quarta-feira, 18 de novembro de 2020

À morte ninguém escapa, ou daqui a tempo suficiente estaremos todos mortos


Este é um ensaio que muitas pessoas podem considerar deprimente. Fala da morte prematura e de uma contabilidade que alguns consideram insuportável, e refere assuntos de que normalmente não queremos ouvir falar. Mas, por outro lado, mostra-nos que vivemos num mundo muito mais seguro e, assim, pode ser encarado com serenidade quer sejamos religiosos ou não. Foi sendo escrito desde há uns anos para um livro e foi depois modificado para um jornal, mas continuava inédito.


No início do livro "A Riqueza e a Pobreza das Nações", David Landes apresenta como exemplo da tragédia que representava a falta do conhecimento que temos hoje em dia, a morte, em 1836, devida a uma infeção, que atualmente seria facilmente curada, de Nathan Rothschild, na altura com 58 anos, o homem mais rico do mundo. Nathan teria ainda que esperar quase cem anos pelos primeiros medicamento ativos contra as infeções, as sulfamidas e mais de cem anos pelo primeiro antibiótico, a penicilina. Teria também de esperar mais de trinta anos pela descoberta e generalização da assépsia, assim como mais umas décadas pela descoberta e uso da salicina e do ácido salicílico como antipiréticos e analgésicos e ainda mais algumas décadas pela descoberta de outros antipiréticos e analgésicos, como ácido acetilsalicílico, mais conhecido pelo seu primeiro nome comercial, aspirina. Também a anestesia demoraria mais de uma década a ser descoberta e a tornar-se comum. A história de Natham é especialmente relevante por ser o homem mais rico do mundo. Vamos encontrar várias outras pessoas que morreram de infeções semelhantes e que também não puderam ser curados, reis e presidentes, não por falta de dinheiro, mas sim por faltarem os medicamentos e os meios que não tinham ainda sido descobertos. Mas a vida não é eterna. Outros morrerão de combinações de idade avançada, azar e doenças ainda sem cura, como a actual doença do coronavírus (as vacinas estão quase prontas, diz-se). Desta doença morreu um banqueiro, Vieira Monteiro, uma cientista, Maria de Sousa, vários escritores, Luís Sepulveda, Rúben Fonseca, Maria Alberta Menéres, Maria Velho da Costa, entre muitos outros.

O veneno é a hipótese mais comum sugerida para as mortes prematuras e vamos encontrar ao longo da história várias supostas e garantidas vítimas. O rei D. Pedro V, o esperançoso, que morreu com apenas vinte e cinco anos, a sua esposa, D. Estefânia, que morreu ainda mais nova, e outros membros da família real, que morreram de doenças hoje evitáveis, como a febre tifóide e a difteria. Um príncipe da altura foi autopsiados pelos maiores e mais respeitados médicos e químicos portugueses da época, e os resultados publicados no jornal oficial do tempo, pois havia a suspeita e alarme público de que tivessem sido envenenados. Mas o envenenamento é residual nas  estatísticas. A maior causa de morte continua a ser as doenças cardiovasculares silenciosas e o sítio mais perigoso continua a ser a cama como referiu Mark Twain! Mas a morte trágica é relevante para a literatura e para a vida. Infelizmente, nem é sempre valorizamos o mais importante. Os dois caminheiros que morreram em 2017 não ingeriram pesticidas nem venenos artificiais, mas raiz de embude, uma planta comum em Portugal e, obviamente, natural.
 
Hoje começamos a ter mais problemas com bactérias resistentes (algo que não é novo - na verdade, sempre os microrganismos resistiram), descobrimos atónitos que ainda temos medo de vírus, discutimos efeitos secundários e o mau uso dos antibióticos, mas houve tempos em que uma simples infeção ou um abcesso poderia ser uma tragédia. Para além disso, as epidemias de difteria, peste bubónica, cólera, febre tifoide e febre amarela eram comuns no século XIX e princípio do século XX. Tal como a Nathan, a muitos personagens trágicos involuntários faltaram as condições sanitárias, os medicamentos e o conhecimento. Aos sifilíticos que tinham uma noite com Vénus (a qual muitas vezes nem era sua) e ficavam toda a vida com mercúrio, faltou a penicilina. Aos tuberculosos faltou, primeiro um maior entendimento sobre a doença que só chegou no final do século XIX, mas apenas para ficarem tanto mais sabedores como desamparados antes da descoberta da estreptomicina, que só ficou disponível em 1956. A muitos outros faltaram as condições de higiene e alimentação, as vacinas da difteria e poliomielite e muitas outras coisas que temos hoje como garantidas, mas que não existiam no tempo em que viveram.

