sexta-feira, 13 de novembro de 2020

ENTREVISTA A DAVID MARÇAL DO DN DA MADEIRA POR ANA LUÍSA CORREIA (12/11/2020)


David Marçal, co-autor de ‘Apanhados pelo Vírus’ 

AREJAMENTO DOS ESPAÇOS É A MEDIDA DE PREVENÇÃO

 “Estamos a falar de uma situação sui generis do ponto de vista da comunicação de ciência” 

Chega às livrarias no próximo dia 17 a obra ‘Apanhados pelo Vírus - Factos e mitos acerca da Covid-19’ o novo livro do físico Carlos Fiolhais e do bioquímico David Marçal, editado pela Gradiva. Os dois já se tinham juntado anteriormente para escrever livros de divulgação de ciência, nomeadamente ‘Darwin aos Tiros e Outras Histórias de Ciência’ e ‘Pipocas com Telemóvel e Outras Histórias de Falsa Ciência’. Agora, chegou a vez de abordar o Sars-Cov-2 e a Covid-19, sobretudo porque é importante sensibilizar e explicar o vírus e a doença, assim como travar a desinformação a que se tem assistido sobre o tema. Em entrevista ao DIÁRIO, o doutorado em Bioquímica pela Universidade Nova de Lisboa explica o processo científico a que o mundo está a assistir em directo e fala das certezas que já existem num campo onde ainda persistem tantas dúvidas. E assume sem medos que “sem ciência, não há esperança”. 

Depois de vários livros de divulgação de ciência, juntam-se agora para um livro onde se explicam os factos e mitos da Covid-19. Era importante escrever um livro sobre este tema? 

Nós achámos que sim, que era pertinente, por um lado porque vivemos num tempo em que existe um grande interesse na Covid-19 por razões óbvias, e também um momento em que há uma grande circulação de informação e de desinformação acerca do assunto. Estamos a falar de uma situação sui generis do ponto de vista da comunicação de ciência e a situação de estarmos a comunicar a ciência em directo, os avanços, os recuos, os becos sem saída, os equívocos… e isso implica de alguma forma expor o processo científico, que é um processo extremamente robusto e que nos permite, ao fim de algum tempo, obter algum conhecimento muito fiável acerca de determinado assunto. Mas é um processo que avança aos solavancos e é, em grande medida, desconhecido do grande público. Portanto, é natural que haja alguma confusão do público com as sucessivas notícias que vão sendo avançadas acerca da Covid-19, porque estão a assistir ao processo científico em directo, coisa a que não estão habituados e que não conhecem bem. Por isso, por um lado a motivação do livro é esta: de alguma forma criar uma espécie de uma versão ponderada e limpa daquilo que tem sido o avanço e o progresso da ciência nos últimos meses. Por outro, combater a falsa informação e os mitos que têm circulado com uma velocidade estonteante nos últimos meses.

 A tal infodemia de que falam no livro e que tem circulado a um ritmo quase que superior ao da pandemia… 

Sim, sabemos que as notícias falsas se propagam mais rapidamente do que as notícias verdadeiras e, quando esta pandemia eclodiu, o mundo já tinha todas as ferramentas de disseminação da desinformação, nomeadamente mente as redes sociais, a funcionar a todo o vapor. A pandemia atingenos numa altura em que as ferramentas de desinformação estão num estado extremamente desenvolvido e foram usadas naturalmente para propagar desinformação sobre o vírus, com motivações diversas. Desde as motivações para vender banha da cobra, charlatanices para tratar o vírus, até para espalhar ideias xenófobas ou racistas à boleia do vírus, ou até mesmo desinformação espalhada por responsáveis políticos no sentido de encontrar bodes expiatórios e de se desresponsabilizarem a si próprios pelas suas acções no combate ao vírus. 

Numa situação destas, em que somos confrontados com um vírus novo, que por si já coloca imensas dúvidas não só à população em geral e à própria comunidade científica, esta ‘desajuda’ das notícias falsas, das teorias da conspiração, prejudica a própria comunidade científica e o processo científico em si? 

