terça-feira, 26 de março de 2024

A panaceia da educação ou uma jornada em loop?

Novo texto de Cátia Delgado, na continuação de dois anteriores (aqui e aqui),

O grafismo e os tons da imagem ao lado, a que facilmente atribuímos mais de meio século, parecem dissonantes da questão que nela é colocada, que julgamos perfeitamente atual: Irão os robôs ensinar os seus filhos?
 
A revolução radical da educação por via das tecnologias digitais, que está nas nossas discussões diárias, é, na verdade, há muito vaticinada, como prova este artigo da revista norte-americana dedicada à ciência e tecnologia, Popular Mechanics, num número de 1961 (pp. 152-157; 246), disponível aqui.

Ilustro o que acabo de dizer com alguns excertos que coincidem, na íntegra, com as ambições e questões em voga. Não falta, claro, a eterna crítica aos "métodos tradicionais", nem à renovada importância do professor no novo cenário educativo mediado pela tecnologia.

"A educação americana enfrenta atualmente uma revolução mecânica. O catalisador é um dispositivo infelizmente designado por “máquina de ensinar".

Na Universidade de Michigan, na primavera deste ano, três estudantes aprenderam a falar espanhol fluentemente através de uma máquina, em cerca de metade do tempo exigido pelos métodos tradicionais. 'Um dia, em breve', diz F. Rand Morton, diretor do Laboratório de Línguas da Universidade do Michigan, 'toda a aprendizagem de línguas poderá ser feita de forma semelhante'.

(...) duas vantagens principais das máquinas de ensino:
- o aluno
que as utiliza participa ativamente na sua própria instrução e pode avançar tão rapidamente quanto o seu interesse, motivação e inteligência o permitam.
- o aluno aplica instantaneamente a informação absorvida para responder a uma pergunta e tem a satisfação imediata de saber se tem razão. Isto acelera a aprendizagem, oferecendo aquilo a que os psicólogos chamam "reforço positivo imediato" ou recompensa.

Os professores são importantes?
O professor tornar-se-ia mais – e não menos – importante num sistema educativo que utilizasse máquinas de ensinar. O professor – que tem aulas em que os factos são apresentados a uma velocidade muito maior pelas máquinas – deve ter um conhecimento mais amplo e profundo da matéria programada. Este facto irá valorizar os professores com capacidades de pensamento crítico e analítico – professores que saibam ensinar e não apenas transmitir informação.

A maioria dos alunos que teve aulas com máquinas parecem achar a experiência estimulante:
´Estou a aprender mais ciência desta forma do que lendo o meu livro de ciências.´
´Tens de te esforçar mais, mas podes fazer melhor
´Nas aulas normais, aprende-se uma coisa, esquece-se e tem de se aprender outra vez. Aqui, aprende-se logo à primeira.'

O conceito de modelação do comportamento está subjacente a todo o ensino programado, e os psicólogos estão a adentrar em áreas outrora reservadas apenas aos educadores. Se os psicólogos se anteciparem à posição dos educadores, alguns padrões educativos clássicos de valores sólidos e duradouros podem ser postos em perigo. Enquanto as máquinas forem utilizadas para um ensino estritamente quantitativo – aritmética, por exemplo, e alguns aspetos da linguagem – poucos questionarão o seu valor substancial. Mas, o que dizer das disciplinas essencialmente qualitativas – literatura e arte, por exemplo?

[Segundo um perito em máquinas de ensino] ´O ensino programado pode ser aplicado de forma útil em qualquer área de aprendizagem. Os maiores campos de aplicação imediata serão na indústria – não apenas nas capacidades motoras, mas em todos os tipos de aprendizagem. (...) Provavelmente, serão necessários quatro a cinco anos para que a aprendizagem programada se estabeleça solidamente no ensino público, mas não tenho dúvidas de que assim será.'

[
Na opinião de alguns psicólogos] 'A função do professor será de custódia (...)'. 'A verdade é que, enquanto mero mecanismo de reforço, o professor está desatualizado.”
Estes comentários são pouco suscetíveis de desenvolver um sentimento caloroso entre os professores de carne e osso em relação ao ensino automático. No entanto, surpreendentemente, há pouca resistência militante às máquinas – apenas um vago desconforto e avisos de que:
- não adotemos as máquinas de ensinar como uma medida de economia e de poupança para os professores, antes de estar disponível uma boa programação.
- muitas das coisas pelas quais vivemos – valores, sentimentos, convicçõesnão podem ser programadas com exatidão

Enfim, parece que as inquietações do presente, quando se pensa na adequação ou desadequação das tecnologias à educação, têm vindo a ser, ciclicamente, retomadas nas últimas décadas, com avanços e recuos, mas sem uma determinação sólida que permita substituir a escola e o professor, e a pedagogia que acontece na relação, por plataformas sofisticadamente programadas.  

Como afirmou George Gusdorf (1963, p. 303), filósofo francês contemporâneo do escrito em análise, debruçando-se sobre a importância do papel do professor numa fase de grande progresso tecnológico, a crise da educação é, sobretudo, uma crise civilizacional, pois são incertos os seus fins e os seus valores.

Não recusando o potencial da integração das novas ferramentas vanguardistas, como a realidade aumentada ou os grandes modelos de linguagem (LLM), no ensino, se os fins e os valores do que se ensina não estiverem bem definidos, toda e qualquer investida será infundada, pois não assenta em coisa nenhuma e a nada conduz. 

Referência:
Gusdorf, G. (1963). Professores para quê. Para uma pedagogia da pedagogia. Moraes editores.

Cátia Delgado

1 comentário:

António Pires disse...

Quem tem pretensões de influenciar as políticas educativas do governo e das grandes organizações internacionais, confronta-se com o dilema:
-O professor, em relação direta com o aluno, deve ensinar o algoritmo, feito à mão, do cálculo da raiz quadrada, ou basta que o aluno use a máquina de calcular para calcular a raiz quadrada?
- O professor deve levar o aluno, através da leitura, à beleza que há em "A Relíquia", de Eça de Queirós, ou basta que o aluno, sem nunca ter lido a obra, a ache bela com base nos "pareceres" automáticos, e politicamente corretos, de uma qualquer Inteligência Artificial?
Em Portugal, não há dilemas na educação. Por exemplo, nas escolas secundárias, entende-se que o professor não deve ir além de um ensino exíguo, para que o aluno aprenda quase nada e, assim, possa ser avaliado exaustivamente, e sempre muito positivamente, com recurso, ad nauseam, às novas tecnologias, pelo professor.As novas tecnologias podem ser muito úteis enquanto ferramentas auxiliadoras do processo de ensino/ aprendizagem. Se forem usadas para retirar o professor e os alunos do centro da escola, matá-la-ão!

A NOVA LINGUAGEM DA EDUCAÇÃO E DA MEDICINA

Soube há poucos dias que não é só a linguagem educativa que tem perdido expressões que lhe são (ou eram) específicas, que lhe conferem (ou ...