O artigo de Fátima Bonifácio publicado no passado fim-de-semana no Público,
e que deu origem a enorme polémica, assenta em ideias e pressupostos
errados. Diz da Europa e de Portugal o que não são. Vê as culturas, a
História, os africanos e as suas aspirações, a sua presença secular em
Portugal, a realidade cultural e demográfica do país, o espírito e o
modo da nossa terra, como não são. Encerra perversamente os seres
humanos num destino fatídico, como a História inquestionavelmente não
permite. O resto são banalidades óbvias e estados de espírito.
O
‘nós’de Fátima Bonifácio não é o ‘nós’ europeu, da herança grega e
cristã. É o seu oposto. Não é o ‘nós’ de Erasmo, Voltaire, Condorcet,
Goethe ou Churchill, de S. Tomás e Francisco, nomes que agora me
ocorrem. Das grandes figuras do Renascimento, do Iluminismo e da
Modernidade, da solidariedade humana, de Beethoven e Bach, da grande
literatura e arte europeias, que espelham o cosmopolitismo,
universalismo e humanismo que fizeram a Europa – e que a Europa levou ao
mundo, até à Índia.
O
artigo de Fátima Bonifácio é o oposto. Lembra o pior da Europa. O pior
que no passado venceu com o sacrifício de milhões de europeus. E assim
se foi fazendo mais Europa. O artigo de Fátima Bonifácio sugere (ou
remete para) o que a essência da Europa não é. Pelo que pressupõe,
ofende o espírito e o sonho europeus - hoje, de facto, confrontado com o
desafio singular da torrente de migrantes. Que sobretudo ao Ocidente se
deve.
O
artigo de Fátima Bonifácio ignora o que é a Europa, o que fez a Europa,
de onde veio a Europa, de onde chegaram os europeus, de onde viemos
todos nós. Leia-se a Eneida!
O
que informa o artigo da doutora Fátima Bonifácio não é a História, não é
conhecimento sociológico, não é exercício de razão, não é sequer um
mero olhar sem preconceito da realidade do país e da cidade, das ruas
por onde circula, das pessoas com quem se cruza, da vida à sua volta.
Ao
contrário do que sugere, milhares de cidadãos portugueses africanos,
com filhos e netos tão portugueses como os filhos e netos da autora do
artigo, trabalham honestamente em todas as áreas profissionais. Dos mais
qualificados, alguns, a uma maioria menos qualificada, porque a maior
parte deles terá nascido na pobreza, nos guetos de exclusão e violência,
onde os pobres e os negros se confundem. Vieram, todos eles, para se
integrar. Desejam todos eles, consciente ou inconscientemente, ter
acesso às mesmas oportunidades oferecidas aos que nascem noutros
ambientes. Igualdade de oportunidades - as mesmas, pelo menos, que a
autora do artigo teve.
Porque as quotas – que considero, aliás, inúteis e perversas – não são apenas as que agora se pretendem atribuir, errada e americanamente, a negros e ciganos. São também ‘quotas’ porventura social e nacionalmente mais devastadoras: as vantagens iníquas de que outras minorias beneficiam – nascimento, estatuto, relações políticas e académicas, dinheiro, amiguismo, nepotismo, etc. Não é preciso ser doutor, historiador, sociólogo, para o saber e ter visto. E o tal facilitismo, como o artigo o descreve, tem obviamente ‘beneficiado’ esmagadoramente os ‘brancos’.
Porque as quotas – que considero, aliás, inúteis e perversas – não são apenas as que agora se pretendem atribuir, errada e americanamente, a negros e ciganos. São também ‘quotas’ porventura social e nacionalmente mais devastadoras: as vantagens iníquas de que outras minorias beneficiam – nascimento, estatuto, relações políticas e académicas, dinheiro, amiguismo, nepotismo, etc. Não é preciso ser doutor, historiador, sociólogo, para o saber e ter visto. E o tal facilitismo, como o artigo o descreve, tem obviamente ‘beneficiado’ esmagadoramente os ‘brancos’.
O
artigo da doutora, historiadora, socióloga Fátima Bonifácio parece
ignorar muito sobre a História e tudo sobre as culturas – que considera
petrificações imutáveis, que não são.
