quarta-feira, 6 de março de 2024

"O QUE HÁ A DIZER SOBRE EDUCAÇÃO E A FORMA COMO ESTAMOS NO MUNDO"

Por Maria Helena Damião e Isaltina Martins

O jornalismo contribui para o esclarecimento da sociedade, se e quando, face a temas relevantes, difíceis e polémicos, dá a conhecer perspectivas diversas que são elaboradas sobre eles. Pode ser um esclarecimento que suscite e, até, acentue dúvidas, mas, como sabemos, num registo filosófico e científico honesto, as dúvidas existem e, se existem, precisam de ser encaradas e ponderadas.  

O Diário de Notícias, pela mão do jornalista Jorge Andrade, pode ajudar-nos a repensar o sentido da educação e, por acréscimo, da função docente, através de duas entrevistas recentes: uma de que aqui demos conta; outra a António Damásio, cujo título é “Há a substituição da educação, do tempo pessoal e de reflexão, pela diversão e entretenimento”. O seu conteúdo é manifestamente dissonante, traduzindo a falta de consenso desse sentido, num momento em que se vê (de novo!) reequacionada pelo "solucionismo tecnológico", na expressão de Evgeny Morozov.

Imagens recortadas daqui
O contexto desta última entrevista foi o seguinte:

Na sequência do seu projecto “Futuros da Educação”, a UNESCO, além de disponibilizar relatórios e outros documentos, tem promovido debates e conferências que o apresentam e esclarecem. Trata-se de um projecto que se distancia em múltiplos aspectos do projecto "Futuro da Educação e Competência 2030", da OCDE. Em mais um ciclo de conferências, que tem lugar no Instituto de Educação de Lisboa (ver aqui), um dos convidados foi este neurobiólogo. A entrevista, de que deixamos abaixo algumas passagens, antecedeu a sua intervenção com o título The new science of consciousness.

Jorge Andrade nota, a iniciar a conversa, que António Damásio esclareceu não ser “especialista em educação", o que é um bom augúrio num tempo em que a tendência é qualquer um, independentemente da sua área de formação, fazer declarações, na forma de afirmações inabaláveis, sobre educação.

Afirmou há uns anos em entrevista que “se não houver educação maciça, os seres humanos vão matar-se uns aos outros”. Associou a carência de educação ao crescimento de movimentos anti-imigração, à ascensão de partidos neonazis de nacionalismo xenófobo. Face ao panorama atual, somos levados a crer que os sistemas educativos estão a falhar?
Em parte, a resposta é um sim. Os sistemas educativos não estão a responder aos desafios que enfrentamos. A situação inclui uma transformação profunda do dia a dia que se relaciona com diversos fatores, como a aceleração do ritmo de vida, a perda de influência de sistemas religiosos que, tradicionalmente, têm funcionado como moderadoras da agressividade e da violência, a transformação do entretenimento que, no presente, é muito mais violento do que no passado. O fator que possivelmente é o mais importante prende-se com a transformação imposta pelas redes sociais.

