Meu artigo no mais recente Jornal de Letras:
Ao ler, com imenso gosto, o último livro de Valter Hugo Mãe – Deus na
Escuridão – não pude deixar de reparar no uso do espelho como um recurso
literário. Quando, no ápice de livro, se consuma o momento de transgressão, o personagem-narrador,
Felicíssimo, rapaz pobre da ilha da Madeira, diz: «Pensei que ia adentro do
espelho. Para sempre. Largando a carne toda e a fome, largando as terras, largando
todas as veredas e as águas do nosso mar. Eu seria a figura calada do outro
lado, a que move sem emitir. Apenas imitando, como um servo sem vontade, o que
alguém verdadeiramente estivesse a fazer.»
O leitor já sabia da existência de um espelho onde o pai de Felicíssimo e
de Pouquinho (o herói do livro: o nome diz tudo!), no seu casebre dos Pardieiros,
no Buraco da Caldeira, numa agreste encosta entre o céu e o mar, passava horas ensimesmado.
Os jovens Felicíssimo e um seu amigo estavam também eles fascinados pelo
espelho, esse objecto mágico que devolve a realidade na perfeição, trocando
apenas a esquerda com a direita: «Éramos dois garotos a cansar o espelho. E
dizíamos: e se víssemos um monstro atrás. Um que não estivesse no quarto, mas
que aparecesse no espelho para nos matar. E se nos matasse no espelho, mesmo
que não nos matasse aqui no quarto. Já pensaste que poderia haver uma morte daqueles
que estão no vidro e depois, sempre que chegássemos diante de um espelho, não
haveria ali ninguém, porque eles teriam morrido em definitivo. Nenhuma imagem. Nada.
Eu acho que seria bom que não houvesse ninguém do outro lado do espelho. Não gosto
que o vidro fique a imitar o que faço. (…) Tudo neste vidro é um furto.»
Somos neste texto remetidos para o fantástico livro do clérigo, fotógrafo e
matemático inglês Lewis Carrol, que escreveu Alice do Outro Lado do Espelho (1871),
uma sequela da Alice no Pais das Maravilhas (1865). Nessa obra Alice
encontra personagens como a Rainha Vermelha e dois gordinhos iguais, o Tweedledum
e o Twedledee, uma antecipação dos Dupont e Dupond dos livros do Tintim (Valter
Hugo Mãe tem também uma dupla de personagens, mas femininos e magríssimas, as
Repetidas, que servem na casa de uma senhora rica, a Baronesa do Capitão). É
curioso que o título original do segundo livro de Alice seja Through the
Looking-Glass, usando a palavra arcaica looking-glass em vez de mirror,
semelhante ao francês miroir. Este moderno termo remete etimologicamente
para o verbo latino mirare, ver fixamente, olhar com espanto. O espelho
é, de facto, um vidro para olhar com espanto, tal como faziam o Felicíssimo e o seu pai. O
termo «espelho» em português também derivou do latim, mas de speculam, outra
palavra para olhar. Usamos hoje o vocábulo «especulação» para nos referirmos à
formulação de suposições. Era o que o pai de Felicíssimo fazia diante do
espelho: pensava na vida, escrutinando imaginárias saídas da sua sina. Reflectia,
conjugando um verbo que ainda remete para espelho: as leis da óptica que se
aplicam ao espelho são as da reflexão (o ângulo incidente é igual ao ângulo de
reflexão), mas a vida é muito mais complicada do que a física.
A história do espelho da literatura vai muito para além de Lewis Carrol. Se
o artefacto já aparece na Pré-história, é da Antiguidade a tão glosada lenda de
Narciso, o rapaz que morre por se contemplar demasiado na superfície das águas,
fadado por uma maldição. A história foi contada por Ovídio nas Metamorfoses e
por vários outros autores. Mas o espelho aparece também no Ricardo II de
Shakespeare (onde o rei quebra um em mil pedaços), na Branca de Neve dos
irmãos Grimm (onde o espelho diz a verdade), no Drácula de Bram Stoker (onde uma
imagem não aparece no espelho) e em Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde,
onde Dorian destrói o espelho, imitando Ricardo II, ao comparar o que ele lhe devolvia
com o seu antigo retrato na parede.
O espelho da casa dos Padeiros, imaginada – ou talvez não – por Valter Hugo
Mãe, também se partiu. Sabemos da quebra do vidro, logo depois do tal momento
culminante. O pai tinha perguntado ao filho pelo espelho, uma vez que voltou de
«fabricar» a terra. E Felicíssimo respondeu que tinha sido posto no lixo, após
quebra acidental. Não fora enterrado porque «as almas dos espelhos (…) não eram
à boca de devorador algum. Esvaneciam sem mordedura.» Diz a superstição que os espelhos
quebrados dão sete anos de azar. E essa quebra do espelho, pode literariamente,
ser vista como um mau prenúncio.
O espelho está omnipresente na poesia. A poeta norte-americana Sylvia Plath
(que, relembremos, se suicidou), escreveu, identificando-se com o espelho: «Sou
prata e exacta. Não tenho preconceitos. / Tudo o que vejo imediatamente engulo./
Tal como é, não misturado pelo amor ou pela aversão.» E adiante: «Em mim
mergulhou como uma rapariga e em mim como uma mulher idosa.» O espelho dá-nos
conta do inexorável decorrer do tempo. Como escreve num poema a brasileira Cecília
Meireles: «Eu não dei por esta mudança,/ tão simples, tão certa, tão fácil; / -
Em que espelho ficou perdida/ a minha face?»
No livro História do Espelho a francesa Sabine Melchior-Bonnet (Orfeu
Negro, 2016) encontramos uma história não só científico-tecnológica, mas também
cultural do espelho, que passa por Veneza e por Versalhes. Os espelhos surgiram,
claro, primeiro nas casas abastadas antes de chegar aos Pardieiros: o inglês
Henry James, conta em O Calafrio a história de uma rapariga de
província, do final do século XIX, que nunca se tinha visto ao espelho antes de
chegar à casa para onde foi contratada. E há ainda uma história religiosa do
espelho, que ajuda a interiorizar a tese de Valter Hugo Mãe de que Deus é como
as mães, nunca nos abandona. Deus fez o homem à sua imagem e semelhança: terá
usado um espelho?
O pintor norte-americano David Hockney, citado por Melchior-Bonnet, disse que
«se olharmos para a vida sem um espelho, só olhamos para metade». Ao olhar para
o lugar dos Pardieiros, usando um espelho no enredo, o autor de Deus na
Escuridão está afinal a cumprir a função da literatura: ser um
caleidoscópio da vida.
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