Ignora
as relações interculturais, e a imensa literatura sobre a permanente
reelaboração das culturas e a integração dos que as transportam; e as
dramáticas excepções disso (caso dos ciganos) não permitem a
generalização radical que o artigo faz.
Ignora
a história e a demografia de Portugal, onde, entre migrantes de todo o
planeta, desde o século XIII, milhões de africanos se integraram e
cruzaram, sendo hoje parte constituinte da população do Portugal que
somos.
Bastaria a doutora Fátima Bonifácio ter lido a História da Cultura em Portugal, de
António José Saraiva - incontornável para uma doutora em História –,
para não veicular a ignorância e a arrogância doutorada que caracteriza
o artigo.
O
artigo de Fátima Bonifácio é, nalgum grau, o reverso equivalente,
esperado, dos artigos do activismo negro, melhor, negro-muçulmano
islamista - dito anti-racista, mas racista, de facto - a que as
direcções do Público vêm dando espaço e voz.
Dou
apenas dois exemplos. Os artigos e a divulgação enfática de afirmações
do senhor Mamadou Ba - um ‘Fátima Bonifácio negro’, equivalente, no seu
grau e forma próprio, diferente no objectivo concertado que é o dele. E
uma Carta ‘racista’, subscrita por dezenas de nomes, aparentemente de
negro-muçulmanos estrangeiros, intitulada ‘Não queremos um museu contra
nós’. É uma peça da campanha contra um Museu dos Descobrimentos, momento
da tentativa de chantagem que tentaram fazer com o passado histórico de
Portugal - realização admirável, com as sombras da época e da obra
humana, mas glorioso motivo de orgulho para toda a humanidade. Tanto
quanto me lembro, nenhum dos subscritores dessa Carta era identificado
pelo jornal. Uma carta anónima, portanto, grau zero do jornalismo. Para
além de mim, não me lembro de ter ouvido ou lido qualquer outro
protesto.
O objectivo desse activismo ‘anti’- racista – numa aliança que, com nuances, é
em França designada islamo-esquerdista – é gerar conflitos étnicos na
sociedade portuguesa. Usando como carne para canhão a gente frágil que
procurou paz e futuro em Portugal, querendo mantê-la no gueto de
miséria, inferioridade e violência em que vive. Gueto de que o Estado e
todos nós temos de fazer mais para que eles possam sair.
Não
tendo - penso - a intenção organizada desse activismo negro muçulmano
esquerdista, as generalizações e a ignorância patente no artigo da
doutora Fátima Bonifácio são cúmplices objectivos dela, alimentam-na,
dão-lhe pretexto e força.
Duas palavras sobre o patético editorial da Direcção do Público.
Intrigante é parecer ignorar que não é publicando ‘lixo’ negro e
branco, dos vários quadrantes políticos, que o jornal passa a ser (volta
a ser...) como diz que é. Lixo é lixo. Venha ou não envolto em todos os
diplomas imagináveis de suposta excelência e na arrogância triste mais
do que suspeita.
Mas
ainda bem que esse artigo e os reversos idênticos dele foram
publicados. Se não forem contagiantes e podendo ser contestados, é útil
que os medos, os ódios, as frustrações e as pulsões se revelem. Que
purguem... se a purga for com palavras.
Guilherme Valente
1 comentário:
O artigo de Fátima Bonifácio e as reacções a que deu lugar fizeram-me recordar uma afirmação que ouvi, quando era garoto, a uma senhora muito católica, em que ela defendia que “era necessário haver pobres para dar lugar à caridade”.
De facto, o artigo de Fátima Bonifácio pode ser muito mauzinho mas deu-nos a oportunidade de ler e ouvir uma vasta colecção de comentários arrasando o artigo e, de caminho, a autora. Podemos, assim, ficar descansados. A elite intelectual nacional está viva e recomenda-se. Não há Fátima que resista.
Deste comentário de Guilherme Valente destaco apenas a opinão acerca das “quotas”, com a qual concordo, e registo a preocupação em não meter negros e ciganos no mesmo saco. Aliás, podemos contar onze referências a negros/africanos, todas elas laudatórias e apenas duas a ciganos, mas de uma forma que se diria anódina.
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