É muito antiga a divisão entre as
várias disciplinas. A barreira mais alta é a que se ergue entre letras e ciências,
as designações tradicionais mas infelizes para conjuntos de disciplinas (em vez
de letras será melhor dizer-se ciências humanas e em vez de ciências será melhor
dizer-se ciências exactas e naturais). Mas há outras barreiras um pouco menores:
dentro das letras, por exemplo entre a literatura e a história e, dentro das
ciências, por exemplo entre a física e a biologia. Têm-se não só objectos e
metodologias diferentes mas também linguagens diferentes. Quem escolhe a
linguagem literária, salvo algumas excepções, é quem recusa a linguagem
matemática – a linguagem das ciências exactas e naturais.
Mas serão as linguagens das letras
e das ciências mesmo antagónicas? Poder-se-ia a este respeito citar vários
cientistas que se pronunciaram sobre o assunto. Mas cite-se antes um escritor, o
italiano (embora nascido em Cuba) Italo
Calvino, que, em vários dos seus livros, mostra claramente uma influência
científica (ver, por exemplo, as colectâneas de contos “Cosmicósmicas”
e “Novas Cósmicómicas”, publicadas
entre nós pela Teorema). No seu livro de ensaios “Ponto
Final. Escritos sobre Literatura e Sociedade” (Teorema, 2003, tradução do original italiano “Una pietra sopra”), publicam-se duas
breves entrevistas de Calvino sobre ciência e literatura. O entrevistador fala
da hipotética “necessidade do escritor de vanguarda se tornar cientista” e
interroga o autor de “Cósmicómicas”
sobre “o que justificará a literatura em
relação à ciência”? Eis a resposta:
“Não
pode haver nenhuma coincidência entre a linguagem matemática e a linguagem
literária, mas pode haver (precisamente pela sua extrema diversidade) um
desafio, uma aposta entre elas. (...) A literatura pode servir de mola
propulsora para o cientista: como exemplo de coragem na imaginação, no levar
uma hipótese às extremas consequências. E pode acontecer o contrário: o modelo
da linguagem matemática, da lógica formal, pode salvar o escritor do desgaste
em que caíram as palavras e as imagens devido ao seu falso uso”.
Noutro passo da entrevista é
abordada a afirmação feita noutra ocasião por Calvino de que Galileu seria o
maior escritor italiano de sempre, o que será certamente uma grande heresia para
muitos professores de literatura (bem, para dizer a verdade, Calvino queria
dizer prosador, uma vez que reserva o primeiro lugar na poesia a Dante).
Recorde-se que Galileu é o autor de
duas grandes revoluções que têm a ver com a linguagem. Por um lado, escreveu
alguns os seus livros científicos mais importantes em italiano e não em latim:
queria evidentemente ser lido, no seu país, por toda a gente e não apenas pelos
eruditos. Por exemplo, o “Discurso sobre
Duas Ciências Novas”, o livro fundador da mecânica e da ciência de
materiais, intitulava-se no original de 1634 “Discorsi e demontrazioni
mathematiche intorno a due nuove scienze attenenti alla meccanica.” Por
outro lado, defendeu, com enorme vigor e clareza, que a Natureza estava escrita
em linguagem matemática, isto é, que ela só se deixava compreender recorrendo a
essa linguagem. Ora leia-se a este propósito este naco da saborosa prosa de
Galileu, extraído de “Il Saggiatore”
(1623):
«A filosofia do Universo, esse grandíssimo livro que continuamente está
aberto em frente de nossos olhos, não se pode entender sem primeiro se conhecer
a linguagem e os caracteres em que está escrita. A sua linguagem é uma
linguagem matemática em que os caracteres são os triângulos, os círculos e
demais figuras geométricas, sem o conhecimento dos quais é impossível entender
uma só das suas palavras».
Pois o que diz o escritor Calvino
sobre o cientista (e obviamente também escritor) Galileu, na referida
entrevista?
“Galileu usa a linguagem não como elemento neutro, mas com uma
consciência literária, com uma contínua participação expressiva, imaginativa,
até mesmo lírica. Ao ler galileu gosto de procurar as passagens em que fala da
Lua: é a primeira vez que a Lua para os homens se transforma num objecto real
[lembre-se que Galileu tinha construído o primeiro telescópio, que logo usou
para ver a Lua e outros astros], que é
descrita minuciosamente como coisa tangível, e no entanto assim que a Lua
aparece, na linguagem de Galileu sente-se uma espécie de rarefacção, de
levitação: eleva-se-nos numa encantada suspensão (...) O ideal de olhar sobre o
mundo que guia também o cientista Galileu alimenta-se de cultura literária”.
Não admira que Calvino, tocado pela
magia da Lua, tenha escrito sobre ela em várias ocasiões. No livro “O Senhor Palomar” lamenta-se de “ninguém olhar para a Lua de tarde, quando
esse é o momento em que a Lua requer mais atenção, uma vez que a sua existência
ainda está em dúvida”. Curiosamente uma das grandes questões na polémica
entre Einstein e Bohr a propósito da teoria quântica foi a de saber se a Lua
está lá quando ninguém olha para ela... Um dos contos de “Cosmicómicas” intitula-se “A distância da Lua”. O autor
descreve-nos nele um tempo em que a Lua estava tão perto de nós que ficava à
distância de uma escada. De facto, diz a Física que a Lua nasceu da colisão de
um astro errante com a Terra, pelo que houve um dia em que a distância entre Lua
e Terra foi mesmo nula...
