quarta-feira, 29 de abril de 2020

FERNANDO PESSOA SOZINHO NO CHIADO

Recebido do meu amigo Eugénio Lisboa, crítico literário e académico, publico estes versos com o prazer de sempre: 
Estrangeiro sempre me conheci,
estranho entre os homens que acho estranhos,
mal roçando um amor que demiti,
e acalentando sonhos tamanhos;
paranóico, bizarro e ausente,
homem sem corpo e de alma pouca,
alcoólico de génio, demente,
pedinte e vadio de ambição louca,
assexuado bicho desgraçado,
sorrindo em itálico reprimido,
em vez da vida, o verso bem limado,
em vez da posse, o abraço bem fingido,
- assim grande e ausente me puseram,
plantado em pedra aqui no Chiado.
Palhaço de turistas me fizeram,
só, entre papalvos, alapardado!
E aqui fui moendo o meu tédio,
cercado de gente, mas solitário,
vivendo a eternidade sem remédio,
neste horrível mundo oco e arbitrário!
Entre só mas rodeado de gente
e só sem que ninguém me atormente,
confesso que ficarei mais contente,
neste mundo sem gente de repente!
Eugénio Lisboa, que pede escusa ao grande escritor por lhe pôr na boca estas palavras álgidas e lúcidas (“Merda, sou lúcido!”, não era mais ou menos isto que dizia o seu histérico heterónimo, Álvaro de Campos?)

2 comentários:

Pessoa Caeiro Campos disse...

(Quase todas as frases são de Pessoa e heterónimos porque é preciso inventar muito pouco)

Título: Mensagem: não digas nada

Tenho escrito bastantes poemas
Que mais há a dizer?
Que pensará o muro da minha sombra?
- É, além de ser.

E na nossa comum divindade
No plaino abandonado
Os meus versos são humanidade
Voz de Deus no poço tapado

Produtos românticos, nós todos
São todos o Ideal se me falam
Podem trair ou ter sido traídos
Mas, ridiculamente, amaram
(Porque no céu tudo era falso)

E o meu relógio ocupa a noite toda
Roda de extrema sonolência
O Universo é uma cadeira suja
Ó campo! Ó canção! A ciência...

Se, ao menos, sonhasse
Ficaria triste...
É preciso fechar a porta, ó Esteves!
Já nem rimo,
E é difícil explicar a alguém o quanto isso me alegra

Num fiel regresso ao que já era bruma
O comboio partiu da outra estação
Sabe-me a náusea tanta gente
Adeus, adeus, adeus
Um balde despejado, o meu coração

Qualquer coisa caiu
E o infinito tiniu
Ah! Foi a folha de estanho da pequena dos chocolates
Mais o sistema solar e a Via Látea e o Indefinido

Carlos Ricardo Soares disse...

O Fernando Pessoa, como muitos dos humanos que nos habituamos a admirar, sem dificuldade e até a cultivar, tal é o fascínio que exercem, pela obra e pelo que foram/são, é criação dele próprio, é uma obra de arte de si próprio, e tinha plena consciência disso, ao declarar "A minha arte é ser eu". Quem diria melhor? E merece que se fale dele e da sua obra.
A toda a volta da rua onde sentaram a sua estátua, podiam revestir as paredes exteriores com frases e versos que ele escreveu, que não falta material de beleza e riqueza inigualáveis.
Era um homem que vivia, como qualquer um, dentro do seu universo, de uma narrativa pessoal e social muito própria e, no caso de Pessoa, muito especial, de que parecia ter o comando, os objetivos, os mapas, os instrumentos, o leme e a consciência aguda disso e do que tudo isso representava em múltiplas perspetivas plausíveis, incluindo a dele (que eram várias). Não tinha nada de desgraçado e era feliz, à sua maneira, porque não se sentia frustrado e adorava a cidade palco, Lisboa, ou espaço de interacção, representação dos papéis que ele, com incrível determinação e lucidez, escolhera e criara para si. E sentia-se como peixe na água dentro da sua própria narrativa. Muitos dos sentimentos e dos pensamentos que todos temos e frequentemente expressamos, como mundo oco e arbitrário, cercado de gente mas solitário, ficarei contente neste mundo sem gente de repente...Fernando Pessoa, pura e simplesmente, não conhecia.

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