Eu penso que esta infodemia não prejudica directamente o processo científico em si, pelo menos directamente, porque os cientistas não são afectados pela infodemia (pelo menos os que trabalham nestas áreas estão bem informados) e porque, apesar de tudo, e apesar da infodemia, na maior parte dos países do mundo, têm sido muitos os recursos excepcionais à investigação da Covid-19 e do vírus que a causa, e os próprios investigadores têm se disponibilizado a trabalhar nestes assuntos, muitas vezes deixando tudo o que estavam a fazer. O que pode acontecer é esta infodemia, nalguns casos, ser usada para desvalorizar aquilo que é o conhecimento científico. Portanto, não é o processo científico que é directamente afectado, mas afecta essencialmente as consequências desse processo científico, o papel desse processo científico ou os resultados desse na sociedade e pode afectar, sim também, os desenvolvimentos do processo científico. Por exemplo, há dias foi publicado um artigo no Journal of the American Medical Association sobre um estudo com uma amostra pequena que avaliou os níveis de oxigénio no sangue em idosos que usavam e não usavam máscaras faciais. Isto porque, de facto, na Internet, nas redes sociais, tem corrido a ideia de que as máscaras reduzem o nível de oxigénio no sangue das pessoas que as usam. E o estudo conclui, com muita naturalidade, que isso não acontece, que não há um decréscimo relevante do nível de oxigénio no sangue nas pessoas que usam máscara. Se assim fosse, os cirurgiões passariam a vida com hipoxia… De facto é muito curioso porque isto é a ciência a responder às redes sociais, ou seja, de alguma maneira, esta investigação só é feita porque existe esta infodemia e existem essas teorias desinformadas que alegam estes absurdos. Ou seja, é uma investigação motivada no sentido de esclarecer uma mentira ou uma questão levantada nas redes sociais. Não tem mal nenhum em si, porque a ciência deve esclarecer questões, mas é curioso como as redes sociais neste momento, nalguns casos ainda bastante marginais, tenham alguma capacidade de influenciar a investigação biomédica.

 E a ciência continua a ser a nossa única esperança, ou pelo menos a melhor esperança que nós temos, quer em relação a este vírus ou a outros? 

Eu diria que sem ciência não há esperança, ou seja, a ciência não basta, precisamos de outras coisas para além da ciência: precisamos de conhecer o vírus, precisamos que esse conhecimento seja aplicado, precisamos que haja solidariedade para que estas soluções que a ciência tem vindo a encontrar possam ser usadas em larga escala… mas de facto a ciência é a nossa esperança. Ou seja, sem ciência não haverá esperança de conseguirmos, de alguma forma, eliminar ou anular esta ameaça que é este vírus e outros que vão surgir de modo genérico, porque, não é novidade nenhuma: os vírus vão passando dos animais para os seres humanos, isso acontece de tempos a tempos. O próprio vírus da Sida tem uma origem animal. E isso vai continuar a acontecer, por isso, enquanto continuarem a acontecer estes fenómenos, e melhor conhecermos os vírus e os seus processos de transmissão, quanto mais ferramentas tivermos preparadas para os estudar rapidamente e para produzirmos soluções como vacinas e medicamentos, melhor poderemos viver com estes vírus, porque temos de partilhar o planeta com eles… 

Podemos dizer que este novo vírus é uma espécie de ‘wake up call’ para a necessidade de investir na investigação e conhecimentos destes vírus, destes processos zoonóticos? 

