Texto de Guilherme Valente publicado no Sol em 19/10:
 Uma  simplificação inocente de efeitos perversos*
Se disséssemos a um camponês do século XV que é a Terra  que anda à volta do Sol e não o Sol à volta da Terra, ele diria que éramos cegos ou estúpidos!
As palavras usadas com imprecisão e os temas tratados com  um conhecimento insuficiente  da matéria alimentam erros  gritantes e podem induzir a atitudes perversas.
 A ignorância pode ser comparada a uma miopia. E o conhecimento a umas lentes bem graduadas. Quando o míope olha o mundo vê-o com os olhos que tem, mas  não o vê como na realidade  se apresenta e deve  ser visto.
 Com os óculos do conhecimento  também as coisas se revelam ao que era menos conhecedor num outro nível de realidade e de verdade.
Vêm estas considerações a propósito da crónica de José António Saraiva -  JAS - de quem aprecio muito do que escreve,  sempre indutor de reflexão -  publicada no Sol de 4/10, em que discorre sobre  “raças”, as  características  psicológicas  e funcionais que o Autor  a elas associa, e racismo.
Na meritória preocupação de tudo tornar claro e simples e  ir  ao encontro do olhar  mais básico,  JAS  parece ter-se esquecido  agora que as coisas nem sempre são como parecem ser ao olhar menos informado ou  ingénuo.
Escreve JAS: “Também se diz que as `raças` [teve  a prudência das aspas] são todas iguais , que não há diferenças, e quem se atreve a dizer o contrário é considerado estúpido”.
E com estas considerações  eis-nos na confusão:
 1.   Na verdade, a ciência ou a simples observação  informada não   dizem  que os grupos humanos  (“raças” para JAS) são todos iguais. O que dizem é que não há “raças”  no sentido  ideológico que foi sendo atribuído à palavra. [“Quem se apossa das palavras, apossa-se das mentes”, é isto o  “politicamente correcto”].   E quem “se atreve a dizer o contrário”  não é  “estúpido”, é  simplesmente mal informado, como nesta  matéria parece revelar-se  o meu admirado Amigo JAS.
2.  Se JAS quisesse dizer que a generalidade dos grupos humanos apresenta características físicas próprias dominantes, sim, isso é evidente. Mas poderia ir mais longe e melhor: todos os seres humanos são diferentes. Mesmo os gémeos perfeitos. É  isso mesmo que o tal “fulano que olha para a esquerda, para a direita, para a frente e para trás no café” pode observar e descobri,  se estiver alertado para isso.   Uma maravilha da natureza, esse incontrolável “jogo dos  possíveis”, diversidade individual que garante a  possibilidade de sobrevivência da espécie.
 De facto,  aquilo que JAS diz ser “o observável” não é o que parece ser e  é muito mais do que parece se for visto   com os óculos do conhecimento. E  sem preconceito.  Isso mesmo  me exibiu um domingo na Feira do Livro  o seu tio José Hermano Saraiva, chamando a minha atenção para o mosaico “belíssimo” de tipos genéticos humanos  que passavam (e paravam!) no stand da Gradiva.
Mas essas diferenças não têm o significado  que o meu Amigo JAS surpreendentemente  lhe atribui.
3. A associação, a implicância que para JAS  existiria entre  características  que julga ver  nos vários grupos humanos (“raças” para ele) e os respectivos traços físicos  (dominantes, acrescento eu), é um  erro grosseiro. Porque a  única coisa que pessoas da mesma cor de pele (no fundo, sempre os Negros...) compartilham é a… cor da pele
Registe-se por curiosidade  en passage que na generalidade das suas etnias os Chineses são mais brancos do que os “brancos”,  como eu vi e os primeiros mareantes portugueses que lá aportaram se espantaram.
 O carácter engenhoso que JAS distingue nos Chineses - mas inúmeros não o são, como há muitos portugueses e... abexins que o são -  não tem nada a ver com os traços físicos dominantes nos Han. Tal como  a sua impressionante riqueza de hoje não está ligada aos olhos mais ou menos em bico que os caracteriza fisicamente.  Chineses que foram  um século antes muito pobres,  e antes ainda,  durante milénios, os mais ricos do planeta. E não consta que os olhos em bico deles  tenha mudado.
Do mesmo modo, nem todos os Judeus são músicos e cientistas, nem todos os Filipinos cantores, como poderia parecer  pelo facto de serem   filipinas quase todas as excelentes cantoras que animavam as (minhas) noites de Macau.  E nem todos os negros são bons,  nem todos os “brancos” maus.
E  se for como JAS parece pensar, porque distingue uma suposta persistência dos Alemães... se são brancos como outros?  Ou estará a  construir mais uma “raça”? E  os nórdicos”, que diz muito organizados, porque os distingue  dos outros se os considera também  brancos? 
4. Quanto ao racismo, o que o define não é a desigualdade de direitos atribuída  a diferentes grupos humanos pela sua suposta superioridade, como JAS diz. Se fosse,  chamar-se-ia racismo, por exemplo, à desigualdade legal de direitos entre mulheres e homens (até há bem pouco tempo prevalecente no nosso País), ou à desigualdade entre os senhores da terra e os servos da gleba na Idade Média, ou entre  nobres e burgueses no Ancién Régime,  ou entre analfabetos e os alfabetizados, etc.
 O que é  afinal o racismo?  É precisamente a associação  errada entre traços físicos,  característicos ou predominantes nas várias comunidades humanas, e qualidades intelectuais e de carácter (a organização nos Nórdicos,  a persistência nos Alemães, o engenho nos Chineses,  para não imaginar as que se atribuem  aos deserdados dos Negros). Ideia que é científica, verificável e  observavelmente   falsa.
