DESTAQUES
Esta é «uma proposta de repensar a História de Portugal. […] a nossa esperança é que este nosso contributo ajude a repensar a complexidade histórica, e que isso entusiasme outros autores a aprofundarem algumas das linhas aqui sugeridas, gerando uma dialética frutuosa.»
«[…] muitos processos históricos só têm cabal compreensão quando lidos à luz de dinâmicas transnacionais. Para serem bem percecionados exigem as noções de transferência, fluxo, relações entre espaços e tempos, e conectividade.»
«A obra que agora saiu ao fim de um amplo esforço coletivo é, sem dúvida, pioneira. […] é a primeira a propor uma leitura integral de uma série de acontecimentos que refletem dinâmicas de receção e de difusão que não se podem perceber numa leitura exclusivamente nacional.»
Círculo de Leitores (CL) – A História era,
como se lê na introdução da obra, «conhecida
de forma bipolar», ou seja, «existíamos nós e os
outros [...]. Nos casos mais extremos, a história
nacional [...] era concebida e ensinada como
uma realidade quase autónoma em relação
à história do mundo.» No entanto, «a história
global tem milénios, ao passo que a história das
nações não tem mais que alguns séculos.»
Parece-nos útil elucidar os leitores sobre esta
nova abordagem do passado. Quando surgiu
a história global? Como se pode definir e que
importância tem para a nossa compreensão do
passado e do presente?
A história global é uma tendência historiográfica
que despontou há 30 anos. Começou com a
world history, adquiriu depois uma identidade
conceptual, distinta da sua congénere anterior,
nos anos 70, com o conceito de global
history, conquistando depois um lugar
institucional com o surgimento, em 2006,
do Journal of Global History. Citando um
recente livro do historiador alemão Sebastian
Conrad, é «uma forma de análise histórica na
qual os fenómenos, os acontecimentos e os
processos são colocados num contexto global».
Como esta obra deixa claro, muitos processos
históricos só têm cabal compreensão quando
lidos à luz de dinâmicas transnacionais. Para
serem bem percecionados exigem as noções
de transferência, fluxo, relações entre espaços
e tempos, e conectividade. As fronteiras
apareceram tarde – ainda que a portuguesa seja
uma das mais antigas – e nunca estancaram a
circulação de pessoas, ideias e bens. Elas foram
mais porosas do que as histórias nacionais
supuseram, sobretudo a partir do século XIX,
quando se consolidaram os estados-nação. Para
dar um exemplo: o primeiro rei dos portugueses
era filho de um imigrante.
CL – Não existia, ainda, no nosso país, uma
análise da nossa História à luz dos Estudos
Globais. Podemos afirmar que foi precisamente
essa lacuna na bibliografia que esteve na
origem do projeto? E avançar que esta nova
síntese se trata, portanto, de uma obra pioneira
em Portugal?
A génese deste livro está ligada ao dinamismo
do José Eduardo Franco, que se tem interessado
por Estudos Globais. Viu aparecer uma história
global de França, em 2017, que suscitou
polémica naquele país, e pensou num projeto
semelhante em Portugal. A ideia era excelente
e foi logo acolhida. A obra que agora saiu ao
fim de um amplo esforço coletivo é, sem dúvida,
pioneira. Não que tenhamos sido os primeiros a
pensar a história no território que é hoje Portugal
numa perspetiva de história global. Mas ela é a
primeira a propor uma leitura integral de uma
série de acontecimentos que refletem dinâmicas
de receção e de difusão que não se podem
perceber numa leitura exclusivamente nacional.
CL – A História Global de Portugal está
organizada por textos, que «partem de um
acontecimento criteriosamente escolhido
pelos diretores da obra e pelos responsáveis
científicos de cada uma das épocas.» Como
se definem estes «momentos de charneira»? E como se estabelecem os limites de análise, já
que a interligação cronológica e territorial alarga
os assuntos a estudar?
De facto, essa foi uma das
maiores dificuldades da nossa
empresa. Ai residirá talvez o
foco de polémicas que uma
proposta desta natureza pode
desencadear. Nas apresentações das partes
em que se estrutura este livro,
os coordenadores científicos
das várias épocas históricas
anteciparam essas dúvidas,
explicitando que poderiam ter
escolhido outros eventos também relevantes.
A dimensão da obra forçou
a escolhas.
Os limites da análise espacio-temporal de cada tema
dependem de múltiplos
fatores, pelo que se deixou essa decisão aos
diversos autores. Nalguns casos, os vínculos de
encadeamento têm uma impressionante duração.
Um exemplo talvez útil no atual contexto de
uma pandemia é o da peste negra, do século
XIV, também ela originária da Ásia. Teve surtos
no nosso país até final do século XIX. Mas só
com descobertas científicas ocorridas no século
XXI é que se puderam desvendar as causas e
efeitos desta doença.
CL – Qual poderá ser o contributo desta obra
para a reescrita da nossa História?
A obra é uma proposta de repensar a história
de Portugal. Fica bem claro que não é possível
entender tudo o que por aqui se passou desde
há cerca de 250 mil anos se nos encerrarmos em
barreiras, de certo modo, artificiais. A construção
apresentada realça como muitos dos fenómenos
que foram contribuindo para a configuração de
uma certa identidade deste espaço e das suas
populações não germinaram aqui. Mas também
houve processos que tiveram como primeiro
palco este território e como protagonistas os seus
habitantes, que contribuíram para transformações
com impressionante impacte no mundo: houve
processos de descoberta e de encontro de
culturas, mas houve também marcas de brutal
violência, como foi o caso da escravização maciça
de populações sobretudo africanas.
A nossa intenção não foi propor uma só leitura.
Pelo contrário, a nossa esperança é que este
nosso contributo ajude a
repensar a complexidade
histórica, e que isso
entusiasme outros autores
a aprofundarem algumas
das linhas aqui sugeridas,
gerando uma dialética
frutuosa.
Não se trata de uma «reescrita
da História», pois esta pode
remeter para a ideia de
revisionismo do passado, mas
sim de uma reanálise desse
fascinante percurso que foi
a vida das populações que
durante vários milhares de
anos habitaram este espaço
no canto da Europa.
O nosso contributo poderá
ser o de lançar o debate
sobre a relação entre Portugal e o mundo. Como
é que o mundo nos moldou e como é que nós
moldámos o mundo.
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