Meu artigo no último JL:
António Damásio (Lisboa, 1944), professor de Neurociências
na Universidade do Sul da Califórnia, em Los Angeles, onde dirige o Instituto
do Cérebro e da Criatividade, é, provavelmente, o mais célebre dos cientistas
portugueses contemporâneos. Não sei por que surgem outros nomes quando, por
vezes de forma descuidada, se fala da possibilidade de um novo Nobel português.
Damásio é um produto da escola de Neurologia de Lisboa, que António Egas Moniz,
o único Nobel português em ciências, deixou. Além de ser um dos mais eminentes
neurocientistas mundiais, ele é autor de livros que comunicam ideias
intrincadas das Neurociências a um público não especialista, sendo, através de
várias traduções, lido avidamente em todo o globo.
Acaba de sair na Temas e Debates - Círculo de Leitores o seu
sexto livro de Neurociências para todos: Sentir & Saber. A Caminho da
Consciência. Os anteriores foram: O Erro de Descartes: Emoção, razão e cérebro
humano (Europa-América, 1995; edição revista e actualizada: Temas e
Debates, 2011), um best-seller traduzido em 20 línguas; O Sentimento
de Si. O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência (Europa-América, 2000;
edição revista e atualizada: Temas e Debates, 2013); Ao Encontro de
Espinosa: As emoções sociais e a neurologia do sentir (Europa-América, 2003;
edição revista e actualizada: Temas e Debates, 2012); O Livro da Consciência:
A construção do cérebro consciente (idem, 2010); e A Estranha Ordem das Coisas:
A vida, os sentimentos e as culturas humanas (idem, 2017). O autor produziu
outros livros: o seu primeiro foi a tese de doutoramento em Medicina que defendeu
em 1974 na Universidade de Lisboa: Perturbações neurológicas da linguagem e
de outras funções simbólicas. E um outro livro técnico que publicou antes
de emigrar em 1975 para os Estados Unidos e se tornar famoso foi Parkinsonismo
(Buchholz, 1974). E escreveu, mais recentemente, prefácios sobre temas inesperados:
Mourinho: Porquê tantas Vitórias? de Bruno Oliveira et al.
(Gradiva, 2006) e, com a sua esposa,Hanna (a quem o novo livro é dedicado, tal
como outros anteriores), Snu e a Vida Privada com Sá Carneiro, de Cândida
Pinto (D. Quixote, 2011).
O trabalho de investigação de Damásio tem incidido no estudo
do cérebro, dos sentimentos (como a dor e o prazer) e do comportamento humano. Analisou
o comportamento de centenas de doentes com lesões no córtex pré-frontal,
concluindo que havia curiosas mudanças na conduta social. Interessou-se por
faculdades do cérebro como a memória e a linguagem. Em O Erro de Descartes contrariou
a tese cartesiana da separação do corpo e da alma (mente). Procurou ligar as emoções
e sentimentos com o raciocínio ao defender que o sistema límbico (parte
do cérebro que controla as emoções e acções básicas) e o neocórtex (que diz
respeito ao raciocínio) estão intimamente relacionados, funcionando em
conjunto. Para Damásio, "toda e qualquer expressão racional está baseada
em emoções". Em O Sentimento de Si continuou o seu caminho em
direcção à compreensão da consciência, esse “santo dos santos” do humano. Em
Ao Encontro de Espinosa chamou à atenção para o facto de o grande filósofo
holandês, de origem lusa, ter sustentado o primado dos afectos. No Livro da
Consciência (no original How Self Makes Mind) tratou da magna
questão da origem da consciência e, no seu livro anterior, A Estranha Ordem
das Coisas, dissecou a relação entre os sentimentos, a mente e a cultura.
Li com enorme prazer – lá está, um sentimento…. – o seu
último livro, cuja edição americana só vai sair na Primavera do próximo ano.
Devido a um louvável esforço de síntese do autor, é mais curto do que os
anteriores e também mais fácil de ler por estar dividido em 46 pequenas secções.
O desafio central é a explicação da consciência, uma das actuais fronteiras da ciência.
O editor
pretendia um livro sucinto e o autor respondeu “escrevendo apenas sobre as
ideias que mais o interessam”. Praticou, diz ele, a “arte do haiku” nas
Neurociências. Pergunta Damásio: “Como
é que o cérebro constrói experiências mentais que associamos inequivocamente ao
nosso ser, a nós próprios? Sobretudo na última década, vários investigadores
destacados têm aventado respostas a esta questão embora se possa seguramente
afirmar que até agora nenhuma dessas respostas tenha sido considerada
plenamente satisfatória. Espero que as soluções adiantadas no presente livro
nos aproximem de uma resposta adequada e que sejam entendidas como um Manifesto
sobre o Problema da Consciência.” A consciência, que há alguns anos parecia tão
misteriosa, está finalmente a render-se aos porfiados esforços dos
investigadores.
