quinta-feira, 5 de novembro de 2020

REPENSAR A HISTÓRIA DE PORTUGAL

Entrevista exclusiva à revista do Círculo de Leitores e concedida em conjunto por Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva – diretores de História Global de Portugal 

DESTAQUES

 Esta é «uma proposta de repensar a História de Portugal. […] a nossa esperança é que este nosso contributo ajude a repensar a complexidade histórica, e que isso entusiasme outros autores a aprofundarem algumas das linhas aqui sugeridas, gerando uma dialética frutuosa.» 

«[…] muitos processos históricos só têm cabal compreensão quando lidos à luz de dinâmicas transnacionais. Para serem bem percecionados exigem as noções de transferência, fluxo, relações entre espaços e tempos, e conectividade.» 

«A obra que agora saiu ao fim de um amplo esforço coletivo é, sem dúvida, pioneira. […] é a primeira a propor uma leitura integral de uma série de acontecimentos que refletem dinâmicas de receção e de difusão que não se podem perceber numa leitura exclusivamente nacional.» 


  Círculo de Leitores (CL) – A História era, como se lê na introdução da obra, «conhecida de forma bipolar», ou seja, «existíamos nós e os outros [...]. Nos casos mais extremos, a história nacional [...] era concebida e ensinada como uma realidade quase autónoma em relação à história do mundo.» No entanto, «a história global tem milénios, ao passo que a história das nações não tem mais que alguns séculos.» Parece-nos útil elucidar os leitores sobre esta nova abordagem do passado. Quando surgiu a história global? Como se pode definir e que importância tem para a nossa compreensão do passado e do presente? 

A história global é uma tendência historiográfica que despontou há 30 anos. Começou com a world history, adquiriu depois uma identidade conceptual, distinta da sua congénere anterior, nos anos 70, com o conceito de global history, conquistando depois um lugar institucional com o surgimento, em 2006, do Journal of Global History. Citando um recente livro do historiador alemão Sebastian Conrad, é «uma forma de análise histórica na qual os fenómenos, os acontecimentos e os processos são colocados num contexto global». Como esta obra deixa claro, muitos processos históricos só têm cabal compreensão quando lidos à luz de dinâmicas transnacionais. Para serem bem percecionados exigem as noções de transferência, fluxo, relações entre espaços e tempos, e conectividade. As fronteiras apareceram tarde – ainda que a portuguesa seja uma das mais antigas – e nunca estancaram a circulação de pessoas, ideias e bens. Elas foram mais porosas do que as histórias nacionais supuseram, sobretudo a partir do século XIX, quando se consolidaram os estados-nação. Para dar um exemplo: o primeiro rei dos portugueses era filho de um imigrante. 

CL – Não existia, ainda, no nosso país, uma análise da nossa História à luz dos Estudos Globais. Podemos afirmar que foi precisamente essa lacuna na bibliografia que esteve na origem do projeto? E avançar que esta nova síntese se trata, portanto, de uma obra pioneira em Portugal? 

A génese deste livro está ligada ao dinamismo do José Eduardo Franco, que se tem interessado por Estudos Globais. Viu aparecer uma história global de França, em 2017, que suscitou polémica naquele país, e pensou num projeto semelhante em Portugal. A ideia era excelente e foi logo acolhida. A obra que agora saiu ao fim de um amplo esforço coletivo é, sem dúvida, pioneira. Não que tenhamos sido os primeiros a pensar a história no território que é hoje Portugal numa perspetiva de história global. Mas ela é a primeira a propor uma leitura integral de uma série de acontecimentos que refletem dinâmicas de receção e de difusão que não se podem perceber numa leitura exclusivamente nacional. 

CL – A História Global de Portugal está organizada por textos, que «partem de um acontecimento criteriosamente escolhido pelos diretores da obra e pelos responsáveis científicos de cada uma das épocas.» Como se definem estes «momentos de charneira»?   E como se estabelecem os limites de análise, já que a interligação cronológica e territorial alarga os assuntos a estudar? 

De facto, essa foi uma das maiores dificuldades da nossa empresa. Ai residirá talvez o foco de polémicas que uma proposta desta natureza pode desencadear. Nas apresentações das partes em que se estrutura este livro, os coordenadores científicos das várias épocas históricas anteciparam essas dúvidas, explicitando que poderiam ter escolhido outros eventos também relevantes. 

A dimensão da obra forçou a escolhas. Os limites da análise espacio-temporal de cada tema dependem de múltiplos fatores, pelo que se deixou essa decisão aos diversos autores. Nalguns casos, os vínculos de encadeamento têm uma impressionante duração. Um exemplo talvez útil no atual contexto de uma pandemia é o da peste negra, do século XIV, também ela originária da Ásia. Teve surtos no nosso país até final do século XIX. Mas só com descobertas científicas ocorridas no século XXI é que se puderam desvendar as causas e efeitos desta doença. 

CL – Qual poderá ser o contributo desta obra para a reescrita da nossa História? 

A obra é uma proposta de repensar a história de Portugal. Fica bem claro que não é possível entender tudo o que por aqui se passou desde há cerca de 250 mil anos se nos encerrarmos em barreiras, de certo modo, artificiais. A construção apresentada realça como muitos dos fenómenos que foram contribuindo para a configuração de uma certa identidade deste espaço e das suas populações não germinaram aqui. Mas também houve processos que tiveram como primeiro palco este território e como protagonistas os seus habitantes, que contribuíram para transformações com impressionante impacte no mundo: houve processos de descoberta e de encontro de culturas, mas houve também marcas de brutal violência, como foi o caso da escravização maciça de populações sobretudo africanas. 

A nossa intenção não foi propor uma só leitura. Pelo contrário, a nossa esperança é que este nosso contributo ajude a repensar a complexidade histórica, e que isso entusiasme outros autores a aprofundarem algumas das linhas aqui sugeridas, gerando uma dialética frutuosa. 

Não se trata de uma «reescrita da História», pois esta pode remeter para a ideia de revisionismo do passado, mas sim de uma reanálise desse fascinante percurso que foi a vida das populações que durante vários milhares de anos habitaram este espaço no canto da Europa. O nosso contributo poderá ser o de lançar o debate sobre a relação entre Portugal e o mundo. Como é que o mundo nos moldou e como é que nós moldámos o mundo.

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