mais nos chegam agora os apelos contínuos do povo. Ouço as aclamações de vinte milhões de homens que abençoam os Céus. Este acontecimento, dizem uns, é tanto mais jubiloso porquanto não nos custa nada essa alegria. Bradam outros: O luxo não é mais que vaidade. Os empregos acumulados, as despesas supérfluas, os lucros extraordinários, tudo isso vai ser cortado. E têm razão. Todo e qualquer novo imposto será abolido. E nisso não têm razão: pois cumpre que cada particular pague alguma coisa em proveito da felicidade geral.

As leis vão ser uniformes. Nada mais desejável, mas nada tão difícil. Vão ser distribuídos, aos indigentes que trabalham, e sobretudo aos pobres operários, os bens imensos de certos ociosos que fizeram voto de pobreza. Essa gente de mão-morta não mais terá, por sua vez, escravos de mão-morta. Não mais se verão esbirros de monges escorraçar da casa paterna órfãos reduzidos à mendicidade, para enriquecerem com os seus despojos a um convento no gozo de direitos senhoriais, que são os direitos dos antigos conquistadores. Não mais se verão famílias inteiras pedindo inutilmente esmola à porta do convento que as despoja. Praza aos Céus. Nada é mais digno de um rei. O rei da Sardenha acabou com esse abominável abuso, Queira Deus que esse abuso seja exterminado em França.

Não ouvis, minha mãe, todas essas vozes que dizem: Os casamentos de cem mil famílias úteis ao Estado não mais serão considerados concubinagens; e os filhos não mais serão declarados bastardos pela lei? A natureza, a justiça e vós, minha mãe, tudo reclama para esse assunto um sábio regulamento, que seja compatível com o repouso do Estado e com os direitos de todos os homens.

“Tornar-se-á a profissão de soldado tão digna que ninguém mais será tentado a desertar. A coisa é possível mas delicada".

“As pequenas faltas não serão punidas como grandes crimes, pois que em tudo é preciso proporção. Uma lei bárbara, obscuramente enunciada, mal interpretada não mais fará perecer nas barras de ferro e nas chamas a jovens indiscretos e imprudentes, como se tivessem assassinado os próprios pais."

Deveria ser este o primeiro axioma da justiça penal.

Não mais serão confiscados os bens de um pai de família, pois os filhos não devem morrer de fome por causa das faltas dos pais, e o rei não tem nenhuma necessidade desse miserável confisco. Maravilhoso! Isso é digno da magnanimidade do soberano.

“A tortura, inventada outrora pelos ladrões de estrada para forçar as vítimas a revelar seu tesouro, e empregada hoje em pequeno número de nações, para salvar o culpado robusto e perder o inocente fraco de corpo e de espírito, só será utilizada nos crimes de lesa-sociedade, na pessoa do chefe, e somente para conseguir a revelação dos cúmplices. Mas tais crimes jamais serão cometidos. Nada melhor. Eis os votos que ouço por toda parte, e escreverei todas essas grandes mudanças nos meus anais, eu que sou a Verdade."

Ouço ainda proferir em torno de mim, em todos os tribunais, estas palavras notáveis: Não citaremos jamais os dois poderes, pois só pode existir um: o do, rei, ou da lei, em uma monarquia; o da nação, em uma república. O poder divino é de natureza tão diferente, tão superior, que não deve ficar comprometido por uma mescla profana com as leis humanas. O infinito não se pode juntar ao finito. Gregório VII foi quem primeiro ousou chamar o infinito em seu auxílio, nas suas guerras, até então inauditas, contra Henrique IV, imperador demasiado finito; quero dizer: limitado. Por muito tempo essas guerras ensangüentaram a Europa; mas, afinal separaram essas entidades veneráveis, que nada têm em comum: e é o único meio de garantir a paz."

“Essas coisas, que proferem todos os ministros das leis, me parecem assaz fortes. Sei que não se reconhecem dois poderes nem na China, nem na Índia, nem na Pérsia, nem em Constantinopla, nem em Moscou, nem em Londres, etc... Mas fio-me em vós, minha mãe. Nada escreverei que não me seja ditado por vós.”

Respondeu-lhe a Razão:

— Bem vês, minha filha, que eu sinto mais ou menos as mesmas coisas, e muitas outras Tudo isso demanda tempo e reflexão. Sempre fiquei muito contente quando, em meio às minhas dores, consegui parte do alívio que desejava.

“Não te lembras do tempo em que quase todos os reis da terra, estando em completa paz, se divertiam em decifrar enigmas, e em que a bela rainha de Sabá ia em pessoa propor logogrifos a Salomão?”

— Sim, minha mãe; bom tempo aquele, mas não durou muito.

Pois bem – tornou a mãe, – este é infinitamente melhor; só se pensava então em mostrar um pouco de espírito; e vejo que há dez ou doze anos os europeus se vêm empenhando nas artes e virtudes que abrandam a amargura da vida. Parece que em geral se combinaram para pensar mais solidamente do que o haviam feito durante milhares de séculos. Tu, que nunca pudeste mentir, dize-me que tempo terias preferido ao presente para morar na França.

— Tenho a reputação – respondeu a filha – de gostar de dizer coisas assaz duras às pessoas entre as quais me encontro; mas confesso que só tenho a louvar o tempo presente, a despeito de tantos autores que só louvam o passado.

“Devo atestar à posteridade que foi nesta época que os homens aprenderam a garantir-se de uma doença terrível e mortal, tornando-a menos funesta na transmissão; a restituir à vida aqueles que a perdem por afogamento; a governar e desafiar ao raio; a prover ao ponto fixo que em vão se deseja do ocidente ao oriente. Muito mais se fez em moral. Ousou-se pedir justiça às leis contra leis que haviam, condenado a virtude ao suplício; e essa justiça foi algumas vezes obtida. 0usou-se, enfim, pronunciar o nome da tolerância.”

Pois bem, minha filha, gozemos destes belos dias; fiquemos por aqui, se durarem; e, se vierem tempestades, voltemos a nosso poço.

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