Um outro escritor que, no seu estilo
muito próprio, cultivou a relação entre as letras e as ciências foi o argentino
Jorge Luís Borges. Apetece trancrever aqui o que esse grande mestre da língua
castelhana disse sobre a Lua numa entrevista:
“A Lua é diferente conforme os idiomas: Lua, Lune e Moon (que é uma
palavra escura e lenta) são as que melhor a nomeiam. Pelo contrário, em inglês
antigo é mona e masculino: “o” lua. Em alemão, Mond, também não é lindo [também é masculino, Der Mond]. E Selene é bastante feio, em grego.” (Pilar Bravo e Mario Paoletti, “Borges Verbal”, Assírio e Alvim”, 2002).
A nossa Lua é só uma (Júpiter, em
contraste, tem muitas), mas mostra-nos diversas fases: não será a fase de lua
nova mais “moon” do que propriamente “lua”?
A divisão tradicional entre letras
e ciências não hoje muito actual uma vez
que linguagens aparentemente opostas têm bastante a dizer uma à outra. De
facto, a conjugação dos vários saberes e das várias linguagens em que eles se exprimem é o único meio para descrever
as riquezas do mundo e também de resolver alguns dos problemas desse mesmo
mundo. Por exemplo, o físico de hoje sabe que muitas questões da Física têm
implicações humanas e que algumas questões da literatura ganham com o foco da
Física. Todas as ciências são afinal humanas porque são feitas pelo e para o
homem...
Se, no passado, o conhecimento foi
excessivamente arrumado em compartimentos estanques, incomunicáveis, no futuro,
ele nascerá cada vez mais do encontro de visões diversas, que ganham em
interpenetrar-se. Italo Calvino diz-nos que a visão literária e a visão científica
se podem e devem articular. É óbvio que
não há interdisciplinaridade sem disciplinaridade e que as visões e linguagens
disciplinares não desaparecem quando se cruzam. Mas a ligação entre as disciplinas
– tão nítida no pensamento de Calvino - aparecerá
cada vez mais nítida. Querê-la não será
pedir a Lua!
3 comentários:
As diversas disciplinas têm uma linguagem que pode distingui-las, até certo ponto, mas todas têm em comum o serem sistemas de observação, análise, investigação, estudo e reflexão sobre determinados "objectos de estudo", com objetivos de "conhecimento".
A linguagem de cada uma delas, normalmente, já constitui um repositório decantado de conceitos e de noções que corporizam alguma forma de conhecimento. Assim, por exemplo, quando estudamos literatura, ou teoria da literatura, ou história da literatura, filosofia ou história da filosofia, estudamos conhecimentos corporizados em torno de obras literárias, de obras filosóficas, ou de problemas filosóficos, mas grande parte desses conhecimentos são teóricos, são teorias sobre...as obras, as ideias, os processos, os conteúdos e a forma, a contextualização, os significados, os impactos.
Outra coisa são as obras objeto de estudo. Ao falar da literatura, da filosofia, da história, das artes, posso fazê-lo com o mesmo rigor e exatidão com que falo do peso da lua, do volume da água do mar, da velocidade da luz, etc..
Embora este tipo de conhecimento não nos ensine a pesar a lua, nem quanta água há no mar, nem nos prepare para usar a eletricidade como força motriz, ou a perceber a velocidade da luz, ou por que razão a velocidade de um corpo não pode ultrapassar a velocidade da luz...não deixa de ser a linguagem da(s) ciência(s).
O Carlos Fiolhais, supondo que mantém sempre a mesma preocupação e responsabilidade científica) não fala com mais rigor científico, quando fala sobre a teoria da relatividade geral de Einstein, do que quando fala sobre a autoria e o conteúdo dos Lusíadas, ou sobre a Lógica de Aristóteles, ou sobre a batalha de S. Mamede.
O rigor ou a falta de rigor não tem a ver com o rigor e o mérito científico das disciplinas propriamente ditas, mas com o rigor e o mérito científico de quem fala delas.
Neste plano, poder-se-ia dizer que todas as ciências são exactas, senão não seriam ciências, embora possamos talvez distinguir entre juízos científicos, sobre realidades (as realidades não são exactas) e "juízos" conclusões de lógica pura e abstracta, cuja referência à realidade é de ordem matemática.
A divisão entre ciências não pode ter o significado de umas serem mais ciências do que outras.
Se um cientista da área da Física acha que não deve ouvir um cientista da área da botânica, porque este não lhe merece respeito científico ou um cientista da área da história despreza um especialista de Direito Fiscal, por este não ser das ciências exactas, aí já estamos a falar de uma divisão de ordem diferente, que tem a ver com estatutos sócio-económicos-académicos das várias ciências.
De qualquer modo, as diferenças entre um cientista e um matemático e um artista, um romancista, um pintor, um poeta, no que respeita aos respetivos objectos, problemas, de trabalho, ou "estudo", elaboração, incluindo as respectivas linguagens, objectivos(resultados) e finalidades, são muitas e são notáveis.
Aqui, talvez seja comum encontrar pessoas que se ignoram uma às outras, simplesmente, porque não estão interessadas no que os outros fazem, ou porque não conseguem dedicar-se a muitas coisas ao mesmo tempo, ou porque não sabem, etc..
Portanto, o senhor Carlos Soares não deve saber que um pensamento vale mais do que mil palavras!...
Anónimo, não sei se deve saber ou não, mas aposto que um pensamento vale o que vale, ou nem isso, e, nem sempre ou nunca, vale mais ou menos do que as palavras.
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