E depois temos os acidentes e o azar. Sempre tivemos. As estatísticas dizem-nos que a quinta de causa de morte são os acidentes. Há relativamente pouco tempo, de entre os meus conhecidos e familiares dois jovens morreram de forma trágica e absurda. Vários outros, que não conhecia, morreram afogados e em acidentes de automóvel e mota. Já não temos notícia de jovens que morrem devido aos esquentadores mal instalados. Os equipamento estão cada vez mais seguros e a nossa tolerância menor, mas continuam a acontecer desastres na estrada, por exemplo. Quando eu era pequeno, as pessoas morriam muito nas motorizadas. Um primo meu morreu num cruzamento, ainda era muito novo, a mulher, mais nova ainda, com uma filha pela mão e outra ainda na barriga. Um jovem morreu numa placa de trânsito, numa motorizada que o pai não lhe queria dar. Outro matou um amigo por acidente com uma espingarda improvisada. Mais recentemente, um dos meus conhecidos parou num semáforo e foi atropelado por um carro que não parou. Um casal parou para ir virar e foi morto por um carro. Um jovem despistou-se na sua motorizada e morreu. Poderíamos encher páginas e páginas com acidentes imprevisíveis, ou não, com azares absurdos, ou resultados tristemente esperados.  

É obviamente um truísmo dizer que ninguém escapa à morte. Alguns atingem a imortalidade possível, mas todos morrem. As pestes, a tuberculose e a sífilis, as guerra e os acidentes são as causas mais famosas pelos comportamentos e literatura que lhes estão associados. O suicídio vem de seguida. Mas o suicídio sempre foi sobrevalorizado. Embora hoje em dia quase não haja notícias (há um código de conduta dos meios de comunicação quando noticiam suicídios para evitar fenómenos de imitação - o “efeito Werher”, dizem os números, é real). Por um lado devido aos seus aspectros trágicos, mas também pelo fascínio que este nos causa, o suicídio acaba por ser sobrevalorizado, mas é “só” a nona causa de morte. Albert Camus refere em "O Mito de Sísifo", de 1942, que o problema do suicídio é o mais fundamental em termos filosóficos. E Portugal seria o país de suicidas referido por Miguel de Unamuno? Talvez não, Itália e outros países também o foram...

A tuberculose e a sífilis contribuíram para muita literatura não só pela fatalidade, mas também pelos ambientes sociais e estados de alma e físicos que se lhes ligaram. Sendo doenças, em geral, de evolução lenta ou crónica, os doentes seguiam os ritmos das doenças ou, em muitos caso, tinham a ilusão de lhe escapar. Os sanatórios para a tuberculose, a brancura e o cansaço, a sífilis e as suas marcas e primeiros remédios, o sublimado, a tabes, a neurastenia e a e a loucura sifilítica são referências culturais incontornáveis. Devemos-lhes "A Montanha Mágica", que é a referência mais conhecida e emblemática aos sanatórios e aos tratamentos clássicos da tuberculose, o "Doutor Fausto", que romanceia em parte a sífilis, numa altura em que esta era já tratável, ambos de Thomas Mann, entre um número incontável de obras. Tanto os romances que envolvem personagens românticas, vítimas de tuberculose e sífilis, como os que evocam personagens assustadoras vítimas dessas doenças. Em "A Nossa Senhora de Paris", na personagem Quasimodo, Victor Hugo descreve, diz-se, uma vítima de sífilis congénita, hoje uma doença quase desconhecida.

Mas não é só a presença direta da doença e dos seus reflexos que é preciso lembrar. Também a sombra que essas doenças projetaram nos autores é importante. A sífilis e a tuberculose em Manuel Laranjeira contribuíram, com certeza, para as sua forma de ver o mundo desencantada e desiludida. O mesmo aconteceu com a tuberculose de António Nobre, Cesário Verde e de muitos outros. E mesmo o aparente otimismo e saudade da vida simples e saudável do campo de Júlio Dinis - que parece querer fazer esquecer a tuberculose que o matou novo - tem provavelmente muito de amargura e desilusão.
 
