“A nossa história é a nossa fatalidade”
(Antero de Quental).
Corriam os primeiros anos da década de 50, do século passado, altura em que um professor do INEF, Quintino da Costa, alertava os respectivos alunos para um facto que pode ser responsabilizado, em parte, pelo gueto em que a actividade física dos nossos escolares tem sido colocada por parte de sucessivos governos: “Enquanto os médicos, em tempos idos, só tiveram como competidores os barbeiros, o professor de Educação Física vê ainda o seu campo ser invadido por contorcionista da lei que, às claras ou na penumbra, logram alcançar um papelucho com o imprimatur do Estado”.
Infelizmente, esta análise atinge proporções acrescidas numa altura em que a exercitação física se fez moda aproveitada, por vezes, por curiosos que viram nela a forma de aumentarem os seus cabedais ou prestígio social por falta de uma associação de direito público que respeite e defenda o prestígio e a dignidade deste exercício profissional.
Passo a referenciar um artigo do jornal “Público” (21/08/2016), da autoria de Pedro Teixeira , professor da Faculdade de Motricidade Humana e director do Programa Nacional de Promoção da Actividade Física da Direcção-Geral da Saúde (nomeação que saúdo), intitulado “Atividade física: um novo sinal vital de saúde”. Julgo encontrar no artigo supramencionado suporte para a iniciativa da “Escola de Verão – Exercício, Alimentação , Saúde”, que oferece, de 8 a 19 de julho, um programa de atividades com a missão de melhorar os hábitos das 30 crianças [de Coimbra] que participam na iniciativa” (“Diário as Beiras”, 28/06/2019).
A propósito, queixa-se a nutricionista Ana Carvalhas, não poder ele ser replicado por escassez de nutricionistas nos Centro de Saúde de Coimbra. Facto, tanto ou mais insólito, acontece na inexistência de diplomados universitários na área de Educação Física e Desporto no aconselhamento e posterior seguimento da exercitação física dos respectivos e jovens utentes. Em idos da década de 70 do século passado, mereceu esta temática a minha atenção numa conferência por mim proferida na Sociedade de Estudos de Moçambique , de que eu era presidente da respectiva Secção de Ciências (1973), entidade “Palmas de Ouro” da Academia de Ciências de Lisboa, intitulada “Educação Física: Ciência ao Serviço da Saúde Pública” (publicada no respectivo boletim, vol. 42, n.º 174, Jan./Dez. 1973).
De então para cá, a criançada portuguesa continua vitimada por doenças hipocinéticas, assim havidas por terem como causa a escassa exercitação física provocada pelo enjaulamento em prédios de andares, promotores das muitas horas frente à televisão ampliadas pela “ajuda preciosa” dos computadores que ampliaram, brutalmente, o tempo consumido pelos nossos jovens em atitude viciosa, “quais ostras fixadas ao rochedo” (Jean-Pierre Gasc).
Por outro lado, o nosso múnus social e educativo persiste em libertar-se de um platonismo que via no corpo o túmulo em vida da alma, aprisionado, séculos depois, em garras do dualismo cartesiano, procurando encontrar mais espaço para determinadas disciplinas teóricas “roubando-as” à Educação Física escolar, através, por exemplo, do documento “Matrizes Curriculares dos Ensinos Básico e Secundário” (2012).
Ramalho Ortigão, escritor defensor acérrimo da exercitação física da juventude do seu tempo, chamou a atenção da Câmara dos Pares para um estudo demonstrativo que os exercícios ginásticos são úteis não só ao desenvolvimento físico dos educandos, quando escreve: “Nas escolas inglesas em que se introduziu a ginástica os alunos aprenderam mais e em menos tempo do que naquelas em que a ginástica não existia”.
Sai reforçada esta constatação da velha Albion por um estudo, levado a efeito neste extremo ocidental europeu, sobre a influência da ginástica na melhoria da fadiga intelectual de 36 crianças do ensino primário na realização de provas de ditado.