(...) Deparamo-nos atualmente com crianças e jovens absortos horas a fio nas redes sociais. De certa forma, estas redes entram na mente das crianças, monopolizam-lhes a atenção, formam-lhes juízos. É aí que encontra os perigos a que se refere?
Um dos fatores que contribui para o aumento da violência prende-se com a desregulação que resulta das redes sociais. Hoje, há a substituição da educação, do tempo pessoal e de reflexão, pela diversão e entretenimento. Há o confronto constante com a ação, por vezes violenta, como substituta da reflexão e da calma. Temos uma imagem permanente de violência e de ação, com a exibição de conflitos e incompatibilidades, em vez de propostas de soluções. Atualmente, há a exaustão frente ao conflito e a vulgarização do mesmo. É muito difícil as pessoas terem tempo para pensar soluções alternativas quando tudo aquilo que lhes é oferecido é violência e confronto.
Face ao exposto, de que tipo de educação precisamos? Ou, se preferir, de que modelo de escola precisamos?
Aquilo que antevejo (...) é uma educação que tenha um bom princípio do ponto de vista da realidade (...) termos uma ideia tão aproximada do real quanto possível, daquilo que é a componente física que nos rodeia e daquilo que somos do ponto de vista biológico e do ponto de vista humano nas interações com outros seres humanos. Claro que há o risco de uma educação fundada nesses elementos ser demasiado científica e, por isso, parecer menos humana. A única forma que vejo de compensar esta realidade é com aquilo que, de uma forma muito genérica, se descreve como artes e humanidades. Ser educado sem o respeito pela música, artes visuais, literatura, impõe um empobrecimento extraordinário (...). Um ser humano com gravidade e profundidade tem de apreciar o que são os outros seres humanos, os seus problemas e aquilo de que são capazes de conceber em matéria de invenção, de descoberta, de criação de objetos de arte (...). É essa reunião de elementos que, julgo, terá sido sempre o ideal educativo. Os ideais greco-romanos de educação podem ser perfeitamente adaptados ao momento atual, sem desmerecer nessa adaptação tudo aquilo que a técnica moderna nos oferece (...). Uma forma de elevação que não seja aquela que se vive na internet, nas redes sociais (...). Tudo funciona desta forma desligada e desequilibrada.
Tem estado a falar das redes sociais. Gostaria de o ouvir a propósito da Inteligência Artificial. Estaremos a sobrestimar a Inteligência Artificial?
(...) há uma IA que vem da nossa inteligência natural. A IA é inventada por seres humanos, mas está a assumir características muito particulares que se prendem em especial com o extraordinário êxito (...) dos denominados large language models (...). Transformaram-se em coisas muito populares, através de sistemas como o ChatGPT, que permitem, de uma forma muito poderosa, inventar histórias, responder a perguntas variadas e gerar imagens. Funcionam tanto verbalmente como do ponto de vista imagético e visual. Em si mesmo, carregam um problema, o de dar a impressão de que os sistemas artificiais são capazes de fazer todas estas coisas de uma forma única, nunca utilizada por seres humanos. Isso é falso.
Porquê?
O que acontece é que estes sistemas são, no fundo, baseados em sistemas humanos porque a informação e a descoberta da forma como se podem fazer estas operações que parecem abstratas é resolvida através de uma massiva análise de produtos humanos. Para construir estas respostas, a máquina recorre a milhares de milhões de textos inseridos na internet (...) e que a determinado ponto constroem frases simpaticamente compostas e que fazem sentido. A ideia de que aquilo que ali está é puramente artificial, é falsa (...).
Sim, mas são sistemas com a capacidade de aprendizagem e que dão neste momento os primeiros passos.
Há o problema do caminho futuro destes sistemas (...). No caso das vantagens, se forem bem controlados podem aumentar o poder prático da inteligência humana, o que não me parece que seja desfavorável, embora os problemas que estão ligados ao seu uso no que respeita ao desemprego sejam extraordinários (...). Há outro risco: à medida que a autonomia destes sistemas cresce, há a possibilidade de, chegados a um certo ponto, terem uma autonomia completa. Aí, em vez de estarem sob o controlo humano, benévolo e benevolente, estarão sob um controlo autónomo e farão o que entenderem. As opiniões estão muito divididas sobre se isso é um problema real ou um problema que traduz um cenário improvável (...).
Na palestra que vai proferir deter-se-á na questão da consciência versus consciousness, aquilo que na língua portuguesa podemos definir como a consciência da nossa existência interna e externa. São palavras que, per si, se revelam traiçoeiras.
(...). O problema é que na língua portuguesa dizemos “consciência” e estamos a referir-nos não só ao inglês consciousness como também a conscience (...). Conscience prende-se com aspetos puramente morais, relacionados com o comportamento humano, com valores corretos ou incorretos, com a verdade e a mentira. Já a consciência no sentido que nos traz a língua inglesa de consciousness, prende-se com o facto de sermos capazes de reconhecer aquilo que é a nossa própria identidade, o nosso self, e que isso nos faculta a entrada em todo o mundo mental e real que nos rodeia. A consciência, nesse sentido, o de consciousness, é essencial para sermos seres humanos com o sentido daquilo que está à sua volta e com a possibilidade de valorizar as coisas. Não se pode ter consciência no sentido moral sem se ter consciência do sentido do reconhecimento de nós mesmos. Na palestra vou afirmar que tudo aquilo que há a dizer sobre educação e a forma de como estamos no mundo, só faz sentido depois de sabermos que aqui estamos e que esta passagem se deve à consciousness.

2 comentários:

Anónimo disse...

O mundo é feito de mudança.
A rapidez com que uma simples máquina de calcular faz cálculos complexos não pode ser igualada por um ser humano desarmado. Mas será que podemos dizer que a máquina sabe o que está a fazer, ou que tem consciência da sua existência? Não!
Tal como o martelo pode ser visto como um prolongamento da mão e do braço, que nos permite aperfeiçoar a execução de certas tarefas físicas, também a IA pode ajudar-nos na execução alguns trabalhos intelectuais, mas para ensinar procedimentos humanos complexos, físicos ou intelectuais, nada se compara com um
professor, posto que este se baseia na própria experiência humana.

