Texto enviado por João Nunes, Neurologista
Cérebro, Neurologia, Mitos
e pseudociência
O Cérebro, as
Neurociências e a Neurologia estão na berra.
Não passa uma semana sem que sejamos confrontados com
notícias espetaculares e reveladoras sobre o Cérebro e o seu funcionamento.
O interesse da opinião pública é tal que um comentador na
área da ciência chegou a referir que se Andy Warhol estivesse vivo o motivo das
suas próximas serigrafias seria o cérebro, deixando para trás a pobre Marilyn
Monroe.
“Este é o aspecto do cérebro quando estás apaixonado”,
“Descoberto o centro cerebral da religião”, “Estudo comprova que os mais
distraídos são os mais inteligentes”, são exemplos de cabeçalhos encontrados na
comunicação social ou nas redes sociais, frequentemente acompanhados de imagens
vibrantes e coloridas do cérebro humano.
Ou então “investigadores da Universidade X (a preencher
consoante a semana) descobrem teste para o diagnóstico precoce de Alzheimer”, ou
“novo estudo representa promessa na cura do Parkinson”.
De onde vem todo este interesse pelo Cérebro e pelas
Neurociências?
Para além do apelo natural da descoberta dos segredos por
detrás do centro que comanda todas as nossas acções e emoções, e que tem
motivado cientistas ao longo de séculos, a popularidade recente junto das
massas tem a ver, entre outros motivos, com o aparecimento de métodos de imagem
que analisam o funcionamento do cerebral, estudando as áreas que estão a
consumir mais oxigénio quando o cérebro está a realizar uma determinada função.
E´o caso da chamada Ressonância Magnética Funcional (RMf),
que permite a obtenção de imagens de diferentes cores do cérebro, consoante
determinada zona está mais ou menos ativa.
Por exemplo se o indivíduo mexer a mão direita é possível
através deste método ver uma área cerebral
a “iluminar-se”, a ficar vermelha por estar mais ativa, neste caso uma
zona do lado esquerdo do cérebro.
Estes métodos de estudo com imagens, coloridos, apelativos,
são obviamente mais interessantes para o público generalista.
Mas há cuidados a ter com esta nova “janela da mente”, obrigando
a tratamento estatístico rigoroso dos dados obtidos, e se tal não acontecer
podem ser obtidos os resultados que os investigadores antecipadamente querem, o
chamado viés de confirmação, ao atropelo do método científico, o que pode ser
inconsciente ou nem tanto.
E´ possível, com “Photoshop” estatístico, arranjar atividade
cerebral onde ela não existe, como aconteceu num estudo famoso, provocatório,
em que os autores, com a utilização da RMf, “demonstraram” atividade, obviamente
falsa, no cérebro dum salmão morto, só pelo recurso a tratamento estatístico
levado ao extremo.
As notícias que localizam as emoções em diversos pontos do
cérebro, devem ser encaradas de forma saudavelmente cética. Nestes casos o que
está em jogo são geralmente múltiplas áreas associadas e não uma única área
“mágica”.
O grande número de notícias relacionadas com o Cérebro e as
Neurociências, tem também a ver com a necessidade de promoção dos Centros de
Investigação, de forma a conseguirem visibilidade e financiamento para os seus
projectos. Isto faz com que estudos preliminares, “in vitro”, ou em animais,
sejam promovidos de forma prematura, em situações de doenças neurológicas com
grande visibilidade junto da opinião pública, como a Demência de Alzheimer ou a
doença de Parkinson, por exemplo. Por isso há quem defenda que no título da
publicação ou artigo científico deve ser referido que o estudo é feito em
animais ou que ainda está na fase do tubo de ensaio.
Outros mitos associados a esta área são relativamente
inócuos, embora desprovidos de senso comum.
Um dos mais populares, com a ajuda de séries televisivas e
filmes, é a de que usamos apenas 10% da nossa capacidade cerebral.
Colocado de forma simples: é falsa a ideia de que só
utilizamos um décimo do nosso potencial cerebral, não faria sentido que um
órgão que gasta mais de um quinto do total da energia do organismo, tivesse
apenas uma pequena parte a trabalhar. Há hoje evidência de que o cérebro está
sempre a funcionar na sua totalidade, mesmo durante o sono, embora as áreas
mais ativas mudem consoante a tarefa.
Uma outra ideia errada na área das neurociências é a de que
a nossa personalidade e forma de pensar dependeria mais de um lado do cérebro.