O livro reparte-se por quatro capítulos: “Ser”, “Representar”,
“Sentir” e “Saber”, pois antes de se chegar ao sentir e ao saber, é preciso entender
o ser (estando as representações antes do sentir, para que este fique mais claro). Para
Damásio, que apresenta o percurso evolutivo das espécies, é muito claro que
“antes de chegarmos ao saber, é preciso percorrer o ser e o sentir”. Parte,
portanto, da base biológica. Começa por definir o que é um ser vivo: para ele
todos os seres vivos, a começar pelas bactérias, são inteligentes, no sentido
em que detectam o seu ambiente, respondendo a ele, segundo os ditames de
homeostasia. A vida tem um objectivo simples: viver o mais possível e, para
isso, é indispensável a atenção ao mundo em redor. Escreve: “Detectar é uma
forma primitiva de sentir e que resulta numa forma primitiva de saber.” De
seguida, Damásio trata o modo como os animais com um sistema nervoso simples (portanto,
multicelulares e com órgãos diferenciados) sentem: sentir é indispensável aos processos
mentais e isso é feito, através do sistema interoceptivo, a parte do sistema
nervoso que assegura a ligação com o corpo. No capítulo final, tenta entender o
extraordinário bónus da consciência, ou sentido de si, que é albergado pelo
cérebro, que mescla de modo sofisticado sentimentos e raciocínios. Mente e
consciência não são a mesma coisa: a consciência é um “estado mental enriquecido”.
O autor insiste nas ligações entre o sistema nervoso e o corpo: fala da
“inserção da mente [consciente] no teatro do seu corpo” e diz que “o sistema
nervoso, onde se inclui o cérebro, o seu âmago natural, situa-se, na sua
totalidade, dentro do território que é o corpo e permanece em constante
interacção com ele.”
Se a base da consciência assenta na biologia, as teses de
Damásio tocam em questões mais gerais da filosofia da mente e da inteligência
artificial. Segundo ele, os robôs só poderão ser conscientes se, além de
cérebro, tiverem um corpo. Antevê robôs multissensoriais que possam ser “assistentes
eficazes dos seres humanos com sentimentos reais”. E prevê que eles terão um
certo grau de consciência…
São inúmeros os prémios e distinções de Damásio. Foi feito
Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada (1995), com Hanna; foi
Prémio Príncipe das Astúrias de Investigação Científica e Técnica (2004); e
Prémio Pessoa (1992), de novo com Hanna. Tem o seu nome numa escola secundária
em Lisboa, onde, num ginásio a abarrotar, assisti ao lançamento do seu livro
anterior. Entrou para o Conselho de Estado em 2017, em substituição de António
Guterres. É membro de várias academias e instituições internacionais, como a American
Academy of Arts and Sciences e a European Academy of Sciences and Arts. Em
1995, a revista Time dedicou-lhe um longo artigo com chamada na capa. Com
o novo livro, Damásio ganha mais uma distinção, que não será menor: torna-se
mais inteligível, bem mais inteligível, para o grande público.
Recomendo o livro a todos os seres conscientes que queiram
saber o que é e de onde lhes vem esse dom. Além do mais, Damásio escreve com
elegância. Para dar um sabor do seu estilo encerro com um excerto que me deixou
a pensar: “Em certa medida, do ponto de vista histórico e evolutivo, a
consciência foi um fruto proibido que uma vez provado nos tornou vulneráveis à
dor e ao sofrimento e, em última análise, expostos ao trágico confronto com a
morte.”
1 comentário:
Este é um caminho muito promissor.
O nosso corpo é maior, é mais, do que a nossa consciência. A realidade é incomensuravelmente maior, mais, do que o nosso conhecimento, do que o nosso saber, mesmo implícito.
A representação que fazemos da realidade é como um fogo de artifício da linguagem.
Do que não esquecemos, ficamos com o osso da memória, essa construção labiríntica de que a humanidade procura a chave, não uma chave, como se a realidade fosse a memória e o seu discurso e não também o corpo e a linguagem à revelia de qualquer consciência.
O corpo e a linguagem são a memória, ainda antes de sabermos que existem e de sabermos o que eles são, o mais complexo edifício que não obedeceu a um projecto, embora possamos tentar desenhá-lo, “a posteriori”, e licenciá-lo nalguma câmara de racionalidade.
A memória é viva o suficiente para acordar, ou adormecer, quando menos desejamos ou esperamos e é muito maior e mais do que a nossa consciência. Não sei se a memória é mais ou maior do que o corpo, mas é mais inteligente do que a consciência e do que a linguagem e o discurso.
Pode ser muito difícil de apagar, sem apagar o corpo e, ainda sim, pode sobreviver através de outros corpos. E pode ser ainda mais difícil de recuperar, o que é desesperante quando dela mais precisamos.
Enviar um comentário