domingo, 14 de julho de 2019

25 de Abril, Corte e Costura


Meu texto de recensão no mais recente "As Artes entre as Letras":


O autor, João Cerqueira, nascido em 1964 em Viana do Castelo é uma espécie de “enfant terrible” das letras portuguesas: o “sistema” não repara nele. Não vem da literatura, mas sim das artes visuais, pois é mestre e doutorado em História da Arte pela Universidade do Porto. Escreveu na sua área de especialidade livros como “Arte e Literatura na Guerra Civil de Espanha” (publicado entre nós pela Prefácio em 2004 e também no Brasil) e “José de Guimarães: Arte Pública” (catálogo publicado pela Fundação Fernão de Magalhães, 2010). Como obras de ficção escreveu “A Culpa é destas Liberdades” (Pena Perfeita, 2007), “A Tragédia de Fidel Castro ( publicado na Saída de Emergência, 2008;  foi publicado em tradução inglesa nos Estados Unidos), “Reflexões do Diabo (Saída de Emergência, 2010) e “A Segunda Vinda de Cristo à Terra” (saído na Estação Imaginária, 2015). Nessas obras o humor e a  ironia  são recursos literários  para desnudar o mundo em que vivemos: por exemplo, no último romance atrás referido Jesus Cristo vem de  novo à Terra, precisamente em Portugal, encontrando uma Maria Madalena que é activista ambiental…  João Cerqueira é autor também de vários contos, muitos deles publicados no estrangeiro. Sendo largamente ignorado em Portugal, tem sido reconhecido no estrangeiro. A tradução “The Tragedy of Fidel Castro” ganhou o USA Best Book Awards 2013, o Beverly Hills Book Awards 2014, o Global Ebook Awards 2014, foi finalista do Montaigne Medal 2014 (Eric Offer Awards), e foi considerado pela revista “ForewordReviews” a terceira melhor tradução publicada nos EUA em 2012.

 A sua última obra, “25 de Abril, Corte e Costura” (um título original que chama desde logo a atenção), foi publicada em março passado pela Ideia-Fixa, um imprint da editora Alêtheia. Com uma escrita leve e divertida, o livro inscreve-se na mesma linha satírica dos anteriores, integrando-se num género que sempre teve cultivadores entre nós, desde as cantigas de escárnio e mal dizer e Gil Vicente no século XVI até Mário de Carvalho no nosso tempo passando no século XIX por Ramalho Ortigão e Fialho de Almeida e no século XX por Mário Henrique Leiria e Luiz Pacheco. Trata-se de ridicularizar a vida política portuguesa,  imaginando uma cidade portuguesa- com o nome de Augusta -  onde os partidos da direita e esquerda se digladiam.

O enredo é simples, embora a acção por vezes se complique. Para celebrar os 40 anos do 25 de Abril, portanto em 2014, o presidente da Câmara, de seu nome Jaime Fagundes,  um político que pugna  pela “democracia do futuro” (um lugar comum que evoca os lugares comuns que pululam na política, tanto nacional como local),  quer organizar comemorações grandiosas. Mas, na vereação, direita e esquerda não se entendem: a direita quer organizar uma exposição sobre a história gloriosa da pátria, um quadro vivo das Aparições de Fátima e uma tourada. Por seu lado, a esquerda quer fazer um teatro de rua sob o tema "Da escravatura ao neoliberalismo" e uma parada homossexual. A  direita tem por lema o “Abril desinfectado”, ao passo que a  esquerda assume como divisa “Abril no coração.” É óbvio que a preocupação maior de cada sector político não é tanto a defesa das suas próprias ideias, mas  irritar o mais possível os adversários: a tourada irrita solenemente a esquerda enquanto a parada homossexual irrita solenemente a direita. Enquanto os dois grupos preparam o grande dia, surgem em Augusta alguns personagens extravagantes, em geral forasteiros: um artista louco (que só  tira fotografias desfocadas), uma jovem socióloga que vem estudar as comemorações, um guru com o seu pequeno séquito de alienados, um ex-pide que pretende voltar ao tempo da “outra senhora”  e um casal que, vítima da crise, perdeu a casa para o banco e quer-se vingar à bomba do neoliberalismo reinante (antes de deitar a bomba a uma vivenda cogitam para saber se ela será de um neoliberal). Para a tourada, a direita acaba por arranjar um toureiro espanhol de terceira categoria (tinha a vantagem de ser barato, o mais barato que havia), enquanto, para a parada gay e lésbica, a esquerda experimentou alguma dificuldade em arranjar manifestantes. Como o humor é sempre a exploração da surpresa. Não vou aqui introduzir spoilers para saber como tudo vai acabar, apenas digo que o autor se serve do seu conhecimento de arte contemporânea para resolver tudo com uma entropia artística, uma exposição intitulada “Estado Renovo” que acaba desconstruída   

Como é normal quando se recorre à sátira humorística alguns personagens são caricaturas levadas ao extremo. Da mesma maneira que um caricaturista põe enorme o nariz já grande de alguém, o autor, que dá mostras de ser um bom observador, exagera os tiques dos seus personagens. Nas situações caricatas que eles vivem podemos reconhecer as fraquezas, para não dizer as misérias, da nossa vida política, artística e até científica nacional. Não raro me vi a rir destemperadamente com o destempero de algumas situações cómicas. Por exemplo, o casal de bombistas não consegue destruir nada à bomba, pois não passamos de um país de “inconseguimentos” (o vocábulo, que ficou célebre, é de uma política que presidiu à Assembleia da República!). Portugal é um país de “portugueses suaves”, mesmo quando alguns se armam em “durões”. Enchemo-nos de discursos extremos, indignamo-nos por tudo e por nada, mas depois tudo fica em meias-tintas. Andamos todos uns contra os outros, mas depois no fim ficamos todos amigos na mesma. Começa-se com o “corte,” mas depois tudo acaba em “costura”, ainda que seja uma costura mal feita.

Esta é uma prosa narrativa repleta de diálogos e, portanto, próxima da linguagem do dia-a-dia. Lê-se bem de uma ponta à outra, por quem conheça a realidade nacional (julgo que será mais difícil encontrar leitores lá fora, ao contrário da “Tragédia de Fidel Castro”). Obra não convencional no nosso panorama ficcional (lembra-me por vezes a ficção de Manuel João Ramos, embora nesta os aspectos sexuais sejam bem mais empolados) , cumpre o  duplo propósito de simultaneamente de divertir e denunciar a situação política e social do país.  É uma paródia não tanto ao 25 de Abril, que foi a fonte de liberdade de que felizmente gozamos, mas ao país em que nos tornámos, mais de quarenta anos depois da Revolução.


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