quarta-feira, 6 de março de 2024

TER OU NÃO TER LIDO UM LIVRO

Por Eugénio Lisboa

Quando tinha os meus catorze ou quinze anos, li um livro que, para sempre, me marcou. Penso, às vezes, poder dizer que a minha vida teria sido diferente, se nunca tivesse lido esse livro: LE ROUGE ET LE NOIR, de Stendhal, numa magnífica tradução de José Marinho.

Tudo nele me fascinou: desde a criação da personagem de Madame de Rênal e toda uma paisagem de personagens de uma sociedade francesa pintada com mão de mestre, até ao estilo bem descascado, ágil, contundente, herdeiro feliz de Voltaire. E uma bela história de amor, de grande beleza trágica. Stendhal tinha horror às gorduras de muita prosa então em vigor e, para dar à sua veloz pontaria, naturalidade e sobriedade, forçava-se, todas as manhãs, a ler o Código Civil.

O livro “apanhou-me” totalmente e fez, para sempre, cair a caspa que sujava a prosa que eu, por essa altura, escrevia para a gaveta. De alguma literatura gótica, eu saltava, bruscamente, para aquela pena bem afiada. A morte de Madame Rênal, uma das cenas mais sublimes de qualquer literatura, ocupa literalmente uma linha de texto, desprezando qualquer ênfase. Stendhal era um mestre para ficar, embora ignorado no seu tempo, excepto para os olhos perspicazes de Balzac.

Outro livro que muito me marcou, quase pela mesma altura, foi o romance de Sienckiewicz, QUO VADIS? Num estilo sem pathos, quase neutro, nada “interveniente”, o romancista polaco pinta-nos magistralmente as grandezas e misérias do império romano.

Uma história de amor serve de fio condutor a um desvelar de loucura e crueldade, de uma dimensão nunca vista. Os inesquecíveis diálogos entre Nero e Petrónio, em que este arrisca a vida, manipulando magistralmente o imperador, deixam marca perpétua no leitor empolgado. A morte de Petrónio é um cúmulo de beleza discreta e um anúncio de um fim de mundo. Neste romance, que se lê com sofreguidão, o adolescente leitor depara-se, pela primeira vez, com a condição humana nos seus limites de crueldade, mas também de desenfastiada elegância. Não é possível ficar imune a esta tempestade que varreu o mundo.

Outro livro, de entre os vários que me fazem pensar que eu não seria o mesmo se os não tivesse lido, está a novela de Tolstoi, A MORTE DE IVAN ILITCH. Num texto de não muitas páginas, o grande ficcionista russo mergulha intrepidamente os seus instrumentos de sondagem, num dos momentos mais dilacerantes da vida humana: aquele em que o remorso por uma vida mal vivida se alia à aproximação da morte, que vai lentamente debilitando um corpo indefeso. Numa cena que é o cúmulo da observação e da arte de escrever, Tolstoi descreve-nos o pobre juiz, devorado por um cancro, abraçado ao mujik que lhe trata da higiene, como se desejando que a forte energia que dele dimana se lhe comunicasse por osmose: literalmente, um filho nos braços da mãe, que o aleita e lhe dá segurança. Esta novela de Tolstoi, apesar da sua pequena dimensão, não desmerece, na minha opinião, das grandes construções romanescas que lhe deram fama. 

Há livros que admiramos, mas há outros que nos transformam profundamente. Estes três não foram os únicos que me deixaram dedada profunda. Há outros, não muitos, de que falarei noutro dia, se para isso me sentir inclinado. 

Eugénio Lisboa

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