Assim os indivíduos com o lado direito dominante seriam mais criativos,
imaginativos, intuitivos e artísticos. Os que tivessem como lado dominante o
esquerdo seriam mais organizados, lógicos, analíticos e proficientes a
matemática. Este é um conceito errado segundo os atuais conhecimentos
neurológicos, embora já tenha permitido a venda de milhões de livros de
pseudopsicologia. Todas as tarefas complexas que o nosso cérebro realiza exigem
participação dos dois lados do cérebro, existindo extensas ligações entre ambos
os lados. Podemos falar do exemplo da linguagem, embora o lado esquerdo seja
fundamental para a compreensão e expressão da linguagem, o lado direito é
determinante para compreender o contexto e tom das palavras. E na matemática,
enquanto o lado esquerdo é importante para a resolução de equações, o lado
direito dedica-se a comparações e estimativas.
O interesse que a Neurologia e Neurociências motivam tem também
a ver com a nossa procura do Santo Graal cerebral, a pílula ou suplemento mágico que nos aumente a
memória e a concentração, que nos torne mais inteligentes, que nos livre do
declínio cerebral associado à idade, ou nos torne as máquinas intelectuais que a
atual sociedade ultracompetitiva exige.
Há uma indústria de milhões à volta deste problema, com
produtos com designações sugestivas , muitas vezes com nomes associados ao
elefante e à sua proverbial memória, comercializados em farmácias, em lojas de
produtos naturais e online.
Substâncias como o Omega 3, o Gingko biloba, o Ginseng, o
Chá Verde, as bagas Goji e uma miríade de Vitaminas, entre muitos outros, são
usados na produção de suplementos milagrosos.
Qual o sumo que se extrai desta multidão de embalagens,
suplementos, anúncios? Zero ou muito perto disso. O efeito destes suplementos a
nível das nossas capacidades cognitivas ou da memória é praticamente
inexistente, e não digo completamente inexistente porque produtos como as
Vitaminas ou o Omega 3 poderão ter interesse em grávidas e em pessoas com
déficites nutricionais, por exemplo a suplementação com vitaminas do complexo B
pode ser necessária em indivíduos com regime alimentar Vegan.
Outra face da mesma moeda é a moda atual, sem qualquer
evidência científica, de que é importante, para a nossa saúde, incluindo o
funcionamento cerebral, evitar determinados alimentos como o glúten ou o leite
animal. Esta corrente só pode ser entendida como uma forma de marketing para
produtos que não contenham aqueles “venenos”, e que hoje em dia se encontram
por todo o lado. O glúten e o leite foram utilizados tranquilamente pela raça
humana durante milénios, mas são agora denunciados como a fonte de todos os
males do Homo sapiens ou quase.
A realidade é que, tirando situações muito raras, como é o
caso da Doença celíaca no caso do Glúten, ou das pessoas com uma deficiência
grave de Lactase (enzima responsável pela digestão da Lactose constituinte do
leite) no caso do leite, é perfeitamente seguro e útil o consumo de glúten e de
leite na nossa alimentação.
Uma alimentação variada e equilibrada é necessária e suficiente
para a nutrição do nosso corpo, incluindo o cérebro.
Outra indústria de milhões associada a uma pretensa acção
sobre o funcionamento cerebral é a da venda de produtos de software de treino
cerebral, geralmente online e sob a forma de aplicações.
Uma pesquisa feita junto de lojas online de aplicações para
telemóveis, revela dezenas de aplicações promovidas com o intuito de manter ou
melhorar a memória e a capacidade intelectual. Infelizmente não há estudos fiáveis
que mostrem a utilidade de qualquer destes programas, pelos menos isoladamente.
Melhoram a tarefa que é treinada durante o jogo de
computador, mas não são úteis no dia a dia, não melhoram a capacidade de ir às
compras num idoso com dificuldades cognitivas, ou os resultados dos exames num
estudante universitário por exemplo. A promoção dos pretensos efeitos
miraculosos destes produtos sobre a capacidade cerebral levou a uma tomada de
posição conjunta de cientistas da área a desmitificar o seu efeito.
A sua utilização nos indivíduos com declínio cerebral poderá,
no entanto, ser complementar de outros aspetos tão ou mais importantes, como a atividade
física, a interacção social, a leitura, tocar um instrumento musical, etc.
A patologia neurológica, dada a riqueza de sintomas que
determina, é também fonte de muitos mitos populares e ideias erradas. Um
apanhado exaustivo exige o espaço de um livro de texto. Vou referir alguns dos
mais frequentes:
O mito de que Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC) são
doenças exclusivamente dos idosos. Embora sejam mais frequentes na população
mais idosa, os AVC podem ocorrer em jovens, pelo que mesmo em grupos etários
mais baixos seja importante a prevenção dos fatores de risco conhecidos, como a
Hipertensão, a Diabetes, o Tabagismo, a Obesidade e os valores altos do
Colesterol.
