Meu artigo no jornal I da semana passada:
Kip Thorne (n. 1940) é um físico teórico
norte-americano que, com dois colegas seus experimentalistas, Rainer Weiss e
Barry Barish, ganhou o Prémio Nobel da Física de 2017, a somar-se a um conjunto
de outras distinções (foi também laureado com a medalha Einstein em 2009 e com o
Prémio Princesa das Astúrias de 2017 em Investigação Científica e Técnica). A
sua cátedra no mundialmente famoso Instituto de Tecnologia da Califórnia, vulgo
Caltech, em Los Angeles, nos Estados Unidos, tem o nome de Richard Feynman, o genial
físico (Nobel da Física em 1965) e também grande brincalhão (ver Está a
brincar, Sr. Feynman!, Gradiva, 1998) que aí foi professor. A sua
especialidade é a gravitação, que é muito bem descrita pela teoria da
relatividade geral de Einstein, e o seu objecto de estudo preferido são os buracos
negros, esses “abismos” do espaço e do tempo onde um e outro colapsam. O seu prémio
Nobel foi ganho por ter realizado, com a sua equipa do Caltech, cálculos
computacionais muito sofisticados que provaram que as ondas gravitacionais detectadas
pela primeira vez na Terra em 2015 pelo Observatório LIGO eram devidos ao
choque de dois gigantescos buracos negros. Os buracos negros continuam na moda:
o prémio Nobel da Física deste ano foi atribuído a três físicos que estudam
buracos negros, o físico teórico britânico Roger Penrose e os astrofísicos Reinhard
Genzel, alemão, e Andrea Ghez, norte-americana (a quarta mulher a receber o
prémio Nobel da Física em toda a história!). No ano de 2009, quando tinha 69
anos (oito anos antes de obter o Nobel), Thorne passou a professor emérito, passando
a dedicar-se a tempo inteiro à escrita para o público em geral e à produção de
filmes de grande audiência. É curioso ver um físico que trabalhava perto de
Hollywood passar a trabalhar para Hollywood!
Thorne fez uma extraordinária carreira em Física
antes de se jubilar: foi autor do grande “tijolo” com mais de mil páginas que é
a referência na sua área e um dos mais célebres livros de ciência de todos os
tempos (Gravitation, Princeton, 1973; em coautoria com Charles Misner e John
Wheeler, o seu supervisor de doutoramento e o alegado autor da expressão
“buraco negro”). Thorne orientou o doutoramento de cerca de 50 estudantes,
alguns dos quais famosos por terem sido também escritores (Alan Lightman, o
autor de Os Sonhos de Einstein, Edições Asa, 1994; e Clifford Will, o autor
de Einstein Tinha Razão?, Gradiva, 2005).
Mas Thorne é mais conhecido do público pelas suas
participações em projectos cinematográficos. No cinema ficou lendária a sua
sugestão de buracos de minhoca ao seu amigo Carl Sagan que queria tornar
plausível uma viagem no tempo no filme Contacto (dirigido por Robert Zemeckis,
estreado em 1997, com Jodie Foster no principal papel), que tem por base no
romance homónimo (Gradiva, 1997) do astrofísico norte-americano. Em A Teoria
de Tudo, a biografia cinematográfica de Stephen Hawking (película dirigida
por James Marsh, estreado em 2014, com Eddie Redmayne e Felicity Jones), Thorne
surge representado pelo actor Enzo Cilenti. Mas a sua coroa de glória foi o
filme Interstellar (dirigido por Christopher Nolan, estreado em 2014,
com Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Matt Damon e Michael Caine), um blockbuster
de ficção científica, no qual participou como incansável conselheiro
científico. O filme foi um grande êxito de bilheteira e obteve um Óscar de
Hollywood para o filme com melhores efeitos visuais.
O único livro de Thorne para não especialistas era até
2014 Black Holes and Time Warps: Einstein’s Outrageus Legacy (Norton,
1995), com prefácio de Stephen Hawking, que foi não só colega como amigo do
autor,. Esse livro não foi traduzido em português apesar do seu enorme êxito em
todo o mundo.
Acaba de sair em português o livro A Ciência de Interstellar,
de Kip Thorne, cuja edição original surgiu em 2014 por altura da estreia do
filme. O prólogo é do renomado realizador britânico Christopher Nollan, o mesmo
de Memento, Batman - O Início, O Cavaleiro das Trevas, O Cavaleiro
das Trevas Ressurge, Dunquerque e, já este ano, Tenet. Com o selo da Relógio d’Água e
integrado na colecção de Ciência dessa editora, o livro é impresso em papel de boa
qualidade e inclui diversos gráficos e fotografias a cores. A tradução de Rita Carvalho
e Guerra não foi bem revista cientificamente: por exemplo,
“momento angular” foi traduzido por “impulso angular”. Embora contenha bastantes
spoilers sobre o enredo do filme, penso que isso não constitui qualquer obstáculo
à leitura do livro pois muita gente já viu o filme e quem não viu pode dispor
facilmente do DVD, ou aceder a ele numa plataforma digital, e vê-lo ou revê-lo
antes de ler o livro. Os leitores vão, com este, aprender bastante sobre a
ciência que está subjacente ao filme.
