sexta-feira, 22 de março de 2024

REJEITAR O ÓDIO

"Os judeus de Israel, descendentes das vítimas de um apartheid
denominado ghetto, guetificam os palestinos.
Os judeus que foram humilhados, desprezados, perseguidos,
humilham, desprezam e perseguem os palestinianos.
Os judeus, que foram vítimas de uma ordem impiedosa,
impõem sua ordem impiedosa aos 
palestinianos.
Os judeus, vítimas da desumanidade,
mostram uma terrível desumanidade."

Edgar Morin, Sami Naïre e Danièle Sallenave, 2002

A frase em epígrafe, que faz parte de um artigo, com mais de vinte anos, publicado no jornal Le Monde, valeu aos seus autores um processo judicial apresentado pela Associação Franco-Israelita, alegando potenciação de racismo. O processo, que foi arquivado, desencadeou protestos de múltiplas entidades, incluindo algumas de origem judaica.

Edgar Morin, sociólogo, antropólogo e filósofo, judeu e ex-membro da Resistência Francesa, sem deixar de se pronunciar sobre a política israelo-palestiniana, publicou em 19 de Outubro de 2023, poucos dias após o ataque do Hamas, no jornal  La Repubblica, um outro artigo da mesma natureza com o título "Rejeitar o ódio". Esse artigo acaba de ser relembrado pela jornalista e escritora Alexandra Lucas Coelho, conhecedora profunda dessa política, num episódio do podcast "A beleza das pequenas coisas" e que vale muito a pena ouvir.

Dada a minha dificuldade de entender a língua italiana, para ler este último artigo socorri-me de uma tradução que se encontra online, de Luisa Rabolini, na qual fiz ligeiros cortes e adaptações para o português de Portugal.

"Os monstruosos massacres cometidos pelo Hamas contra os judeus israelitas em 7 de outubro causam-me profundo horror. Nada justifica esses ataques fanáticos, muito menos a questão do povo palestiniano, cuja justa causa é dissimulada por esses atos bárbaros. O terrorismo do Hamas ocultou e oculta para muitos o terror de um Estado que respondeu a esses impiedosos fanáticos de forma impiedosa contra dois milhões de habitantes de Gaza, causando já três mil mortes. E como Netanyahu anunciou, isso é apenas o começo.
O ódio não é novo. Mas agora está vindo de ambos os lados. Gera o delírio da culpa coletiva do povo inimigo, que conduz às piores crueldades e aos massacres, atingindo também mulheres, idosos e crianças.
A contextualização dos horrores de 7 de outubro, indispensável para qualquer entendimento, coloca-os, em primeiro lugar, na longa história do povo israelita, vítima milenar do antijudaísmo cristão, depois do antissemitismo racial que visava o seu extermínio, e cuja pátria israelita se viu por muito tempo ameaçada por Estados hostis. Israel não foi um oásis de refúgio, mas uma cidadela em guerra.
Essa história trágica criou a tragédia do povo palestiniano. Depois da Guerra da Independência de Israel (1948), o povo palestiniano foi parcialmente expulso de suas terras e acabou em campos de refugiados no Líbano, na Jordânia e na Cisjordânia, onde ainda está estacionado. Depois da Guerra dos Seis Dias de 1967, toda a Cisjordânia, chamada por Israel Judeia-Samaria, viu-se ocupada e colonizada não apenas por um Estado, mas ainda hoje por centenas de milhares de colonos israelitas.
A consequência do Holocausto, palavra que significa catástrofe, foi a Naqba, palavra palestina com o mesmo significado, que foi de facto a catástrofe da Palestina árabe. Assim como é necessário manter viva a memória dos milhões de vítimas do nazismo, também é necessário o respeito por essa memória que não pode justificar o domínio de Israel sobre o povo palestino, que é inocente em relação aos crimes de Auschwitz. A maldição de Auschwitz deve ser o privilégio que justifica toda repressão israelita?

A colonização da Cisjordânia, que começou precisamente no século da descolonização em África e na Ásia, assemelha-se em muitos aspectos àquelas em que as revoltas e as repressões multiplicaram sangrentos assassinatos de civis entre os opressores e os oprimidos. A diferença não é apenas no agravamento da colonização, mas também no conflito originário entre duas sacralizações antagónicas em relação a Jerusalém e à Palestina (...).

De facto, Israel mudou a condição judaica. A humilhação secular do judeu sem terra, submisso e medroso, deu lugar ao orgulho judaico pelas façanhas militares do povo judaico e pelos empreendimentos agrícolas dos kibutz. Os intelectuais judeus universalistas diminuíram a favor de intelectuais essencialmente sensíveis ao destino de Israel (...). A noção de "confissão israelita", uma pertença puramente religiosa, foi substituída pela noção de povo judeu (...). Esse apego radical, que deve ser compreendido, levou à justificação incondicional de todas as ações de Israel, incluindo a opressão dos palestinos. Os ocidentais, principalmente os europeus, sentindo-se culpados pelas devastações genocidas do antissemitismo, mostraram-se favoráveis à nação judaica.

Israel, filho do antissemitismo europeu e ocidental, tornou-se o posto avançado privilegiado da presença ocidental num perigoso mundo árabe. O recente pró-judaísmo (que reduziu, mas não eliminou o antigo antissemitismo) favorece Israel, enquanto ao mesmo tempo a existência de Israel despertou um imenso anti-judaísmo no mundo árabe-muçulmano (...). Israel obteve a independência graças à vitória sobre os estados árabes que tentavam aniquilá-lo pela raiz e desenvolveu uma força militar superior àquela dos estados vizinhos (...). Impôs-se um Israel imperioso, que ignora inúmeras resoluções da ONU para a criação de um Estado palestino. Houve um momento privilegiado em que Arafat e Rabin apertaram as mãos e foram assinados os acordos de Oslo, que previam os dois estados. Mas o assassinato de Rabin por um fanático judeu e o desaparecimento da esquerda israelita levaram ao domínio de uma congregação nacionalista-religiosa que visa a anexação de toda a Cisjordânia (...).

Nessas condições, é difícil ver a possibilidade de um Estado palestiniano com centenas de milhares de colonos israelitas que lhe são radicalmente hostis e é difícil imaginar que Israel retire seus assentamentos. As perspectivas são sombrias; a violência tende a intensificar-se de ambos os lados, com ataques indiscriminados e repressões em massa igualmente indiscriminadas. As verdades unilaterais triunfam, mascarando as verdades contrárias. Ódios e medos dominam os espíritos.

Não é impossível, mas é duvidoso, que uma ação conjunta das Nações Unidas e dos Estados Ocidentais e árabes possa levar a um resultado decisivo. Não é impossível que o conflito alastre, abrangendo e incendiando uma nação após outra. Há que se temer o pior.

Que pelo menos as nossas mentes possam resistir aos delírios. A nossa missão não é apenas rejeitar o ódio, mas fazer todo o possível para chegar a um início de compreensão mútua, não só entre Israel e Palestina, mas também entre os apoiantes (...) de ambos os povos, sem abandonar ao esquecimento uma causa justa."

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