quarta-feira, 25 de novembro de 2020

ANTÓNIO DAMÁSIO: DO SENTIR AO SABER


Meu artigo no último JL:

António Damásio (Lisboa, 1944), professor de Neurociências na Universidade do Sul da Califórnia, em Los Angeles, onde dirige o Instituto do Cérebro e da Criatividade, é, provavelmente, o mais célebre dos cientistas portugueses contemporâneos. Não sei por que surgem outros nomes quando, por vezes de forma descuidada, se fala da possibilidade de um novo Nobel português. Damásio é um produto da escola de Neurologia de Lisboa, que António Egas Moniz, o único Nobel português em ciências, deixou. Além de ser um dos mais eminentes neurocientistas mundiais, ele é autor de livros que comunicam ideias intrincadas das Neurociências a um público não especialista, sendo, através de várias traduções, lido avidamente em todo o globo.

Acaba de sair na Temas e Debates - Círculo de Leitores o seu sexto livro de Neurociências para todos: Sentir & Saber. A Caminho da Consciência. Os anteriores foram: O Erro de Descartes: Emoção, razão e cérebro humano (Europa-América, 1995; edição revista e actualizada: Temas e Debates, 2011), um best-seller traduzido em 20 línguas; O Sentimento de Si. O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência (Europa-América, 2000; edição revista e atualizada: Temas e Debates, 2013); Ao Encontro de Espinosa: As emoções sociais e a neurologia do sentir (Europa-América, 2003; edição revista e actualizada: Temas e Debates, 2012); O Livro da Consciência: A construção do cérebro consciente (idem, 2010); e A Estranha Ordem das Coisas: A vida, os sentimentos e as culturas humanas (idem, 2017). O autor produziu outros livros: o seu primeiro foi a tese de doutoramento em Medicina que defendeu em 1974 na Universidade de Lisboa: Perturbações neurológicas da linguagem e de outras funções simbólicas. E um outro livro técnico que publicou antes de emigrar em 1975 para os Estados Unidos e se tornar famoso foi Parkinsonismo (Buchholz, 1974). E escreveu, mais recentemente, prefácios sobre temas inesperados: Mourinho: Porquê tantas Vitórias? de Bruno Oliveira et al. (Gradiva, 2006) e, com a sua esposa,Hanna (a quem o novo livro é dedicado, tal como outros anteriores), Snu e a Vida Privada com Sá Carneiro, de Cândida Pinto (D. Quixote, 2011).

O trabalho de investigação de Damásio tem incidido no estudo do cérebro, dos sentimentos (como a dor e o prazer) e do comportamento humano. Analisou o comportamento de centenas de doentes com lesões no córtex pré-frontal, concluindo que havia curiosas mudanças na conduta social. Interessou-se por faculdades do cérebro como a memória e a linguagem. Em O Erro de Descartes contrariou a tese cartesiana da separação do corpo e da alma (mente). Procurou ligar as emoções e sentimentos com o raciocínio ao defender que o sistema límbico (parte do cérebro que controla as emoções e acções básicas) e o neocórtex (que diz respeito ao raciocínio) estão intimamente relacionados, funcionando em conjunto. Para Damásio, "toda e qualquer expressão racional está baseada em emoções". Em O Sentimento de Si continuou o seu caminho em direcção à compreensão da consciência, esse “santo dos santos” do humano. Em Ao Encontro de Espinosa chamou à atenção para o facto de o grande filósofo holandês, de origem lusa, ter sustentado o primado dos afectos. No Livro da Consciência (no original How Self Makes Mind) tratou da magna questão da origem da consciência e, no seu livro anterior, A Estranha Ordem das Coisas, dissecou a relação entre os sentimentos, a mente e a cultura.

Li com enorme prazer – lá está, um sentimento…. – o seu último livro, cuja edição americana só vai sair na Primavera do próximo ano. Devido a um louvável esforço de síntese do autor, é mais curto do que os anteriores e também mais fácil de ler por estar dividido em 46 pequenas secções. O desafio central é a explicação da consciência, uma das actuais fronteiras da ciência. O editor pretendia um livro sucinto e o autor respondeu “escrevendo apenas sobre as ideias que mais o interessam”. Praticou, diz ele, a “arte do haiku” nas Neurociências. Pergunta Damásio: “Como é que o cérebro constrói experiências mentais que associamos inequivocamente ao nosso ser, a nós próprios? Sobretudo na última década, vários investigadores destacados têm aventado respostas a esta questão embora se possa seguramente afirmar que até agora nenhuma dessas respostas tenha sido considerada plenamente satisfatória. Espero que as soluções adiantadas no presente livro nos aproximem de uma resposta adequada e que sejam entendidas como um Manifesto sobre o Problema da Consciência.” A consciência, que há alguns anos parecia tão misteriosa, está finalmente a render-se aos porfiados esforços dos investigadores.

