Meu artigo no último As Artes entre as Letras:
Mapa Cor de Sangue é o
título do jornalista Rui Cardoso recentemente publicado pela Oficina do Livro.
O subtítulo convida à leitura: As lutas, as revoltas e as tragédias em
Portugal no tempo das Invasões Francesas. O autor retoma o tema do seu
enciclopédico livro que saiu por altura da passagem dos 200 anos daquelas
Invasões: Invasões Francesas. 200 anos. Mitos, histórias e protagonistas, com
a chancela da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2010 (houve segunda
edição em 2011). O autor ensaiou uma versão
mais reduzida e acessível da sua descrição das Invasões Francesas, que, tal
como na obra anterior, é ajudada por tabelas cronológicas.
Rui Cardoso, com formação em
Engenharia, foi editor da secção internacional do jornal Expresso e editor-executivo
da revista Courrier Internacional, tem-se revelado um excelente
divulgador da história nacional e internacional. É autor de As grandes Conspirações da História
de Portugal (Matéria Prima, 2019), Conta-me como não foi: Mitos e Mentiras
da História de Portugal (Casa das Letras, 2022) e Ucrânia: 35 pontos
fundamentais para entender a invasão russa (Oficina do Livro, 2022). Além
disso, tem obras sobre o turismo e a gastronomia nacionais: Turismo Científico
em Portugal: um Roteiro (Assírio e Alvim, 2007) e As 100 Melhores Tascas
de Portugal (Oficina do Livro, 2023), em coautoria com António Catarino, o especialista
em gastronomia da TSF). Entusiasta dos veículos todo-o-terreno, conhece o país como
poucos, sendo responsável de vários suplementos turísticos do Expresso.
Foi a sua peregrinação pelo país
que o levou a interessar-se pelas invasões das tropas napoleónicas, a última vez
em que o pais esteve ocupado por uma potência estrangeira. Quem quiser obter rapidamente
uma panorâmica desse sangrento conflito, integrado na Guerra Peninsular, que é
lembrada pelo filme Napoleão, do realizador britânico Ridley
Scott (apesar de o filme passar em branco essa parte das guerras espoletadas
por Napoleão na Europa), só tem que ler o novo livro. Houve antecedentes das
Invasões Francesas, com a Guerra das Laranjas, assim como houve uma fugaz incursão
posterior pelas Beiras, mas é costume enumerar três invasões: a primeira, em
1807, com a entrada das tropas chefiadas por Jean-Andoche Junot, que levou à
fuga da corte para o Brasil (a expressão «ficar a ver navios» vem daí) e que
terminou com a Convenção de Sintra no ano seguinte, após a chegada de reforços
ingleses, comandados por Arthur Wellesley, futuro duque de Wellington (esse
aparece no filme a comandar na decisiva batalha de Waterloo) e os confrontos da
Roliça e do Vimeiro; a segunda, em 1809, com a entrada pelo norte do país das
tropas de Nicolas Soult e a saída também pelo norte passados poucos meses; e a
terceira, em 1810, com a entrada do exército de André Massena pela Beira Alta,
que, após a batalha do Buçaco, parará diante das Linhas de Torres Vedras, e em
1811, e se retirará pelo mesmo sítio por onde tinha entrado.
O livro transmite o ambiente generalizado
de revolta popular contra os invasores, que se seguiu à aceitação inicial por
algumas elites. O país pegou em armas, mostrando que não era de brandos
costumes. O autor conta alguns episódios rocambolescos, como a salvação de Tomar
por Ângela Tamagnini, que, ao encantar o
comandante inimigo, impediu o saque da cidade, ao contrário do que se passou
noutros lados (por exemplo, o ataque a Évora foi, na primeira invasão, brutal).
O colaboracionismo com o inimigo
é uma faceta abordada no livro, que merece ser destacado, até pela referência
ao pintor Domingos Sequeira, cujo quadro Descida da Cruz foi há
pouco adquirido por uma entidade privada nacional ao possuidor estrangeiro,
depois de ter saído de Portugal em circunstâncias estranhas. Sequeira, um dos
principais pintores portugueses do século XIX, foi, de facto, colaborador dos
franceses na primeira Invasão Francesa. Disso dá indesmentível conta o seu quadro
Junot Protegendo Lisboa (1808), que teve uma legenda maior muito
encomiástica para o general invasor (que ostentava o duvidoso título de duque de
Abrantes e cuja alcunha, El Rei Junot, Raul Brandão aproveitou para
título de livro). O pintor foi condenado a oito meses de prisão pelas
autoridades portuguesas, de nada tendo valido a sua defesa de que tinha sido obrigado
a fazer a obra e tinha usado tintas corrosivas.
Ele redimiu-se ao pintar depois a Apoteose de Wellington (1811).
Haveria de aderir ao liberalismo. Curiosamente as ideias liberais chegaram em
1807 na ponta das baionetas franceses, mas só se fixariam entre nós em 1820, quando
o absolutismo, apoiado pelas armas inglesas, caiu.
Sequeira esteve longe de ser o único colaboracionista. Num tempo em alguns museus internacionais estão a discutir a devolução de obras saqueadas, convém lembrar que Junot ajudou o roubo que o naturalista francês Auguste de Saint-Hillaire realizou no Museu de Ajuda, levando muitas espécies que hoje estão no Museu de História Natural em Paris. Esse desvio foi feito com a total complacência das autoridades nacionais: o director do referido museu era Domingos Vandelli, naturalista de origem italiana, mas com uma longa carreira no país, que tinha sido lente de Química e História Natural na Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra após a Reforma Pombalina de 1772. Vandelli teria sorte semelhante à de Sequeira: foi exilado em 1810, aos 75 anos, para os Açores, onde passou seis meses na prisão, tendo-lhe valido os seus amigos da Royal Society que lhe facilitaram a sua ida para Londres, de onde só voltou em 1815 (morreu no ano seguinte).
Os itens
museológicos ainda hoje estão em Paris. Numa visita à Cidade-Luz, o futuro D. Pedro
V achou muito bem estarem lá pois isso lhe garantia uma boa preservação, em
beneficio da ciência. Ironicamente, a maior parte da colecção a que pertenciam
ardeu no grave incêndio da Faculdade de Ciências de Lisboa que ocorreu em 1978…
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