Fulcral é a ida emergente à Urgência hospitalar em caso de
suspeita de AVC, com recurso ao INEM e à via verde hospitalar, o que permite às
vezes desobstruir o vaso entupido que está a causar o problema. Para mais
esclarecimentos deve ser consultado o site da DGS a este respeito.
Algumas pessoas ainda têm a ideia errada de que a Epilepsia
é uma doença associada a menores capacidades intelectuais. A realidade é que,
tirando algumas formas graves e raras , os doentes epiléticos podem fazer uma
vida normal, com um controle quase total das crises , o que pode ser atribuído,
em parte, à eficácia e variedade da medicação atualmente existente.
Ainda no campo das crises epiléticas existe a noção errónea
de que deve ser colocado um objeto na boca da pessoa em crise para evitar que
morda a língua, mas tal só vai dificultar a respiração da pessoa, que deve ser
colocada de lado, num sítio em que não se magoe, e sem nada a dificultar a
circulação de ar.
Outro conceito errado tem a ver com as Demências. Embora a
grande maioria seja progressiva e irreversível, existem casos de Demências
tratáveis, pelo que é importante a consulta por um médico Neurologista.
Exemplos são o déficite de vitamina B12, as Hidrocefalias com acumulação
excessiva de líquido no interior do cérebro ou os Hematomas cerebrais crónicos
provocados por traumatismos cranianos, entre outras causas tratáveis.
No que diz respeito às doenças neurológicas, um aspeto que
prejudica também o tratamento dos pacientes, é o recurso às terapias
alternativas.
O seu uso e abuso leva ao atraso no início de tratamentos
eficazes, pode levar à interferência das mezinhas com os medicamentos úteis, e
troca falsas esperanças por gastos elevados em inutilidades.
Como exemplos apontaria a promoção da acunpuntura, da
homeopatia, da osteopatia, da naturopatia e outras no tratamento de diversas
doenças neurológicas.
Não há qualquer evidência científica séria que as suporte,
mas são promovidas nos meios de comunicação social, inclusive do Estado, como é
típico dos programas televisivos matinais.
Relativamente à Acunpuntura, que tem sido publicitada para o
tratamento de doenças Neurológicas como a Enxaqueca, existem estudos que
mostram que não é mais que um placebo, com resultados iguais quer seja
praticada por principiantes ou por mestres, existindo inclusive um estudo em os
resultados foram iguais usando agulhas de Acunpuntura ou palitos!
A Osteopatia e a as terapias Quiropráticas utilizam
manipulações cervicais, apregoadas como tratamento para quase tudo, mas uma das
complicações possíveis já descrita e publicada em revistas científicas, é o
facto destas manipulações cervicais poderem danificar artérias do pescoço que
levam sangue para o cérebro e poderem causar acidentes vasculares cerebrais.
Mais grave é o canto de sereia com que são atraídos doentes
desesperados, pelas clínicas internacionais com tratamentos de pretensa base
científica, mas ainda em fase de investigação, como é o caso das células
estaminais e das vacinas dendríticas.
Os doentes pagam fortunas em troca de tratamentos
experimentais, ainda ineficazes ou pouco seguros, acabando por regressar ao
nosso SNS piores do que quando foram para essas clínicas, como é triste exemplo
famosa clinica alemã, que conta com inescrupulosos angariadores nacionais,
principalmente junto de doentes oncológicos.
Falando do Cérebro e de Tumores, outra dúvida com que muitos
se confrontam diz respeito à associação dos telemóveis e dos tumores cerebrais.
Não há estudos sólidos que mostrem aumento do número de
novos casos de tumores cerebrais após o início da utilização maciça de
telemóveis. Tambem não há relação demonstrada entre este e outros tipos de
tumores com as redes Wifi, 4G ou 5G, ou micro-ondas, que é, hoje em dia, uma
das teorias da conspiração prediletas na internet.
Em conclusão, neste tempo de “fake news” devemos manter um
saudável ceticismo, e daí a importância da literacia científica na área das
neurociências.
Desconfiemos das fabulosas descobertas e curas espantosas
promovidas nos media e redes sociais, mas que não têm grande repercussão junto
da comunidade científica.
Se parece demasiado bom para ser verdade é porque
provavelmente não é.
Desconfiemos dos suplementos miraculosos, dos programas de
software que nos vão pôr a pensar melhor, e das curas e tratamentos
alternativos, cuja utilidade é principalmente financeira para quem as pratica.
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