De uma forma muito resumida, os resultados demonstraram que nos dias em que a prova de ditado era precedida de 15 minutos de ginástica os erros ortográficos dados eram em menor número relativamente aos dias em que a ginástica não era ministrada. Este trabalho, intitulado “Influência do Exercício Físico na Fadiga Intelectual”, foi levado a efeito pelo então director do INEF coadjuvado por uma equipa de docentes formados em Educação Física, tendo obtido o segundo prémio científico da muito prestigiada Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa (1963), atribuído em colaboração com o Laboratório Pfizer, “com o objectivo de contribuir para a dinamização da investigação em Ciências da Saúde em Portugal”.
Com o velho costume nacional de embandeirarmos em arco, as recentes 15 medalhas alcançadas por Portugal no II Jogos Europeus, realizados há dias nas Bielorrussia, não devem fazer esquecer que a escola é o lugar de eleição para a promoção desportiva dos jovens não podendo andar aos caprichos de futuros governos que possam vir a fomentar a possibilidade de se verificar uma involução retornando, a Educação Física escolar a parente pobre do sistema educativo nacional. Situação que que levou o professor de Educação Física José Esteves, antigo bolseiro da Fundação Calouste Guilbenkian, a doutrinar, no seu “best seller”, “O Desporto e as Estruturas Sociais ( 1967), “não trocar a promoção desportiva de uma centena de crianças da nossas escola primárias por uma medalha de ouro olímpica”.
Situação que continua a trasvestir uns tantos escolares actuais em pequenos Ernestinhos, “com membros franzinos, ainda quase tenros, que lhe dão um aspecto débil de colegial”, tão bem caracterizados pelo imortal Eça. Ou seja, conquanto o “Departamento de Saúde e Serviços Humanos”, dos Estados Unidos, tivesse emitido a recomendação de que “60 % dos jovens deviam ter aulas de educação física diariamente, 70 % deviam ser testados periodicamente nos níveis de aptidão física e 90 % deviam participar em actividades físicas apropriadas para a manutenção de um efectivo sistema cardio-respiratório” (1980), três décadas depois (2012), nesta “ocidental praia Lusitana”, foram partejadas, nada nos garantindo não serem ressuscitadas, por outros governantes, as muito contestadas “matrizes curriculares” que mereceram o repúdio veemente de vários professores da Faculdade de Medicina de Coimbra. Séculos passados, bem nos alertou Antero: “A nossa fatalidade é a nossa história”!
2 comentários:
É irresistível comentar que a pertinência deste artigo e das suas considerações não poderia ser maior e mais atual. E não é só relativamente à Educação Física. A música, os instrumentos musicais. As artes plásticas. Quando olhamos para um objeto qualquer, uma esferográfica, um simples caderno. Pensarmos em quanto investimento de sensibilidade e intelectual e económico e afetivo e humano...Quando olhamos para o passado, mesmo abstraindo das civilizações antigas, e podemos ficar por Foz Coa, a análise de dois ou três rabiscos(?) de caprinos, bovinos...humanos, mesmo sem pensar em mais nada senão nos rabiscos(?) já nos dá que pensar para o resto da vida.
Alguém duvida de que a Educação Física é da maior importância? Tanto ou mais que o Português e a Matemática? O que é que está em causa quando se discute a importância das disciplinas e dos currículos? O interesse do aluno? O interesse do professor? O interesse da economia? O interesse da religião? O interesse de sua majestade mumificada em razão da venerabilidade?
As escolas são mesmo capazes de fazer milagres, mas esses milagres ameaçam muitos interesses. Os interesses de uns conflituam com os dos outros, não é assim? Então, há que confiar que "o meus deus é mais forte que o teu", para que o milagre aconteça.
Foi com um misto de orgulho que li, e agradeço, este seu comentário. Bem haja, com os votos que ele seja lido (e, principalmente, compreendido!) por políticos que endeusam o espectáculo desportivo onde se desenrolam pugnas de pontapé na bola para que, como escreve, o "milagre aconteça"!
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