Este tipo de situações e de risco é conhecido há muito e há muito interesse por estas situações. Em muitos países europeus e nos Estados Unidos eu penso que a opinião pública estaria excessivamente tranquilizada, porque nas últimas décadas os grandes surtos, as grandes epidemias virais, de alguma forma afectaram mais o Sudeste Asiático e o Médio Oriente e afectaram de forma limitada países como Portugal e a generalidade dos países da Europa. É por isso que a opinião pública europeia e portuguesa terá ficado com a ideia, com base na sua experiência recente, que estas situações não seriam muito plausíveis ou muito prováveis de acontecer no nosso país. Penso que com esta situação, com o vírus Sars- Cov-2, foi um ‘wake up call’ nesse sentido: as pessoas ficam cientes que estes fenómenos as podem afectar e que não há nenhuma razão para, num mundo globalizado com viagens aéreas por todo o mundo, ficarem restritas a uma só área. Por outro lado, há a questão da vacina. Nós assistimos a um grande desejo que surja uma vacina para o Sars- CoV-2. Isto é muito interessante porque as pessoas voltaram a ter medo de doenças infecciosas e a ausência de medo de doenças infecciosas é o que tem levado em que muitos países tenha aumentado o movimento anti-vacinação. Em Portugal, este movimento tem uma expressão pouco reduzida, mas noutros países até é muitíssimo relevante e há uma redução significativa das taxas de cobertura vacinal o ressurgimento de doenças que estavam perfeitamente controladas como o Sarampo, que causam morte e muitos outros problemas. Neste aspecto, há aqui também o ressurgimento da valorização das vacinas, com esta valorização da ciência, embora isso não seja extensível a toda a gente. Obviamente, nos militantes anti-vacinas encerrados na sua bolha que é pouco aberta e que se auto valida, este facto da procura de uma vacina para o Sars-Cov-2 não é muito relevante. Aliás, ainda não havendo vacina, já há quem a recuse… Este renovado conhecimento da importância das vacinas, que eu penso que afecta a generalidade das pessoas, não afectará estas franjas de activistas radicais anti-vacinais, mas penso que afecta positivamente a esmagadora maioria das pessoas que de facto anseiam por uma vacina. 

Infelizmente enquanto não há uma vacina, enquanto não há um tratamento, resta-nos cumprir aquelas que são as medidas de protecção conhecidas e amplamente divulgadas: o distanciamento, o uso de máscara, a lavagem e/ou desinfecção das mãos… Essas continuam a ser as premissas que são válidas para nos proteger do vírus

Sim, essas são as premissas que qualquer um de nós pode fazer, sendo que eu gostaria de realçar que além de todas essas medidas que todos conhecem há outra que, apesar de conhecida, pela minha experiência pessoal, é menos aplicada, que é o arejamento dos espaços interiores. Esta continua a ser a medida de prevenção mais descuidada. E é importante dizer que o arejamento dos espaços interiores não é substituível por exemplo pelo uso de máscara, porque o vírus transmite-se através de partículas muito pequenas que formam aerossóis e que podem ficar durante horas em suspensão no ar e também temos pessoas assintomáticas que não sabem que podem transmitir o vírus porque emitem partículas virais enquanto falam, respiram, e isso coloca um ênfase muito grande no arejamento dos espaços e eu diria que isso é muito importante. Uma outra coisa que se pode acrescentar é que, apesar de tudo, não está inteiramente nas mãos de cada um. Na verdade, é necessário também que as autoridades competentes, que é quem tem estas possibilidades, permitam também às pessoas manterem esses cuidados. Vejamos, quando as pessoas eram, até há pouco tempo, obrigadas a frequentar transportes públicos em que as janelas não abrem e funcionam sobrelotados, isso já é uma coisa que não está ao alcance das pessoas, mas existem soluções técnicas que se podem aplicar em transportes públicos, em locais de trabalho, em restaurantes, em espaços abertos ao público de forma a que o risco seja reduzido com soluções técnicas e logísticas. É importante que as pessoas adiram às regras de distanciamento social, até porque num espaço público as pessoas têm algum cuidado, mas quando passamos para a esfera privada, para a esfera dos amigos, para a esfera dos amigos dos amigos e dos amigos dos filhos, etc, as coisas tornamse mais complicadas porque as pessoas nessas esferas mais privadas, a sensação que tenho, é que são mais flexíveis no cumprimento destas regras e penso que isso é um plano em que as coisas apresentam riscos. E depois há a organização logística e técnica dos espaços públicos, de modo a que as pessoas possam ter o máximo de segurança, embora obviamente não se possa reduzir o risco a zero… 

Até porque este vírus veio para ficar? 

