Minha recensão no jornal I de quinta-feira passada:
Sob uma Bandeira [Obra
Poética] é o título do livro que reúne a maior parte da poesia
do poeta Joaquim Namorado (Alter do Chão, 1914 - Coimbra 1986) que acaba de
sair numa magnífica edição com a chancela da Modo de Ler, do Porto (do veterano
editor José da Cruz Santos), com organização, prefácio e notas de José Carlos
Seabra Pereira, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. A colecção é “As Mãos e os Frutos”, que abriu
com 36 Poemas e uma Aleluia Erótica, de Frederico García Lorca,
traduzidos por Eugénio de Andrade. A edição, com design de Rui Mendonça,
teve o apoio da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca
de Xira, que guarda o espólio literário de Namorado. Conforme explica no final uma
nota desta associação, o autor esteve na génese do Museu e deixou-lhe o seu
espólio literário, entre o qual se encontrava, organizado por ele e com o mesmo
título, a reunião da sua obra poética. Não é ainda a obra completa, mas é uma
boa tentativa.
Tive o gosto de conviver
com Joaquim Namorado, quando regressei em 1982 do meu doutoramento na Alemanha.
Bastante mais velho, ele era assistente de Matemática na Faculdade de Ciências
e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC), onde tinha feito o curso de
Ciência Matemáticas, que concluiu em 1943. Por ser militante do Partido
Comunista desde a década de 30, foi-lhe coarctada a possibilidade de seguir uma
carreira académica (incluindo a realização de doutoramento) e só após o 25 de
Abril de 1974 pôde entrar na função pública. Antes de ingressar na
Universidade, Namorado tinha andado no Liceu Normal de D. João III (hoje Escola
Secundária José Falcão), que eu, muito depois, também frequentei.
Lembro-me de o ver nos
cafés da Praça da República, em Coimbra, com a boina na cabeça o seu modo muito
próprio de interpelar as pessoas. Tinha um humor muito especial, tão lúcido
quanto ácido. Estive num jantar em sua homenagem em Junho de 1984, quando se
reformou, no qual foi distribuída uma “plaquete” de poemas seus relacionados
com a matemática: os Falsos Poemas Lógicos, incluídos no presente
volume. Estive também no seu funeral, que teve direito a honras académicas e a
um eloquente panegírico (não faltou a bandeira do PC sobre a urna).
Joaquim Namorado foi não só um intelectual resistente ao regime anterior, mas também um grande criador literário que merece maior reconhecimento do que aquele que teve hoje. Devido a várias circunstâncias da sua vida (julgo que viveu durante muitos anos de explicações particulares) e da censura reinante, não publicou muitos livros. Uma consulta ao catálogo da Biblioteca Nacional assinala essencialmente três: Aviso à Navegação: poemas (s.n., 1941), Incomodidade (Atlântida, 1945), A Poesia Necessária (Vértice, 1966). Mas na Biblioteca Rómulo, na Universidade de Coimbra, encontra-se também Zoo: poemas (FCTUC, s.d.). Alguma da sua prosa está em Obras, Ensaios e Críticas. Joaquim Namorado; organização, prefácio e notas de António Pedro Pita (Caminho, 1994). Escreveu Vida e Obra de Frederico García Lorca (s.n., 1943). Prefaciou livros de escritores seus contemporâneos: Fogo na Noite Escura, de Fernando Namora, Fanga, de Alves Redol, e Voz de Prisão, de Manuel Ferreira.
São vários os escritos
sobre a vida e obra de Namorado, a maior parte deles obras colectivas da iniciativa
da Câmara da Figueira da Foz (o poeta tinha uma casa de na Figueira e doou os
seus livros à Biblioteca local, razão pela qual a edilidade criou um prémio
literário com o seu nome) e do Museu do Neo-Realismo: Homenagem ao escritor Joaquim Namorado
(Câmara Municipal da Figueira da Foz, 1990; Joaquim Namorado - Vida e obra:
catálogo (idem, 1990); Incomodidade necessária: depoimentos (Câmara
Municipal de Coimbra, 1991); Joaquim Namorado: arte e intervenção, 1941, 50
anos depois (Museu do Neo-Realismo, 1993); Tudo existe o que se inventa
é a descrição: Joaquim Namorado, 100 anos, organização de Fátima Faria
Roque e António Pedro Pita (idem, 2014); e Joaquim Namorado: o herói no
"Neo-realismo mágico": no centenário do seu nascimento, de Jaime
Couto Ferreira (Lápis de Memórias, 2014).
Namorado é um autor do Neo-Realismo,
o movimemto que despontou em Portugal em 1936-1937, sendo uma sua marca de água
as preocupações social e política. Nesse movimento foi um dos poetas do
"Novo Cancioneiro" (1941-1944), uma colecção onde além dele publicaram
Fernando Namora, Álvaro Feijó, Carlos de Oliveira, Políbio Gomes dos Santos,
Francisco José Tenreiro, João José Cochofel (de quem a Imprensa Nacional acaba
de publicar a obra completa), Mário Dionísio, Sidónio Muralha e Manuel da
Fonseca (de quem acaba de sair uma entrevista a Amália Rodrigues, Amália nas
suas Palavras, Porto Editora). Namorado colaborou em várias revistas
culturais que agitaram o país entre os anos 30 e 50 do século passado como O
Diabo, Sol Nascente, Altitude, Síntese, Liberdade e Seara Nova.