O livro reparte-se por quatro capítulos: “Ser”, “Representar”, “Sentir” e “Saber”, pois antes de se chegar ao sentir e ao saber, é preciso entender o ser (estando as representações antes do sentir, para que este fique mais claro). Para Damásio, que apresenta o percurso evolutivo das espécies, é muito claro que “antes de chegarmos ao saber, é preciso percorrer o ser e o sentir”. Parte, portanto, da base biológica. Começa por definir o que é um ser vivo: para ele todos os seres vivos, a começar pelas bactérias, são inteligentes, no sentido em que detectam o seu ambiente, respondendo a ele, segundo os ditames de homeostasia. A vida tem um objectivo simples: viver o mais possível e, para isso, é indispensável a atenção ao mundo em redor. Escreve: “Detectar é uma forma primitiva de sentir e que resulta numa forma primitiva de saber.” De seguida, Damásio trata o modo como os animais com um sistema nervoso simples (portanto, multicelulares e com órgãos diferenciados) sentem: sentir é indispensável aos processos mentais e isso é feito, através do sistema interoceptivo, a parte do sistema nervoso que assegura a ligação com o corpo. No capítulo final, tenta entender o extraordinário bónus da consciência, ou sentido de si, que é albergado pelo cérebro, que mescla de modo sofisticado sentimentos e raciocínios. Mente e consciência não são a mesma coisa: a consciência é um “estado mental enriquecido”. O autor insiste nas ligações entre o sistema nervoso e o corpo: fala da “inserção da mente [consciente] no teatro do seu corpo” e diz que “o sistema nervoso, onde se inclui o cérebro, o seu âmago natural, situa-se, na sua totalidade, dentro do território que é o corpo e permanece em constante interacção com ele.”

Se a base da consciência assenta na biologia, as teses de Damásio tocam em questões mais gerais da filosofia da mente e da inteligência artificial. Segundo ele, os robôs só poderão ser conscientes se, além de cérebro, tiverem um corpo. Antevê robôs multissensoriais que possam ser “assistentes eficazes dos seres humanos com sentimentos reais”. E prevê que eles terão um certo grau de consciência…

São inúmeros os prémios e distinções de Damásio. Foi feito Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada (1995), com Hanna; foi Prémio Príncipe das Astúrias de Investigação Científica e Técnica (2004); e Prémio Pessoa (1992), de novo com Hanna. Tem o seu nome numa escola secundária em Lisboa, onde, num ginásio a abarrotar, assisti ao lançamento do seu livro anterior. Entrou para o Conselho de Estado em 2017, em substituição de António Guterres. É membro de várias academias e instituições internacionais, como a American Academy of Arts and Sciences e a European Academy of Sciences and Arts. Em 1995, a revista Time dedicou-lhe um longo artigo com chamada na capa. Com o novo livro, Damásio ganha mais uma distinção, que não será menor: torna-se mais inteligível, bem mais inteligível, para o grande público.

Recomendo o livro a todos os seres conscientes que queiram saber o que é e de onde lhes vem esse dom. Além do mais, Damásio escreve com elegância. Para dar um sabor do seu estilo encerro com um excerto que me deixou a pensar: “Em certa medida, do ponto de vista histórico e evolutivo, a consciência foi um fruto proibido que uma vez provado nos tornou vulneráveis à dor e ao sofrimento e, em última análise, expostos ao trágico confronto com a morte.”

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Este é um caminho muito promissor.
O nosso corpo é maior, é mais, do que a nossa consciência. A realidade é incomensuravelmente maior, mais, do que o nosso conhecimento, do que o nosso saber, mesmo implícito.
A representação que fazemos da realidade é como um fogo de artifício da linguagem.
Do que não esquecemos, ficamos com o osso da memória, essa construção labiríntica de que a humanidade procura a chave, não uma chave, como se a realidade fosse a memória e o seu discurso e não também o corpo e a linguagem à revelia de qualquer consciência.
O corpo e a linguagem são a memória, ainda antes de sabermos que existem e de sabermos o que eles são, o mais complexo edifício que não obedeceu a um projecto, embora possamos tentar desenhá-lo, “a posteriori”, e licenciá-lo nalguma câmara de racionalidade.
A memória é viva o suficiente para acordar, ou adormecer, quando menos desejamos ou esperamos e é muito maior e mais do que a nossa consciência. Não sei se a memória é mais ou maior do que o corpo, mas é mais inteligente do que a consciência e do que a linguagem e o discurso.
Pode ser muito difícil de apagar, sem apagar o corpo e, ainda sim, pode sobreviver através de outros corpos. E pode ser ainda mais difícil de recuperar, o que é desesperante quando dela mais precisamos.

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