sexta-feira, 19 de julho de 2019

NEUROMITOLOGIA

Texto enviado por João Nunes, Neurologista

Cérebro, Neurologia, Mitos e pseudociência

O Cérebro, as Neurociências e a Neurologia estão na berra.



Não passa uma semana sem que sejamos confrontados com notícias espetaculares e reveladoras sobre o Cérebro e o seu funcionamento.
O interesse da opinião pública é tal que um comentador na área da ciência chegou a referir que se Andy Warhol estivesse vivo o motivo das suas próximas serigrafias seria o cérebro, deixando para trás a pobre Marilyn Monroe.

“Este é o aspecto do cérebro quando estás apaixonado”, “Descoberto o centro cerebral da religião”, “Estudo comprova que os mais distraídos são os mais inteligentes”, são exemplos de cabeçalhos encontrados na comunicação social ou nas redes sociais, frequentemente acompanhados de imagens vibrantes e coloridas do cérebro humano.
Ou então “investigadores da Universidade X (a preencher consoante a semana) descobrem teste para o diagnóstico precoce de Alzheimer”, ou “novo estudo representa promessa na cura do Parkinson”.

De onde vem todo este interesse pelo Cérebro e pelas Neurociências?
Para além do apelo natural da descoberta dos segredos por detrás do centro que comanda todas as nossas acções e emoções, e que tem motivado cientistas ao longo de séculos, a popularidade recente junto das massas tem a ver, entre outros motivos, com o aparecimento de métodos de imagem que analisam o funcionamento do cerebral, estudando as áreas que estão a consumir mais oxigénio quando o cérebro está a realizar uma determinada função.
E´o caso da chamada Ressonância Magnética Funcional (RMf), que permite a obtenção de imagens de diferentes cores do cérebro, consoante determinada zona está mais ou menos ativa.
Por exemplo se o indivíduo mexer a mão direita é possível através deste método ver uma área cerebral  a “iluminar-se”, a ficar vermelha por estar mais ativa, neste caso uma zona do lado esquerdo do cérebro.
Estes métodos de estudo com imagens, coloridos, apelativos, são obviamente mais interessantes para o público generalista.
Mas há cuidados a ter com esta nova “janela da mente”, obrigando a tratamento estatístico rigoroso dos dados obtidos, e se tal não acontecer podem ser obtidos os resultados que os investigadores antecipadamente querem, o chamado viés de confirmação, ao atropelo do método científico, o que pode ser inconsciente ou nem tanto.
E´ possível, com “Photoshop” estatístico, arranjar atividade cerebral onde ela não existe, como aconteceu num estudo famoso, provocatório, em que os autores, com a utilização da RMf, “demonstraram” atividade, obviamente falsa, no cérebro dum salmão morto, só pelo recurso a tratamento estatístico levado ao extremo.
As notícias que localizam as emoções em diversos pontos do cérebro, devem ser encaradas de forma saudavelmente cética. Nestes casos o que está em jogo são geralmente múltiplas áreas associadas e não uma única área “mágica”.

O grande número de notícias relacionadas com o Cérebro e as Neurociências, tem também a ver com a necessidade de promoção dos Centros de Investigação, de forma a conseguirem visibilidade e financiamento para os seus projectos. Isto faz com que estudos preliminares, “in vitro”, ou em animais, sejam promovidos de forma prematura, em situações de doenças neurológicas com grande visibilidade junto da opinião pública, como a Demência de Alzheimer ou a doença de Parkinson, por exemplo. Por isso há quem defenda que no título da publicação ou artigo científico deve ser referido que o estudo é feito em animais ou que ainda está na fase do tubo de ensaio.

Outros mitos associados a esta área são relativamente inócuos, embora desprovidos de senso comum.
Um dos mais populares, com a ajuda de séries televisivas e filmes, é a de que usamos apenas 10% da nossa capacidade cerebral.
Colocado de forma simples: é falsa a ideia de que só utilizamos um décimo do nosso potencial cerebral, não faria sentido que um órgão que gasta mais de um quinto do total da energia do organismo, tivesse apenas uma pequena parte a trabalhar. Há hoje evidência de que o cérebro está sempre a funcionar na sua totalidade, mesmo durante o sono, embora as áreas mais ativas mudem consoante a tarefa.