No Portugal do início do século XX a sífilis era um flagelo como se pode verificar pelos capítulos dedicados a esta doença no volume de 2011 organizado por Cristiana Bastos, "Clínica, arte e sociedade: a sífilis no Hospital do Desterro e na saúde pública". Thomaz de Melo Breyner registou cuidadosamente todos as histórias clínicas e pode verificar-se que a doença se transmitia de todas as formas possíveis, desde as mais clássicas relacionadas com a prostituição em que o marido contaminava a mulher e esta os filhos até às amas de leite que contaminavam os bebés e estes as mães que contaminavam os maridos. Neste Hospital foram atendidas no período de 1903 a 1906 mais de mil e quatrocentas prostitutas com idades entre os 15 e aos 36 anos, idade média de cerca de 22 anos, sendo que a maioria tinha 19 anos! Os tratamentos possíveis eram baseados em sais de mercúrio, mas a partir de 1910 há grande entusiasmo com arsenamina, um composto orgânico de arsénio, também conhecido por salvarsan ou «606», desenvolvido por Paul Erhlich em 1906, mas esse entusiasmo rapidamente se modera dado que este medicamento que tinha de ser injetado também tem efeitos secundários. Nas décadas seguintes os tratamentos vão alternando entre os as sais de mercúrio, a arsenamina e sais de bismuto. Paralelamente, surgem campanhas de informação, profilaxia e higiene que irão contribuir para a diminuição do número de afetados. Mas só a partir de 1943, com a penicilina, é que a doença passa a ser curável e é quase irradicada. Para trás ficaram as mortes prematuras devidas a esta doença, a loucura sifilítica, as marcas da sífilis nos sobreviventes e muitas outras coisas que hoje temos dificuldade em compreender.  

Como já referi noutro trabalho, a gripe pneumónica matou depressa e as suas vítimas no começo da idade adulta e quase nem tiveram tempo de transformar a doença em obras. Era uma vergonha morrer de tal doença. E, no entanto, talvez tenha matado mais pessoas que as duas grandes guerras. DE facto, a guerra é também uma grande fonte de mortes prematuras. Hoje em dia assiste-se a uma generalização da longevidade (embora o coronavírus possa ter implicações nas estatísticas). A vida humana poder não ter limites teóricos era já discutido em algumas revistas cientificas prestigiadas desde há alguns anos! No século vinte e vinte um podemos encontrar com relativa facilidade pessoas centenárias. A pediatra americana que com mais de noventa anos que ainda dava consultas e escrevia artigos, o cineasta Manuel de Oliveira, o arquiteto Oscar Niemaeyer e muitos outros. Mas a longevidade não é uma coisa nova. Matusalém é a personagem bíblica que mais viveu, mas não se consegue encontrar-lhe mais feitos do que o de ter tido filhos.

Como já referi noutro lado, a mitologia e a literatura mostram-nos exemplos dos efeitos inesperados da imortalidade. Jonathan Swift leva-nos a uma ilha onde por vezes nascem pessoas imortais, mas isso não é uma bênção. Infelizmente estes não param de envelhecer e o espetáculo não poderia ser mais deprimente: velhos surdos, dementes, vaidosos e caquéticos entregam-se às mais tolas e fúteis atividades. O narrador do livro conclui que a morte é necessária e a imortalidade uma maldição. Também José Saramago nas "Intermitências da Morte" nos faz antever os problemas que a imortalidade causaria. Já antes, no mito de Sisífo este problema será abordado. Sísifo, o mais esperto dos homens, segundo Homero, mas também o mais absurdo segundo Camus, enganou a morte duas vezes. Numa aprisionou a morte e, ninguém morrendo, despovoou-se o Inferno. Noutra conseguiu sair do Inferno. Acabou condenado a empurrar uma pedra que sempre rolava e voltava a empurrar, como é bem conhecido. Mas como referiu Swift e Saramago a imortalidade traria muitos problemas. Alguns destes problemas são resolvidos nos livros de vampiros - em "O Império do Medo" de Brian Stableford estes não se reproduzem ou reproduzem-se muito pouco - mas  criam outros. A criança que nunca cresce de a Entrevista com o Vampiro, por exemplo. A imortalidade origina problemas insolúveis e paradoxos. “Oh tempo, suspende o teu voo! De acordo, disse o tempo. Mas por quanto tempo?" escreveu o antropólogo francês Marc Augé.
 
A conhecida lengalenga À morte ninguém escapa lembra-nos o óbvio, mas apresenta-nos uma forma inglória de escapar à morte – fechar-se numa panela - e, no fundo não viver, não sentir o passar do mundo, ser esquecido (o problema de Peter Gynt), ou nem sequer ser encontrado pela morte,

    À morte ninguém escapa,
    Nem o rei, nem o papa,
    Mas escapo eu.
    Compro uma panela,
    Custa-me um vintém,
    Meto-me dentro dela
    E tapo-me muito bem,
    Então a morte passa e diz:
    -Truz, truz! Quem está ali?
    -Aqui, aqui não está ninguém.
    -Adeus meus senhores,
    Passem muito bem.


Mais do que um tempo que pára, como um relógio quebrado, é o absurdo de tudo se repetir, e tudo ter já sido feito, que angustia alguns. Mas isso é uma ilusão, o mundo avança e não volta ao mesmo lugar. Sisífo não empurra a pedra nem transpira da mesma forma. Camus diz-nos que devemos pensar que Sisífo é, apesar de tudo, feliz. 

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A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...