sábado, 28 de janeiro de 2023

Reflexões sobre uma palestra acerca de química e literatura realizada para duas turmas de humanidades


Dei uma palestra sobre química e literatura numa escola e pedi aos alunos e aos seus professores (duas turmas do 12º ano de humanidades) que escrevessem, de forma anónima, num papel branco que lhes dei, os livros que estavam a ler, ou sobre os quais queriam que eu falasse, ou mesmo que indicassem obras por outra razão. Pretendia escrever num quadro os resultados, mas, como era numa biblioteca não havia um disponível. Assim, comentei alguns livros, tal como o facto de não conhecer vários deles, mas acabei por não os usar tanto como queria. Vou tentar fazê-lo agora. 

Dos quarenta e dois papéis que recebi, quase todos indicavam livros diferentes, com poucas exceções (o que já é bastante interessante): a maior quantidade de repetições correspondeu a três pessoas que referiram o “Orgulho e preconceito” da Jane Austen. Quatro pessoas escreveram “Primo Levi”, mas só duas indicaram livros: “Se isto é um homem” e “Assim foi Auschwitz”.  E, finalmente, duas pessoas referiram “Os Filhos da droga” - uma destas pessoas escreveu ter sido “o único livro que leu até ao fim”. Curiosamente, era algo sobre o qual já estava a pensar falar. Podemos não ler até ao fim, saltar páginas, voltar atrás, não ler de todo, não concordar com o que está escrito, duvidar ou corrigir, ver os filmes, indagar sobre as vidas dos autores e as sociedades em que eles viveram, ler os resumos e comentários, mas … se quisermos mesmo perceber o livro, e ter a experiência da obra, temos de ler o original. Comentei, em geral, que os livros revelam as sociedades do tempo em que foram escritos e, claro, os sentimentos das pessoas, e que tudo isso está relacionado com a química. No caso particular de Primo Levi, temos outras coisa: este foi químico e muitos dos seus livros revelam isso, em particular será essa atividade que lhe vai salvar a vida em Auschwitz.   

Deste conjunto de mais de quarenta livros, vinte e seis eu já tinha lido ou folheado (apresentados aqui sem qualquer ordem): “As velas ardem até ao fim” de Sándor Márai (comentei este livro, mas não tenho aqui tempo para referir tudo), “Veronika decide morrer” e “O Alquimista” de Paulo Coelho, “O triunfo dos porcos” de George Orwell, “Fahrenheit 451” de Ray Badbury (este também comentei, mas apenas sobre o título que é a temperatura a que o papel arde espontaneamente, que em Celcius seria cerca de duzentos graus) e “O banqueiro anarquista” de Fernando Pessoa. No livro “As intermitências da morte” comentei como a literatura nos ajuda a perceber a vida e  como a imortalidade poderia ser uma maldição (nesse contexto, acabei por referir os livros de vampiros e uma aluna referiu a série “Crepúsculo”) e “O memorial do convento“ (que era o único livro que era referido na palestra), de José Saramago. Achei interessante referirem “O principezinho” de Antoine de Saint-Exupéry, estando ainda por cima o papel muito amarfanhado (pensei logo numa explicação - uma das coisas que comentei foi exatamente essa nossa apetência por narrativas), a “Odisseia” de Homero e “O perfume” de Patrick Süskind foram também referidos e são dois livros que envolvem química como referi em “Jardins de Cristais”. Foram também indicados “Mulherzinhas” de Luisa May Alcott, “O grande Gatsby” de Scott Fitzgerald, “O amor de perdição” de Camilo Castelo Branco (este bastante comentado em “Jardins de Cristais”, mas a propósito deste livro referi a questão dos audiobooks – há uma versão completa na Librivox - e outras formas de “ler”, até por haver um aluno que disse não gostar de ler). Finalmente, foram indicados “A crónica dos bons malandros” de Mário Zambujal e “O pintor debaixo do lava-loiça” de Afonso Cruz. 