Uma outra ideia errada na área das neurociências é a de que a nossa personalidade e forma de pensar dependeria mais de um lado do cérebro. Assim os indivíduos com o lado direito dominante seriam mais criativos, imaginativos, intuitivos e artísticos. Os que tivessem como lado dominante o esquerdo seriam mais organizados, lógicos, analíticos e proficientes a matemática. Este é um conceito errado segundo os atuais conhecimentos neurológicos, embora já tenha permitido a venda de milhões de livros de pseudopsicologia. Todas as tarefas complexas que o nosso cérebro realiza exigem participação dos dois lados do cérebro, existindo extensas ligações entre ambos os lados. Podemos falar do exemplo da linguagem, embora o lado esquerdo seja fundamental para a compreensão e expressão da linguagem, o lado direito é determinante para compreender o contexto e tom das palavras. E na matemática, enquanto o lado esquerdo é importante para a resolução de equações, o lado direito dedica-se a comparações e estimativas.

O interesse que a Neurologia e Neurociências motivam tem também a ver com a nossa procura do Santo Graal cerebral, a  pílula ou suplemento mágico que nos aumente a memória e a concentração, que nos torne mais inteligentes, que nos livre do declínio cerebral associado à idade, ou nos torne as máquinas intelectuais que a atual sociedade ultracompetitiva exige.
Há uma indústria de milhões à volta deste problema, com produtos com designações sugestivas , muitas vezes com nomes associados ao elefante e à sua proverbial memória, comercializados em farmácias, em lojas de produtos naturais e online.
Substâncias como o Omega 3, o Gingko biloba, o Ginseng, o Chá Verde, as bagas Goji e uma miríade de Vitaminas, entre muitos outros, são usados na produção de suplementos milagrosos.
Qual o sumo que se extrai desta multidão de embalagens, suplementos, anúncios? Zero ou muito perto disso. O efeito destes suplementos a nível das nossas capacidades cognitivas ou da memória é praticamente inexistente, e não digo completamente inexistente porque produtos como as Vitaminas ou o Omega 3 poderão ter interesse em grávidas e em pessoas com déficites nutricionais, por exemplo a suplementação com vitaminas do complexo B pode ser necessária em indivíduos com regime alimentar Vegan.

Outra face da mesma moeda é a moda atual, sem qualquer evidência científica, de que é importante, para a nossa saúde, incluindo o funcionamento cerebral, evitar determinados alimentos como o glúten ou o leite animal. Esta corrente só pode ser entendida como uma forma de marketing para produtos que não contenham aqueles “venenos”, e que hoje em dia se encontram por todo o lado. O glúten e o leite foram utilizados tranquilamente pela raça humana durante milénios, mas são agora denunciados como a fonte de todos os males do Homo sapiens ou quase.
A realidade é que, tirando situações muito raras, como é o caso da Doença celíaca no caso do Glúten, ou das pessoas com uma deficiência grave de Lactase (enzima responsável pela digestão da Lactose constituinte do leite) no caso do leite, é perfeitamente seguro e útil o consumo de glúten e de leite na nossa alimentação.
Uma alimentação variada e equilibrada é necessária e suficiente para a nutrição do nosso corpo, incluindo o cérebro.

Outra indústria de milhões associada a uma pretensa acção sobre o funcionamento cerebral é a da venda de produtos de software de treino cerebral, geralmente online e sob a forma de aplicações.
Uma pesquisa feita junto de lojas online de aplicações para telemóveis, revela dezenas de aplicações promovidas com o intuito de manter ou melhorar a memória e a capacidade intelectual. Infelizmente não há estudos fiáveis que mostrem a utilidade de qualquer destes programas, pelos menos isoladamente.
Melhoram a tarefa que é treinada durante o jogo de computador, mas não são úteis no dia a dia, não melhoram a capacidade de ir às compras num idoso com dificuldades cognitivas, ou os resultados dos exames num estudante universitário por exemplo. A promoção dos pretensos efeitos miraculosos destes produtos sobre a capacidade cerebral levou a uma tomada de posição conjunta de cientistas da área a desmitificar o seu efeito.
A sua utilização nos indivíduos com declínio cerebral poderá, no entanto, ser complementar de outros aspetos tão ou mais importantes, como a atividade física, a interacção social, a leitura, tocar um instrumento musical, etc.

