sábado, 23 de março de 2024

A SALVAÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR ESTÁ FORA DO SISTEMA E É BEM-VINDA?

Alguém me falou do último programa Grande Reportagem do canal de televisão SIC Notícias. O seu título é Atenção, Escolas: que respostas para um setor do qual depende o nosso futuro e tem a assinatura de Carlos Rico, Carlos Artur Carvalho, Luís Dinis, Joaquim Gomes, Rafael Homem, António Soares e Pedro Morais. Eis as palavras que o apresentam (destaques meus).
"São praticamente diárias as notícias sobre o clima de instabilidade que se vive na escola pública, em Portugal. Alunos sem aulas meses a fio, relatórios nacionais e internacionais que apontam dificuldades nas aprendizagens e uma classe docente envelhecida e desmotivada. Na Grande Reportagem 'Atenção, Escolas' procuramos respostas para um setor do qual depende, em grande medida, o nosso futuro coletivo."

Apontam-se problemas, nada recentes, que identificamos na escola pública: instabilidade, falta de professores, dificuldades de aprendizagem e...  uma classe docente envelhecida e desmotivada. Concentro-me neste último pelo facto de ele me tocar de modo particular, em termos da investigação a que me dedico E transcrevo as intervenções dos jornalistas, os depoimentos de uma directora escolar, da representante de uma rede global com estatuto de ONG, que participa no sistema educativo, e de uma mentora dessa rede.

Antes de passar a essa transcrição, quero deixar as seguintes notas:

1. Não se veja nos discursos destes participantes as melhores intenções, que as devem ter. Não é disso que se trata, quando nos dispomos a olhar para a educação escolar; trata-se, sim, de procurarmos ir além do que nos é dado para percebermos mais profundamente.
2. Omito nomes de pessoas, escolas e organização. O que é relevante é o discurso, não quem o veicula. Na verdade, é um discurso tão comum, que não faz diferença quem o veicula.
3. Na leitura que o leitor fizer a seguir não perca de vista o título da reportagem, formulado como pergunta: "que respostas dar ao sector da educação escolar pública?".

Eis, então, a transcrição dos minutos finais da dita reportagem.

"JORNALISTA. A abertura da escola pública coloca múltiplos desafios aos agentes implicados no processo educativo. Num país com um corpo docente envelhecido, desmotivado e insuficiente onde, de acordo com a Universidade Nova de Lisboa, faltarão 34.500 professores até 2030, a introdução de elementos externos devidamente enquadrados, pode fazer a diferença. A rede (...) é um bom exemplo. Criada em 1990, nos Estados Unidos, chegou a Portugal em 2019. Trata-se de uma organização sem fins lucrativos que se propõe combater as desigualdades educativas nos 61 países onde actua.

REPRESENTANTE DA REDE. Nas comunidades em que trabalhamos que são comunidades sócio-economicamente carenciadas aquilo que vemos é aquilo que cada aluno traz para a sala de aula, uma história que é muito, muito difícil. Pedirmos a um professor que consiga resolver tudo isto sozinho, acho que é extremamente difícil. Temos de assegurar que damos a estes professores um par de mãos, um par de olhos adicional, ajudas para chegarem mais longe com cada aluno. São as mãos e os olhos dos mentores, jovens comprometidos com a causa da educação para todos que, após um intenso programa de formação, vão para escolas de contextos socioeconómicos desfavorecidos durante dois anos lectivos. A remuneração dos mentores é feita a partir de parcerias com empresas, associações empresariais, e autarquias. Em Portugal são 70, distribuídos por 48 escolas.

MENTORA (…) é uma das mentoras destacadas na Escola Básica de (…). Formada em psicologia clínica, partilha com a professora (…) as aulas de inglês do 9.º ano. A divisão de tarefas, a proximidade e a introdução de jogos e estratégias de ensino diferenciadas são os principais argumentos de um projecto que deu os primeiros passos [nessa escola] e se revelou fundamental no período da pandemia.

DIRECTORA DA ESCOLA. Foi uma excelente ajuda para a implementação das estratégias digitais. Alguém novo que vem trabalhar com uma pessoa que tinha cerca de 70 anos e, portanto, foi fundamental para dar o impulso, para ajudar nessa transição.