Exactamente, não podemos ter uma perspectiva de quando é que a situação ficará resolvida. Portanto, temos de nos preparar para uma situação a médio/longo prazo e adaptando a nossa vida em sociedade a esta realidade, modificando os nossos hábitos e a logística do nosso espaço público e privado, nalguns aspectos, de modo a sermos resilientes ao vírus. 

Sim, não basta só implementar medidas avulsas. É importante, mas não basta mandar medidas cá para fora. É preciso que a população as cumpra e nesse sentido criar condições para que população cumpra o que está preconizado? 

É verdade que numa esfera privada, e muito privada como é o núcleo familiar, penso que é muito difícil manter o distanciamento. As pessoas têm de ter um espaço de descontracção, de segurança. Mas todos os membros desses agregados, quando estão fora de casa, sabem que são responsáveis por eles, mas também pelos membros do seu agregado. Portanto, todos têm de ter um sentido de responsabilidade porque senão estão a colocar em risco, não só os próprios, como todo o núcleo familiar que com eles coabita. E de facto é o que penso que é necessário fazer e para isso é importante que no espaço público seja reduzido ao máximo o risco de contágio e que, de modo geral, nos espaços fora do núcleo familiar, mesmo não sendo um espaço público mas com família ou amigos, haja cuidado na redução desse risco de contágio. Claro que isso às vezes é um pouco mais complicado, porque a vida vai continuando, há crianças que transitam de um agregado familiar para outro, no caso de pais com guarda conjunta… enfim, uma série de situações que faz com isto possa não ser assim tão linear. Mas o que é necessário é de facto que cada pessoa aprenda a fazer uma avaliação do risco e, de alguma forma, ver quais riscos que está disposta a correr, sendo que esses riscos são extensíveis ao seu núcleo familiar. 

Este é um vírus que não nos deixa ser egoístas ou individualistas? 

O vírus já fomentou muito individualismo. Por exemplo, aquelas imagens de tentativa de açambarcamento de papel higiénico nos Estados Unidos, ou a forma como no início da pandemia as entregas dos supermercados online demoravam imenso tempo porque as pessoas encomendavam as coisas em quantidades enormes… Acho que o vírus também pode despertar o individualismo… Penso que nesse aspecto as pessoas estão mais calmas e já perceberam que a cadeia de fornecimento de bens alimentares vai continuar a funcionar. Mas penso que é necessário ter uma certa preocupação colectiva porque cada um de nós é potencialmente um agente de transmissão do vírus e é do interesse de todos que essa transmissão seja a mais contida possível. Mesmo aqueles que estão em grupos etários em que aparentemente a doença não é grave ou não tenham factores de risco acrescido, que não tenham doenças crónicas nem sejam imunocomprometidos, mesmo esses podem transmitir o vírus a pessoas com elevado risco de mortalidade e mesmo esses podem ficar com sequelas, porque nós ainda não compreendemos bem a questão das sequelas, sobretudo as neurológicas, não sabemos até que ponto, mesmo os portadores assintomáticos podem ter algum tipo de sequelas… Há muita coisa que não sabemos… Sabemos muito coisa, a ciência avançou rápido, mas há muita coisa que ainda não sabemos. 

Por isso mais vale nos protegermos… 

Sim, a ideia que o vírus é uma gripezinha está fora de hipóteses, mas a ideia de que o vírus é inócuo para algumas faixas etárias sem complicações de saúde é uma ideia que deve levar algum sal e pimenta, porque neste momento ainda não sabemos. Além de que, mesmo pessoas de faixas etárias mais jovens, mesmo pessoas sem factores de risco, podem ter uma doença grave. Há casos conhecidos. 

SEM CIÊNCIA NÃO HAVERÁ ESPERANÇA DE CONSEGUIRMOS, DE ALGUMA FORMA, ELIMINAR ESTE VÍRUS 

TEMOS DE NOS PREPARAR PARA UMA SITUAÇÃO A MÉDIO/LONGO PRAZO E ADAPTAR A NOSSA VIDA EM SOCIEDADE A ESTA REALIDADE


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