Thorne conta-nos logo no início a história da sua
participação no filme. Tudo começou em 1980 quando, convidado para a estreia da
série televisiva Cosmos, de Sagan, conheceu uma produtora nova-iorquina Lynda
Obst, recomendada pelo seu amigo. Os dois viveram um romance, que terminou ao
fim de uns anos, ficando amigos (entretanto Thorne casou-se com Carolee
Winstein, professora de Biocinesiologia e Terapia Física na Universidade da Califórnia
– Los Angeles). Em 2005, Lynda, num jantar, propôs a Thorne fazerem um filme de
ficção científica, já que ambos tinham participado em Contacto. Lynda tinha
sido produtora de Flashdance e de Como Perder um Homem em Dez Dias.
Foi o início do projecto de Interstellar, que haveria de conhecer muitas
peripécias. A redacção do guião demorou anos, assim como a sua produção. O guião
começou por ser escrito por Jonathan Nolan. O realizador esteve para ser Steven
Spielberg, o que não aconteceu por incompatibilidades comerciais, ficando a
realização a cargo de Christopher Nolan, irmão mais velho do guionista. O filme
resultou de uma colaboração inesperada entre a Paramount e a Warner Bros, duas empresas
rivais. E o elenco foi de luxo, com os grandes nomes que aparecem no livro em
fotografias ao lado de Thorne.
Não vou revelar muito sobre o filme: ou os leitores
já sabem o enredo ou gostarão de o descobrir por si próprios. Vejam-no se ainda
não o viram e desfrutem depois da física explicada no livro. Revelo apenas que a
história envolve uma viagem a um grande buraco negro, chamado Gargântua (em
homenagem a Rabelais), no qual os astronautas conseguem penetrar. Chegam a
Gargântua atravessando um buraco de minhoca (o livro fala em wormholes,
não traduzindo o termo) cuja boca se situa perto de Saturno. A tripulação da nave,
a Endurance, é formada por Joseph Cooper (Matthew McConaughey),
ex-piloto da NASA; pela bióloga Amelia (Anne Hathaway), filha do professor John
Brand (Michael Caine), que trabalha para a NASA; dois físicos; e dois robôs.
Thorne, que dividiu o
livro em oito capítulos (Fundamentos, Gargântua, Desastre na Terra, O Wormhole,
Explorando as Redondezas da Gargântua, Física Extrema, e Clímax) deixou nele marcas
assinalando aquilo que é verdade, alicerçada cientificamente, daquilo que é
especulação fundamentada e daquilo que não passa de simples especulação. Embora
em poucas ocasiões, aceitou a introdução de alguns elementos necessários à
trama que não eram verdadeiros: por exemplo, um personagem diz a certa altura
que o buraco negro engole tudo à sua volta. Mas não, ele pode ter astros a gravitar
em seu redor, tal como existem planetas a gravitar em torno de uma estrela.
Alguns buracos negros resultam precisamente da explosão de uma estrela. Mas,
assegura-nos Thorne, o filme é o mais realista possível!
A motivação para a
colaboração no filme e para a escrita deste seu livro está logo no prefácio do autor: “Quando era criança, e
mais tarde enquanto adolescente, fui motivado a tornar-me cientista ao ler a
ficção científica de Isaac Asimov, Robert Heinlein, e outros, e os livros de divulgação
científica de Asimov e do físico George Gamow. Devo-lhes tanto. Há muito queria
pagar a dívida transmitindo a sua mensagem à geração seguinte; aliciando tanto
os jovens quanto os adultos para o mundo da ciência a sério; explicando aos
não-cientistas como funciona a ciência, e que grande poder traz a cada um de nós
enquanto indivíduo, à nossa civilização, e à raça humana. O filme de Christopher
Nolan, Interstellar, é o mensageiro ideal. Eu tive a sorte (e foi sorte)
de estar envolvido em Interstellar desde o início. Ajudei Nolan e os
outros a incluírem ciência a sério no tecido do filme”.
Se ficarem
entusiasmados pelo tema, os leitores ganharão sempre em ler outros livros sobre
buracos negros. Entre os mais recentes em português saliento O Pequeno Livro
dos Buracos Negros, de Steven Gubser e Frans Pretorius (Gradiva, 2020), e Buracos
Negros. As Palestras Reith da BBC, de Stephen Hawking (Bertrand, 2020).
Para quem quiser ver como os buracos negros podem ser metáforas na ficção,
recomendo o conto que dá o título á colectânea Buracos Negros, do
argentino Lázaro Covadlo (90º Editora, 2009), em que há atracções físicas
fatais. Os buracos negros são lugares reais no Cosmos e são também, na
literatura, aliciantes metáforas…
Sem comentários:
Enviar um comentário