REPRESENTANTE DA REDE. Temos mentores que procuraram pelos seus alunos em chats de videojogos, andaram atrás deles no facebook porque a escola não tinha acesso a eles, outros que os ajudavam a aceder à escola. Temos mentores que foram dar voltas de carro e tocar à porta dos alunos, levar-lhes alguma alegria (…)

JORNALISTA. Este acompanhamento de proximidade reflecte-se não só no processo de socialização dos alunos mas também nas aprendizagens e no próprio desempenho escolar.

REPRESENTANTE DA REDE. Nós avaliamos as notas no final do 1.º período e no final do 3.º período de todos os alunos da escola. Há sempre uma redução das negativas do 1.º para o 3.º período, mas há turmas em que há uma colaboração da [rede] e esta redução é acelerada.

DIRECTORA. Dois elementos numa sala de aula com um olhar muito mais atento e muito mais personalizado conseguem ter benefícios para o sucesso desses alunos.

REPRESENTANTE DA REDE. A média em geral, ao longo destes quatro anos, é de 24% nesta aceleração da redução, mas no ano passado foi de 50,7%. Portanto, sim, damos um aumento das notas nas disciplinas em que os mentores trabalham comparativamente às turmas das mesmas escolas em que não há esta colaboração.

DIRECTORA. Sendo [os mentores] pessoas que têm uma formação superior, que estão altamente motivadas, penso que poderão completar e complementar o trabalho que um docente faz na sala de aula, nunca os substituir.

Voltando à pergunta, o que sobressai?

1. Que os professores não são capazes de exercer plenamente a sua função. São poucos, enfrentam desafios vários que não conseguem resolver por si mesmos, como lidar com características dos alunos (muito ligadas ao contexto), mas também usar tecnologias novas e metodologias dinâmicas.
2. A solução - ou uma solução que se diz dar frutos - é integrar novos actores na escola e na sala de aula. Neste caso, para ajudarem os professores a ensinar. Actores novos, dinâmicos, "altamente motivados", que dominam as tecnologias e a pedagogia tida por inovadora, que vão ao encontro dos alunos.

Portanto, usando critérios estritamente lógicos, podemos concluir o seguinte: para se superarem os problemas inerentes ao corpo docente e às condições em que trabalha, uma resposta (ou, mesmo, a resposta) é reforçar a "ajuda" prestada à escola pública de entidades que lhe são externas.

Com argumentos salvacionistas legitima-se (mais uma vez) a participação do sector privado no sector público, como se os princípios que os pautam fossem no mesmo sentido: o sentido da educação. Na verdade, não são!

E, já agora, lembro que quem tem a responsabilidade de assumir o sentido educativo da educação escolar é o sistema público de educação  (ou seja, todos os que estão nele), não o privado.

2 comentários:

Rui Ferreira disse...

Da representante da rede, da mentora e da jornalista nada registo porque ignoro as suas motivações.
Já da Diretora o assunto muda de figura. A permeabilidade à ignorância de uma grande parte dos profissionais escolares diz bem da verdadeira extensão do problema. Referir, ainda, que este modelo de gestão é propício.

Helena Damião disse...

Prezado Rui Ferreira
Prefiro pensar que directores escolares e professores que aceitam "ajudas" de entidades com "interesse na educação", os tais stakeholders, fazem-no por terem boas intenções ou, então, por ser pressionados. Não vejo que tenham delineada uma especial estratégia para tirarem benefícios para si mesmos. Já o mesmo não posso dizer dessas entidades, que, pela sua natureza, não podem deixar de ter um tal interesse. Para ultrapassar esta situação seria preciso que directores e professores pudessem estudar além do que prevalece e tivessem tempo para reflectir livremente. Sei de directores e professores que resistem às investidas destas entidades ou que, não podendo rejeitá-las (cada vez é mais difícil!), têm consciência do contexto em que se movimentam.
Mas, como disse antes, prefiro pensar... o que nada tem de racional e, até, de razoável.
Cordialmente, MHDamião

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