Carlos Ricardo Soares disse...

A educação tornou-se um assunto demasiado importante e demasiado sério, a par do ensino, para ser deixada ao acaso e à sorte das ondas e das correntes e dos interesses. Ainda há poucas décadas, em Portugal, não havia educação, nem ensino, propriamente dito. A maioria das pessoas não ia a uma escola. A única escola, quando disponível, era a catequese papagueada por catequistas sem formação e a igreja que, ainda por cima, falava latim. As comarcas contavam ainda com um tribunal que muito poucos sabiam como funcionava e que persistia em fazer-se representar por figuras e simbologias do tempo dos romanos. E isto era em Portugal, quatrocentos anos depois de terem dado voltas ao mundo sem consumirem um côvado de combustível.
Sem consciência das realidades somos cegos ou, o que é pior, sonâmbulos perigosos e irresponsáveis. A educação e o ensino não são fins em si mesmos e é mais do que tempo para os especialistas em educação e ensino dizerem de sua justiça. O que faz com que muitas pessoas, que não especialistas num assunto importante para elas, questionem e falem dele e tomem posição, não raro tem a ver com a falta ou o vazio de soluções.
Aconteceu isso com a metafísica e as teodiceias e as teologias, mas foi preciso construir catedrais para dinamizar a economia e impulsionar o desenvolvimento em geral. É fundamental sobretudo dar sentido ao que se faz, se produz e se constrói. É para isso que também serve a educação e temos visto que, de vários modos, mais ou menos imprevistos e incontroláveis nas suas causas, fomos traídos pelo rumo que o progresso tomou.
O empoderamento garboso e triunfante de determinadas elites financeiras e políticas, e mesmo científicas e culturais, como se tudo a elas e só a elas se devesse, excepto as externalidades negativas, era aquilo de que não precisávamos mas que, se o tivéssemos previsto, nem por isso teríamos podido evitar.
Qualquer rumo, qualquer projecto, na educação e na política, em geral, começa com objectivos e propósitos cujos pressupostos de realização e de sucesso, em grande parte, são uma incógnita que se projecta num futuro incerto e ameaçador. Por mais que o saibamos, não temos como evitar esta exposição aos efeitos imprevisíveis e incontroláveis.
De um momento em que a educação é projectada em contextos de paz, de benevolência e entusiasmo, para dinâmicas e fins pacíficos, depressa se cai numa situação brutal de guerra, que nos faz sentir ingénuos e desprevenidos, ou incautos, culpados, ainda que arrependidos, de o termos sido, de termos confiado de mais na bondade e na alegria de construir pontes e edifícios e paraísos, que outros se comprazem em destruir e conspurcar. E isto é uma lição, mas também é um choque e uma condição que determina mudanças de rumo. É que, nem a educação, nem a economia, nem a política, nem a vida em geral, se deixam conduzir dócil e garantidamente, a partir de modelos, de verdades prévias, de futuros antecipados, e de boas intenções. Mesmo aqueles objectivos que temos por mais valiosos e justificáveis do esforço construtivo da sociedade, sem que o queiramos, podem ter que ser substituídos e adaptados a esforços bélicos, armamentistas e militares, numa tentativa de, pelo menos, salvar o que for possível daquilo que se andou a construir com tanto labor e sacrifício.
O mundo ilusório deixou de o ser apenas para os poetas. Até para estes as prioridades passam a ser outras, no campo de batalha os jovens precisam de saber trabalhar e sonhar com armas tecnológicas e com sistemas de comunicação e isso não se aprende numa recruta de três meses, como era há uns anos. É uma ironia trágica que os jogos de guerra das consolas das crianças, que tanto criticamos, se tenham tornado uma mais valia, como se já estivessem a antecipar o futuro.
A educação e o ensino serão aquilo que desejamos, se as circunstâncias e as condições o permitirem e nos deixarem. Esta consciência da realidade ajudará a ver as coisas mais em função daquilo que devem ser, protegendo-nos da frustração e do desaire de não serem como desejamos.

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Sem mais, reproduzo as fotografias e as palavras que compõem o último postal de Natal do Biólogo Jorge Paiva, Professor e Investigador na Un...