sábado, 9 de março de 2024

Literatura e formação humana

Por João Boavida

Há dois dias, num depoimento sobre António Pedro de Vasconcelos, Maria Filomena Mónica, que era sua amiga desde os anos sessenta de gloriosa memória, veio recordar, entre outras coisas desse tempo, como os amigos costumavam encontrar-se nos cafés e nas casas uns dos outros, os muitos livros que liam, e como os discutiam, os trocavam, os louvavam ou criticavam. Era de facto um tempo de grandes leitores. 
 
Nem todos os jovens liam assim tanta literatura, é certo, mas a leitura de livros estava no centro e quem não se contentasse com uma formação de superfície ou somente técnica ou academicamente apressada tinha que usar «com mão diurna e noturna», segundo dizia Alexandre Herculano, as grandes obras da literatura universal. 
 
Talvez que, pensei depois, sem essas muitas leituras, e essa paixão literária, nunca António Pedro de Vasconcelos teria feito os filmes que tiveram tanto sucesso em Portugal e tão amados foram pelo público. Lembrei-me disto porque ao ler o artigo do Prof. Eugénio Lisboa, grande amante de Stendhal, fiquei a saber, segundo o mesmo depoimento, que A. P. de Vasconcelos era também um apaixonado de Stendhal.

Um dos aspetos que mais aflige na educação da juventude de hoje é a ausência de leitura – de boa leitura. Já não falo do amor dos livros que nunca chegarão a ter mas, pior do que isso, do desinteresse pelas grandes obras se não forem iniciados nelas nem criarem a apetência e a exigência necessárias. O que a médio e longo prazo é dramático porque a dimensão humana e a sua complexidade, profundidade, sensibilidade, enfim, o melhor que a natureza humana tem passa-lhes ao lado deixando-as pessoas mais pobres, mais superficiais e mais indefesas contra todos os agentes deformadores e alienantes que não parecem diminuir, antes pelo contrário.

Sem darem por isso estão a deitar fora a imensa riqueza que a cultura humana foi acumulando ao longo de milénios. Mas não só, também não usufruem o prazer que dá a leitura de uma grande obra. Acresce, e era sobre isto que incidia o artigo do Prof. Eugénio Lisboa, sempre literariamente muito rico, há obras que nos tocam de tal maneira que nos transformam, nos engrandecem, nos fazem subir patamares na compreensão do mundo e de nós mesmos e que, só por nós, nunca seríamos capazes de subir. Um bom romance pode ser muito mais formativo que muitos tratados, e fazer de um jovem, às vezes ainda estouvado e irrefletido, um ser maduro, consciente e mais centrado em relação ao mundo, aos problemas e às pessoas que o cercam; além de muito mais inteligente.

Penso que no atual ensino do Português há uma debilidade muito grande ao nível da formação e da capacidade de usufruição literárias. É provavelmente o maior problema de tudo isto. E se o aluno não tiver em casa – e geralmente não tem - quem possa compensar essa deficiência literária fica para toda a vida sem o gosto de ler e sem a consciência do que está a perder.

E o problema tende a agravar-se, não só pela falsa noção de modernidade e de capacidade com que as novas tecnologias enganam pais e filhos, mas também porque os professores mais jovens correm o perigo de já virem a sofrer do mesmo, incapazes, portanto, de criar nos alunos o gosto de ler, porque eles próprios não o têm e nem sequer têm consciência da falta que isso lhes faz.

Ao contrário do que possa pensar-se o problema podia resolver-se com uma certa facilidade. Bastava que a formação dos professores de português desse mais atenção à formação do gosto literário, à criação de exigências estéticas e passasse a avaliar os professores em função disso. Se a formação exigisse competências nesse domínio específico e criasse formas de avaliação que especificamente as avaliassem, em pouco tempo as coisas começavam a melhorar. Seria um contributo multiplicador para a formação dos jovens, a todos os níveis, mas não me parece que haja, na esfera política, quem compreenda isto.

João Boavida

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