quarta-feira, 25 de novembro de 2020

THORNE E OS BURACOS NEGROS


Meu artigo  no jornal I da semana passada:

Kip Thorne (n. 1940) é um físico teórico norte-americano que, com dois colegas seus experimentalistas, Rainer Weiss e Barry Barish, ganhou o Prémio Nobel da Física de 2017, a somar-se a um conjunto de outras distinções (foi também laureado com a medalha Einstein em 2009 e com o Prémio Princesa das Astúrias de 2017 em Investigação Científica e Técnica). A sua cátedra no mundialmente famoso Instituto de Tecnologia da Califórnia, vulgo Caltech, em Los Angeles, nos Estados Unidos, tem o nome de Richard Feynman, o genial físico (Nobel da Física em 1965) e também grande brincalhão (ver Está a brincar, Sr. Feynman!, Gradiva, 1998) que aí foi professor. A sua especialidade é a gravitação, que é muito bem descrita pela teoria da relatividade geral de Einstein, e o seu objecto de estudo preferido são os buracos negros, esses “abismos” do espaço e do tempo onde um e outro colapsam. O seu prémio Nobel foi ganho por ter realizado, com a sua equipa do Caltech, cálculos computacionais muito sofisticados que provaram que as ondas gravitacionais detectadas pela primeira vez na Terra em 2015 pelo Observatório LIGO eram devidos ao choque de dois gigantescos buracos negros. Os buracos negros continuam na moda: o prémio Nobel da Física deste ano foi atribuído a três físicos que estudam buracos negros, o físico teórico britânico Roger Penrose e os astrofísicos Reinhard Genzel, alemão, e Andrea Ghez, norte-americana (a quarta mulher a receber o prémio Nobel da Física em toda a história!). No ano de 2009, quando tinha 69 anos (oito anos antes de obter o Nobel), Thorne passou a professor emérito, passando a dedicar-se a tempo inteiro à escrita para o público em geral e à produção de filmes de grande audiência. É curioso ver um físico que trabalhava perto de Hollywood passar a trabalhar para Hollywood!

Thorne fez uma extraordinária carreira em Física antes de se jubilar: foi autor do grande “tijolo” com mais de mil páginas que é a referência na sua área e um dos mais célebres livros de ciência de todos os tempos (Gravitation, Princeton, 1973; em coautoria com Charles Misner e John Wheeler, o seu supervisor de doutoramento e o alegado autor da expressão “buraco negro”). Thorne orientou o doutoramento de cerca de 50 estudantes, alguns dos quais famosos por terem sido também escritores (Alan Lightman, o autor de Os Sonhos de Einstein, Edições Asa, 1994; e Clifford Will, o autor de Einstein Tinha Razão?, Gradiva, 2005).

Mas Thorne é mais conhecido do público pelas suas participações em projectos cinematográficos. No cinema ficou lendária a sua sugestão de buracos de minhoca ao seu amigo Carl Sagan que queria tornar plausível uma viagem no tempo no filme Contacto (dirigido por Robert Zemeckis, estreado em 1997, com Jodie Foster no principal papel), que tem por base no romance homónimo (Gradiva, 1997) do astrofísico norte-americano. Em A Teoria de Tudo, a biografia cinematográfica de Stephen Hawking (película dirigida por James Marsh, estreado em 2014, com Eddie Redmayne e Felicity Jones), Thorne surge representado pelo actor Enzo Cilenti. Mas a sua coroa de glória foi o filme Interstellar (dirigido por Christopher Nolan, estreado em 2014, com Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Matt Damon e Michael Caine), um blockbuster de ficção científica, no qual participou como incansável conselheiro científico. O filme foi um grande êxito de bilheteira e obteve um Óscar de Hollywood para o filme com melhores efeitos visuais.

O único livro de Thorne para não especialistas era até 2014 Black Holes and Time Warps: Einstein’s Outrageus Legacy (Norton, 1995), com prefácio de Stephen Hawking, que foi não só colega como amigo do autor,. Esse livro não foi traduzido em português apesar do seu enorme êxito em todo o mundo.

Acaba de sair em português o livro A Ciência de Interstellar, de Kip Thorne, cuja edição original surgiu em 2014 por altura da estreia do filme. O prólogo é do renomado realizador britânico Christopher Nollan, o mesmo de Memento, Batman - O Início, O Cavaleiro das Trevas, O Cavaleiro das Trevas Ressurge, Dunquerque e, já este ano, Tenet. Com o selo da Relógio d’Água e integrado na colecção de Ciência dessa editora, o livro é impresso em papel de boa qualidade e inclui diversos gráficos e fotografias a cores. A tradução de Rita Carvalho e Guerra não foi bem revista cientificamente: por exemplo, “momento angular” foi traduzido por “impulso angular”. Embora contenha bastantes spoilers sobre o enredo do filme, penso que isso não constitui qualquer obstáculo à leitura do livro pois muita gente já viu o filme e quem não viu pode dispor facilmente do DVD, ou aceder a ele numa plataforma digital, e vê-lo ou revê-lo antes de ler o livro. Os leitores vão, com este, aprender bastante sobre a ciência que está subjacente ao filme.