E se fosse verdadeira, não poderia  legitimar uma desigualdade de direitos e qualquer tipo de discriminação,  neste caso tem JAS  toda a razão.  O que  torna o racismo inadvertido  e insuspeitado  que exibe num racismo a que chamo  benévolo. Mas nem  por isso menos lamentável.
5. As características  físicas, como a cor da pele, forma das pálpebras, cor dos olhos, textura dos cabelos, etc., são geneticamente determinadas, o que não significa que não se  matizem  na sucessão das gerações, das combinações, na inserção migrante noutros meios  físicos ou na transformação dos habitats.
Entre a minha primeira estada em Macau nos anos sessenta e a última nos anos 90, a transformação física operada nas jovens chinesas foi gritante. Leite, hambúrgueres e... abertura ao mundo  obligent. 
Os descendentes de emigrantes japoneses no EUA são em média mais altos do que os pais e deixa de se verificar neles ali a incidência de  doenças que se manifestava no Japão, passando a ter a do país de acolhimento.
A propósito, lembro ainda que um estudo  americano comprovou  estatisticamente a intrigante nítida vantagem na aprendizagem e do domínio da Matemática dos alunos extremo-orientais, especialmente chineses. Significativamente, um outro estudo viria a verificar  que essa superioridade, bem nítida estatisticamente, se circunscrevia aos alunos orientais de cultura confuciana e...às primeiras gerações de emigrantes**. Nas seguintes entravam na média, com as variações individuais normais.  Facto que remetia para uma explicação de carácter cultural. Evidência que determinaria uma sucessão de estudos sobre as razões do desenvolvimento explosivo de países e territórios do Extremo Oriente, então designados por “pequenos dragões”, Coreia do Sul, Singapura e Hong Kong. São todos de dominante tradição cultural confuciana! Sem prejuízo, claro, de que essa clara superioridade na Matemática possa estar ligada a particularidades civilizacionais mais complexas.
Se quisermos descobrir por que estão os Chineses, entre todos os grupos, sobre-representados nas universidades da Califórnia, e, porventura, os Negros ou Hispânicos sub-representados, não encontraremos uma resposta na genética .
 6.  Importa ainda dizer  que a capacidade de um indivíduo para algum tipo específico de inteligência depende de factores genéticos. O que não é verdadeira é a ideia de que haja grupos de genes que distingam com algum tipo especifico de inteligência grupos inteiros de seres humanos  (JAS diz “raças”).
Não há “o” gene da inteligência – na verdade, milhares deles interferem na formação da capacidade intelectual.
 Definir inteligência, se isso fosse possível,   é muito complicado: além do raciocínio lógico, há outras características que também podem ser consideradas como inteligência, nomeadamente a capacidade musical.
O  talento musical, o poder de visualizar ou raciocinar de forma abstracta, por exemplo, são afectados pelos genes,  mas  não são estabelecidos pelos mesmos que influem  nas  características  físicas associadas ao facto de sermos “brancos”,  extremo-orientais ou negros.
 E também  não há, refira-se, nenhuma relação entre esse conjunto de genes responsáveis pelas características físicas,   pigmentação da pele, por exemplo, e os que formam o sistema nervoso central.  Um negro africano pode ser e é vulgar que seja  geneticamente mais parecido com um branco português como eu do que com um vizinho negro.
 Por isso a ciência defende que o conceito de “raça” (enquanto grupo que compartilharia características físicas e composição genética) simplesmente não existe. Raça é uma palavra sem nenhuma fundamentação na realidade biológica.
 7. Para terminar ludicamente,  proponho a JAS um  exercício prático, porventura iluminador:
 Em que raça coloca os meus filhos, graças a Deus bem diferentes de mim? Sou um pai  com ascendência  nórdica, uma genealogia referenciada, pelo menos, ao “decepado” de Toro e todas as componentes genéticas de um português nascido a norte do Tejo; e uma Mãe oriental, sino... não sei o quê, por ser  bem diferente do tipo dominante nas chinesas do Sul que bem conheci, de início todas iguais, mas  que aprendi a distinguir.
 E em que raça se colocará a si próprio JAS,  claramente, parece-me, com uma riquíssima ascendência semita  magrebina? Bem diferente, aliás, da sua Mulher, que eu diria tão diferente de si como a minha de mim.
 8. Tudo Isto para não falar da etiologia do racismo, da execrável pulsão racista, que como estamos todos os dias a ver não exclui carrascos e vitimas de nenhuma cor de pele.
 Um abraço do seu amigo, admirador e... editor com orgulho,
Guilherme Valente
 *  Abordarei a questão interessante do binómio  grupos humanos/culturas num próximo artigo.
** Note-se que essa vantagem dos alunos chineses, coreanos, de Singapura e de ... Macau  continua acentuadamente a ser verificada nas provas  comparativas internacionais [note-se que com dois anos de exames introduzidos  por Nuno Crato a prestação dos alunos portugueses subiu, ultrapassando logo a média da OCDE!]. Mas deve-se, entre outros factores específicos, à qualidade da escola, ao prestígio dos professores e ao respeito por eles,  ao valor da educação na tradição asiática, sobretudo a confucionista, à importância que as famílias lhe atribuem.  Evidências  para quem  tenha vivido em Macau. O que não se deve seguramente é aos mesmos genes que determinam os  generalizados olhos em bico deles...
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