"Ver aquilo que temos diante do nariz requer uma luta constante."
G. Orwell
1. Elogiei a intervenção no 10 de Junho do jornalista e cronista João Miguel Tavares (JMT), cujo estilo irreverente e frontal acho útil e aprecio. Crítico hoje um seu artigo recente no Público em que defende uma tese que redutora, universal e intemporal como se apresenta é insustentável, exemplo incluído: a da "superioridade de umas culturas"* sobre as outras, concretamente a superioridade global do que designa “cultura ocidental” sobre as outras (sem precisões de época, de aspectos, de duração...).
É uma visão pouco informada, simplista. Nessa sua crónica JMT confirma a asserção popular de que o sapateiro não deve ir além da chinela. Como de facto foi. Cronista arguto e corajoso, controverso também, o que é bom, JMT não revela na especialidade a formação necessária e suficiente para se aventurar, com rigor, a tais domínios, e sobretudo para se atrever à generalização ingénua que fez. É natural, aliás, pois não se pode saber tudo de tudo. Não se devia ter atrevido a tanto, portanto.
Por hoje, apenas duas ou três interrogações... se JMT se dignar pensar nelas. Culturas superiores... globalmente? Sempre? À luz de que critérios? Haverá um critério único que permita uma avaliação global, intemporal, extensiva... definitiva? Que critérios, repito?
Por exemplo: uma cultura em que os homens e as religiões se matem umas às outras é superior a outra em que as religiões convivam pacificamente? Uma cultura cheia de artefactos tecnológicos em que uma grande parte da população se consuma numa velocidade existencialmente incompreensível, logo, porventura, injustificada? Se gaste no stress, na angústia, no medo do futuro, na dependência de antidepressivos e drogas? Será superior a outra em que a vida é vivida dominantemente de modo oposto, os conflitos e as depressões resolvidas sem perda? Uma cultura que quis converter e dominar as outras culturas, que permitiu que se afirmassem e dominassem os maiores monstros da História, que gerou e permitiu a emergência das ideologias mais assassinas da História, que teve meios para atear e ateou as chamas que incendiaram o mundo todo como nunca tinha acontecido, é superior a uma cultura não invasiva, não dominadora, não escravizadora das outras culturas?
Uma cultura que perdure durante milhares de anos é inferior a outra que inundada de realizações tecnológicas se auto-destrua e conduza o mundo á auto destruição? Uma cultura regulada pela ética é inferior a uma cultura regulada pela polícia?
Reparem que não estou a concluir nada, não estou a concluir sobre generalizações não fundamentadas, a dar como absoluto nada que evidentemente o não é, sem referência de critérios de apreciação e juízo. Se o fizesse isso seria uma manifestação ignorante elementar igual à de JMT. As interrogações que coloco pretendem apenas sugerir que a tese de JMT, tal como é apresentada e com a radicalidade como é aplicada, não faz qualquer sentido.
Para não falar, claro, no facto de JMT demonstrar ignorar a interacção entre culturas, a permanente reelaboração de todas elas (mesmo as mais fechadas) e, fait divers en passage, o facto da cultura a que chama europeia ser na verdade, nas suas origens e desenvolvimentos, eurasiática. O que ela bebeu na civilização do Extremo-Oriente, particularmente! Tal como o Extremo-Oriente veio “cá” importar agora. Selectivamente...
Leia, pelo menos, o livro de Ernest Jones, O MILAGRE EUROPEU, a obra de referência-base citada por todos os que depois dele escreveram sobre estes temas. (Da Gradiva, claro... uma obra que me foi ainda sugerida pelo melhor leitor, A. Sedas Nunes).
Como é natural, JMT experimenta dificuldades quando o tema e a análise são mais finos. Impõe-se-lhe, por isso, self control.
2. “Onde surge o perigo nasce salvação”**. A Europa terá chegado ao liberalismo, aos valores liberais, adoptado a democracia liberal, para se defender... de si própria! E durante muito tempo esses valores foram só para consumo interno, pois continuou a matar, a roubar, a condicionar os outros como fizera antes.
É por isso que os dirigentes chineses ficam sempre muito irritados quando os Ingleses lhes falam em direitos humanos. É bem revelador de uma visão diferente, essa sim superior, do mundo e da História o facto de terem superado (sem esquecer como não deve ser esquecido), por exemplo, o horror da imposição cruel do consumo do ópio pela Inglaterra. É sempre oportuno lembrar que a formalização dos Direitos Humanos na liberal Declaração Universal do Direitos Humanos é para todos! ***
3. A ciência e a tecnologia mudaram o mundo e elevaram a qualidade da vida humana até níveis inimagináveis, sobretudo nos prodigiosos últimos 100 anos. E convém notar que as dificuldades e ameaças criadas pela tecnologia só podem ser resolvidas, serão resolvidas, com mais ciência e melhor tecnologia.
Mas sem a reflexão ética e moral a ciência e a tecnologia conduzirão o homem e o mundo à autodestruição. Por isso Carl Sagan insistiu tanto no imperativo dessa reflexão ética e moral. E ainda não se estava no ponto a que agora se chegou... Receio o futuro que se prefigura se não forem vencidos os demónios que voltam a infestar o mundo.
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* Uso a expressão “cultura”, mas deveria ser usado com mais precisão termo “civilização”, “civilizações”, estas com um mosaico inumerável de culturas.
**Tradução livre de um verso de um poema de Hoelderlin.
*** A pensar sobretudo nas escolas e nos pais, a Gradiva editou recentemente um livrinho com a história da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Venderam-se 85 exemplares! Culturas superiores, JMT, maldita hubris, que cega o homem.
Guilherme Valente
2 comentários:
Não, não há culturas melhores que outras. Nem países melhores que outros. Nem povos que acolhem melhor que outros. Deve ser por isso que milhões de cidadãos de culturas de países de africa, medio oriente, américa sul etc querem vir à força bruta viver para a europa e para os eua. É só para fazer turismo,só pode.
Boa e esclarecida reflexão e a prova de que a nem todos afeta a passagem dos anos... É que uns só acumulam burrice
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