Thorne conta-nos logo no início a história da sua participação no filme. Tudo começou em 1980 quando, convidado para a estreia da série televisiva Cosmos, de Sagan, conheceu uma produtora nova-iorquina Lynda Obst, recomendada pelo seu amigo. Os dois viveram um romance, que terminou ao fim de uns anos, ficando amigos (entretanto Thorne casou-se com Carolee Winstein, professora de Biocinesiologia e Terapia Física na Universidade da Califórnia – Los Angeles). Em 2005, Lynda, num jantar, propôs a Thorne fazerem um filme de ficção científica, já que ambos tinham participado em Contacto. Lynda tinha sido produtora de Flashdance e de Como Perder um Homem em Dez Dias. Foi o início do projecto de Interstellar, que haveria de conhecer muitas peripécias. A redacção do guião demorou anos, assim como a sua produção. O guião começou por ser escrito por Jonathan Nolan. O realizador esteve para ser Steven Spielberg, o que não aconteceu por incompatibilidades comerciais, ficando a realização a cargo de Christopher Nolan, irmão mais velho do guionista. O filme resultou de uma colaboração inesperada entre a Paramount e a Warner Bros, duas empresas rivais. E o elenco foi de luxo, com os grandes nomes que aparecem no livro em fotografias ao lado de Thorne.

Não vou revelar muito sobre o filme: ou os leitores já sabem o enredo ou gostarão de o descobrir por si próprios. Vejam-no se ainda não o viram e desfrutem depois da física explicada no livro. Revelo apenas que a história envolve uma viagem a um grande buraco negro, chamado Gargântua (em homenagem a Rabelais), no qual os astronautas conseguem penetrar. Chegam a Gargântua atravessando um buraco de minhoca (o livro fala em wormholes, não traduzindo o termo) cuja boca se situa perto de Saturno. A tripulação da nave, a Endurance, é formada por Joseph Cooper (Matthew McConaughey), ex-piloto da NASA; pela bióloga Amelia (Anne Hathaway), filha do professor John Brand (Michael Caine), que trabalha para a NASA; dois físicos; e dois robôs.

Thorne, que dividiu o livro em oito capítulos (Fundamentos, Gargântua, Desastre na Terra, O Wormhole, Explorando as Redondezas da Gargântua, Física Extrema, e Clímax) deixou nele marcas assinalando aquilo que é verdade, alicerçada cientificamente, daquilo que é especulação fundamentada e daquilo que não passa de simples especulação. Embora em poucas ocasiões, aceitou a introdução de alguns elementos necessários à trama que não eram verdadeiros: por exemplo, um personagem diz a certa altura que o buraco negro engole tudo à sua volta. Mas não, ele pode ter astros a gravitar em seu redor, tal como existem planetas a gravitar em torno de uma estrela. Alguns buracos negros resultam precisamente da explosão de uma estrela. Mas, assegura-nos Thorne, o filme é o mais realista possível!

A motivação para a colaboração no filme e para a escrita deste seu livro está logo no  prefácio do autor: “Quando era criança, e mais tarde enquanto adolescente, fui motivado a tornar-me cientista ao ler a ficção científica de Isaac Asimov, Robert Heinlein, e outros, e os livros de divulgação científica de Asimov e do físico George Gamow. Devo-lhes tanto. Há muito queria pagar a dívida transmitindo a sua mensagem à geração seguinte; aliciando tanto os jovens quanto os adultos para o mundo da ciência a sério; explicando aos não-cientistas como funciona a ciência, e que grande poder traz a cada um de nós enquanto indivíduo, à nossa civilização, e à raça humana. O filme de Christopher Nolan, Interstellar, é o mensageiro ideal. Eu tive a sorte (e foi sorte) de estar envolvido em Interstellar desde o início. Ajudei Nolan e os outros a incluírem ciência a sério no tecido do filme”.

Se ficarem entusiasmados pelo tema, os leitores ganharão sempre em ler outros livros sobre buracos negros. Entre os mais recentes em português saliento O Pequeno Livro dos Buracos Negros, de Steven Gubser e Frans Pretorius (Gradiva, 2020), e Buracos Negros. As Palestras Reith da BBC, de Stephen Hawking (Bertrand, 2020). Para quem quiser ver como os buracos negros podem ser metáforas na ficção, recomendo o conto que dá o título á colectânea Buracos Negros, do argentino Lázaro Covadlo (90º Editora, 2009), em que há atracções físicas fatais. Os buracos negros são lugares reais no Cosmos e são também, na literatura, aliciantes metáforas…

 

 

 

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