Como sempre me acontece nestes casos (imagino que seja sempre assim, pois é impossível ler tudo o que se publica), havia livros que eu não conhecia, neste caso foram quase metade, dezassete: “O telefone preto & outras histórias” com quinze contos fantásticos e de terror de Joe Hill (diz a Internet), “O psicopata mora ao lado” de uma autora neurologista, Ana Beatriz Barbosa Silva (diz também a Internet), “O Assassinato de Sócrates” de Marcos Chicot, “The Spanish love deception” de Elena Armas, “O Vendedor de passados” de José Eduardo Agualusa (este livro conhecia, mas por acaso nunca o folheei). Houve uma pessoa que indicou dois livros: “Viver depois de ti” de Jojo Moyes e “A arte subtil de Saber dizer que se f*da” de  Mark Manson. Continuando, referiram o “O Espião Perfeito - Richard Sorge: o Melhor Agente Secreto de Estaline” de Owen Matthews, “A distância entre nós” de Mikki Daughtry, Rachel Lippincott e Tobias Iaconis, “Como se fôssemos vilões” de  M. L. Rio, “A devoção do suspeito X” de Keigo Higashino, “A Minha vida é um filme” de Paula Pimenta, “Outros jeitos de usar a boca” de Rupi Kaur, livro de poemas sobre a sobrevivência, a experiência de violência, o abuso, o amor, a perda e a feminilidade (diz a Internet) e “Um Gato em Tóquio” de Nick Bradley. Foram também referidos “Nick e Charlie” de Alice Oseman e “Vermelho, Branco e Sangue Azul” de Casey McQuiston que envolvem relações amorosas entre homens. Finalmente, referiram “Estoico todos os dias : 366 reflexões sobre sabedoria, perseverança e arte de viver”, de Ryan Holiday e Stephen Hanselman, livro de pérolas inspiradores de Séneca, Epicteto e Marco Aurélio e “As 48 leis do poder” de Robert Greene e Joost Elffers. Trata-se em boa parte de novidades e de best-sellers, tratando uma parte de temas complexos, além de alguns livros de autoajuda ou entendimento do mundo (embora toda a literatura acabe por tratar desse aspeto). 

Em qualquer dos casos estive na presença de uma amostra de pessoas que leem e que têm com certeza opiniões sobre o mundo. Acho que não nos podemos queixar. Fiquei bastante interessado em “A distância entre nós” que trata de um romance entre duas pessoas com fibrose cística. Seria interessante, penso eu, perceber como a evolução da ciência melhorou a qualidade de vida destas pessoas e modificou os seus quotidianos. 

Não vou falar muito da palestra que constava de algumas reflexões sobre as narrativas e a ciência e a tecnologia, em particular as de natureza química. Começava com um livro que estou a ler sobre as mulheres na ciência, que, não sendo de ficção, começa de uma forma narrativa bastante intimista e de como isso é eficaz. Seguia depois para o exemplo do "Fiel Jardineiro" de John le Carré (que um aluno conhecia) e que servia para discutir as tensões entre a realidade e a ficção, assim com a evolução dos testes clínicos de moléculas usadas como medicamentos. Comentava também os Lusíadas de Camões e as moléculas associadas. Seguia depois para os aspetos tecnológicos e químicos no século XIX e XX e a sua relação com os livros de Eça de Queirós apresentados nas aulas de Português (Os "Maias" e a "Ilustre Casa de Ramires"). Referia alguns aspetos de "A tragédia da Rua das Flores" e do espírito crítico que devemos ter ao ler e terminava com dois livros de Saramago ("O memorial do Convento" e "O ano da morte de Ricardo Reis").  

Li há pouco tempo que "tudo é estágio". Sim, eu considero que também aprendi bastante com esta palestra.

2 comentários:

Manuel M Pinto disse...

O livro "Crónica dos bons malandros" é da autoria de Mário Zambujal.

Anónimo disse...

Obrigado. Foi um lapso, vou corrigir.

CONTRA A HEGEMONIA DA "NOVA NARRATIVA" DA "EDUCAÇÃO DO FUTURO", O ELOGIO DA ESCOLA, O ELOGIO DO PROFESSOR

Para compreender – e enfrentar – discursos como o que aqui reproduzimos , da lavra da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Ec...