Participou na reformulação da revista Vértice em 1945, da qual foi
director entre 1975 e 1981.
Comemorou-se a 24 de
Novembro o dia de aniversário do professor de Física e Química Rómulo de
Carvalho, de pseudónimo António Gedeão, que é também o Dia Nacional da Cultura
Científica. Embora Gedeão não caiba no Neo-Realismo, encontramos nalguns seus poemas, como “Poema da Pedra Lioz” e
“Calçada de Carriche”, as preocupações sociais dos
neorrealistas. Por outro lado, tal como Gedeão, Namorado abordou amiúde temas
científicos, o que não admira dada a sua formação.
Seabra Pereira
escalpeliza muito bem a lírica de Namorado. Mas o melhor aqui será mostrar
alguns exemplos. Os dois primeiros livros de Namorado são marcados pela Segunda
Guerra Mundial. O título do primeiro é retirado do poema “Aviso à Navegação”,
que é por si só uma bandeira de resistência: “Alto lá!/ Aviso à navegação!/ Eu
não morri:/ Estou aqui / na ilha sem nome, / sem latitude nem longitude,/
perdida nos mapas,/ perdida no mar Tenebroso!// Sim, eu,/ o perigo para a
navegação!/ o dos saques e das abordagens,/ o capitão da fragata/ cem vezes
torpedeada,/ cem vezes afundada,/ mas sempre ressuscitada!// Eu que aportei/
com os porões inundados, / as torres desmoronadas,/ os mastros e os lemes
quebrados/ - mas aportei!// Não espereis de mim a paz!/ Aviso à navegação:/ Não
espereis de mim a paz!// Que quanto mais me afundo/ maior é a minha ânsia de
salvar-me!/(…)”. No segundo livro, Incomodidade, o tom trágico-cómico está
patente no poema “Tragédia Antiga”: “Deitem-me às feras do circo!// Que me
importa/ que a multidão se debruce das bancadas/ e o César obeso e debochado/ me
olhe de través/pelo óculo de esmeraldas?!// Amanhã vou à manicure... “ E o tom irónico
está em “Mania das Grandezas”: “Pois bem, confesso:/ fui eu quem destruiu as
Babilónias/ e descobriu a pólvora.../ Acredite,/ a estrela Sirius, de primeira
grandeza,/ (única no mercado)/ deixou-ma meu tio-avô em testamento./ No meu
bolso esconde-se o segredo/ das alquimias/ e a metafísica das religiões/ — tudo
por inspiração!/ Que querem/ Sou poeta/ tenho a mania das grandezas...// Talvez
ainda venha a ser Presidente da República...” Gosto, em particular, pela
concisão e pelo humor, de três poemas muito curtos: “O Caruncho do Eterno”: “Se
nós não existíssemos/ Cervantes nunca seria imortal”; “Aventura nos Mares do
Sul”: “Eu não fui lá…”; e “Fábula”: “No tempo em que os animais falavam.../ Liberdade!/
Igualdade!/ Fraternidade!”
No mesmo livro destaco,
sobre a pobreza, o poema ”Caridade”, segundo o autor uma das “cinco virtudes mortais”:
“As senhoras da sociedade/ deram um baile a rigor/ para vestir a pobreza/ e a
pobreza horas a fio/ cortou, coseu, enfeitou/ os vestidos deslumbrantes/ que a
caridade exibiu./ Depois das contas bem feitas/ bem tiradas as despesas/ arranjou
um namorado/ a mais nova das Fonsecas;/ esteve bem a viscondessa,/ veio o nome
e o retrato da comissão nos jornais,/ e
o doutor, o Menezes,/ o senhor desembargador,/ estiveram muito engraçados,/ dançaram
o tiro-liro/ já meio-tombados.../ Parece que ainda sobrou/ algum
dinheiro para chita/ para vestir a pobreza/ numa festa comovente com discursos de homenagem/ e uma missa.../ a
que assistiu toda a gente”.
Depois de Incomodidade
o organizador colocou o poema “Combate”, a muito conhecida letra de uma das
“Canções Heróicas” de Fernando Lopes Graça: “nada poderá deter-nos/nada poderá
vencer-nos.” As pessoas da minha geração ouvem a música quando lêem o poema…
No final do livro A
Poesia Necessária, o autor volta ao tema da pobreza, no poema “Edital”, com
algumas palavras em maiúsculas: “Foi afixado/ nos locais do costume/ que É
PROIBIDO MENDIGAR.// Logo mão que se descobre/ escreveu a tinta por baixo/ MAS
NÃO É PROIBIDO SER POBRE. “
O primeiro poema de Zoo
é “Serenata”: “Metam o burro na gaiola/ de douradas grades/ e tratem-no a
alpista/ se quiserem/ — é só um
despropósito./ Mas esperar dele o trinar/ do canário melodioso/ é simplesmente
tolo.” Um dos Falsos Poemas Lógicos
é "O que é, era": “Quando Cristóvão Colombo/ descobriu a América/ a
América estava lá;/ o sangue já circulava/ antes de descrever Harvey a sua
circulação;/ a gente respirava sem saber/ que respirar é uma oxidação:// Tudo
existe./ O que se inventa é a descrição.” Ora aqui está uma boa tirada poético-filosófica
sobre descoberta e invenção.
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