A patologia neurológica, dada a riqueza de sintomas que determina, é também fonte de muitos mitos populares e ideias erradas. Um apanhado exaustivo exige o espaço de um livro de texto. Vou referir alguns dos mais frequentes:
O mito de que Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC) são doenças exclusivamente dos idosos. Embora sejam mais frequentes na população mais idosa, os AVC podem ocorrer em jovens, pelo que mesmo em grupos etários mais baixos seja importante a prevenção dos fatores de risco conhecidos, como a Hipertensão, a Diabetes, o Tabagismo, a Obesidade e os valores altos do Colesterol.
Fulcral é a ida emergente à Urgência hospitalar em caso de suspeita de AVC, com recurso ao INEM e à via verde hospitalar, o que permite às vezes desobstruir o vaso entupido que está a causar o problema. Para mais esclarecimentos deve ser consultado o site da DGS a este respeito.
Algumas pessoas ainda têm a ideia errada de que a Epilepsia é uma doença associada a menores capacidades intelectuais. A realidade é que, tirando algumas formas graves e raras , os doentes epiléticos podem fazer uma vida normal, com um controle quase total das crises , o que pode ser atribuído, em parte, à eficácia e variedade da medicação atualmente existente.
Ainda no campo das crises epiléticas existe a noção errónea de que deve ser colocado um objeto na boca da pessoa em crise para evitar que morda a língua, mas tal só vai dificultar a respiração da pessoa, que deve ser colocada de lado, num sítio em que não se magoe, e sem nada a dificultar a circulação de ar.
Outro conceito errado tem a ver com as Demências. Embora a grande maioria seja progressiva e irreversível, existem casos de Demências tratáveis, pelo que é importante a consulta por um médico Neurologista. Exemplos são o déficite de vitamina B12, as Hidrocefalias com acumulação excessiva de líquido no interior do cérebro ou os Hematomas cerebrais crónicos provocados por traumatismos cranianos, entre outras causas tratáveis.

No que diz respeito às doenças neurológicas, um aspeto que prejudica também o tratamento dos pacientes, é o recurso às terapias alternativas.
O seu uso e abuso leva ao atraso no início de tratamentos eficazes, pode levar à interferência das mezinhas com os medicamentos úteis, e troca falsas esperanças por gastos elevados em inutilidades.
Como exemplos apontaria a promoção da acunpuntura, da homeopatia, da osteopatia, da naturopatia e outras no tratamento de diversas doenças neurológicas.
Não há qualquer evidência científica séria que as suporte, mas são promovidas nos meios de comunicação social, inclusive do Estado, como é típico dos programas televisivos matinais.
Relativamente à Acunpuntura, que tem sido publicitada para o tratamento de doenças Neurológicas como a Enxaqueca, existem estudos que mostram que não é mais que um placebo, com resultados iguais quer seja praticada por principiantes ou por mestres, existindo inclusive um estudo em os resultados foram iguais usando agulhas de Acunpuntura ou palitos!
A Osteopatia e a as terapias Quiropráticas utilizam manipulações cervicais, apregoadas como tratamento para quase tudo, mas uma das complicações possíveis já descrita e publicada em revistas científicas, é o facto destas manipulações cervicais poderem danificar artérias do pescoço que levam sangue para o cérebro e poderem causar acidentes vasculares cerebrais.
  
Mais grave é o canto de sereia com que são atraídos doentes desesperados, pelas clínicas internacionais com tratamentos de pretensa base científica, mas ainda em fase de investigação, como é o caso das células estaminais e das vacinas dendríticas.
Os doentes pagam fortunas em troca de tratamentos experimentais, ainda ineficazes ou pouco seguros, acabando por regressar ao nosso SNS piores do que quando foram para essas clínicas, como é triste exemplo famosa clinica alemã, que conta com inescrupulosos angariadores nacionais, principalmente junto de doentes oncológicos.

Falando do Cérebro e de Tumores, outra dúvida com que muitos se confrontam diz respeito à associação dos telemóveis e dos tumores cerebrais.
Não há estudos sólidos que mostrem aumento do número de novos casos de tumores cerebrais após o início da utilização maciça de telemóveis. Tambem não há relação demonstrada entre este e outros tipos de tumores com as redes Wifi, 4G ou 5G, ou micro-ondas, que é, hoje em dia, uma das teorias da conspiração prediletas na internet.

Em conclusão, neste tempo de “fake news” devemos manter um saudável ceticismo, e daí a importância da literacia científica na área das neurociências.
Desconfiemos das fabulosas descobertas e curas espantosas promovidas nos media e redes sociais, mas que não têm grande repercussão junto da comunidade científica.
Se parece demasiado bom para ser verdade é porque provavelmente não é.
Desconfiemos dos suplementos miraculosos, dos programas de software que nos vão pôr a pensar melhor, e das curas e tratamentos alternativos, cuja utilidade é principalmente financeira para quem as pratica.

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