Meu texto de recensão no mais recente "As Artes entre as Letras":
O autor, João Cerqueira, nascido em 1964 em Viana do Castelo
é uma espécie de “enfant terrible” das letras portuguesas: o “sistema” não
repara nele. Não vem da literatura, mas sim das artes visuais, pois é mestre e
doutorado em História da Arte pela Universidade do Porto. Escreveu na sua área
de especialidade livros como “Arte e Literatura na Guerra Civil de Espanha” (publicado
entre nós pela Prefácio em 2004 e também no Brasil) e “José de Guimarães: Arte
Pública” (catálogo publicado pela Fundação Fernão de Magalhães, 2010). Como
obras de ficção escreveu “A Culpa é destas Liberdades” (Pena Perfeita, 2007),
“A Tragédia de Fidel Castro ( publicado na Saída de Emergência, 2008; foi publicado em tradução inglesa nos Estados
Unidos), “Reflexões do Diabo (Saída de Emergência, 2010) e “A Segunda Vinda de
Cristo à Terra” (saído na Estação Imaginária, 2015). Nessas obras o humor e a ironia são
recursos literários para desnudar o
mundo em que vivemos: por exemplo, no último romance atrás referido Jesus Cristo
vem de novo à Terra, precisamente em
Portugal, encontrando uma Maria Madalena que é activista ambiental… João Cerqueira é autor também de vários
contos, muitos deles publicados no estrangeiro. Sendo largamente ignorado em
Portugal, tem sido reconhecido no estrangeiro. A tradução “The Tragedy of Fidel
Castro” ganhou o USA Best Book Awards 2013, o Beverly Hills Book Awards 2014, o
Global Ebook Awards 2014, foi finalista do Montaigne Medal 2014 (Eric Offer
Awards), e foi considerado pela revista “ForewordReviews” a terceira melhor
tradução publicada nos EUA em 2012.
A sua última obra,
“25 de Abril, Corte e Costura” (um título original que chama desde logo a
atenção), foi publicada em março passado pela Ideia-Fixa, um imprint da editora Alêtheia. Com uma
escrita leve e divertida, o livro inscreve-se na mesma linha satírica dos
anteriores, integrando-se num género que sempre teve cultivadores entre nós,
desde as cantigas de escárnio e mal dizer e Gil Vicente no século XVI até Mário
de Carvalho no nosso tempo passando no século XIX por Ramalho Ortigão e Fialho
de Almeida e no século XX por Mário Henrique Leiria e Luiz Pacheco. Trata-se de
ridicularizar a vida política portuguesa,
imaginando uma cidade portuguesa- com o nome de Augusta - onde os partidos da direita e esquerda se
digladiam.
O enredo é simples, embora a acção por vezes se complique.
Para celebrar os 40 anos do 25 de Abril, portanto em 2014, o presidente da
Câmara, de seu nome Jaime Fagundes, um
político que pugna pela “democracia do
futuro” (um lugar comum que evoca os lugares comuns que pululam na política,
tanto nacional como local), quer
organizar comemorações grandiosas. Mas, na vereação, direita e esquerda não se
entendem: a direita quer organizar uma exposição sobre a história gloriosa da
pátria, um quadro vivo das Aparições de Fátima e uma tourada. Por seu lado, a
esquerda quer fazer um teatro de rua sob o tema "Da escravatura ao
neoliberalismo" e uma parada homossexual. A direita tem por lema o “Abril desinfectado”,
ao passo que a esquerda assume como
divisa “Abril no coração.” É óbvio que a preocupação maior de cada sector
político não é tanto a defesa das suas próprias ideias, mas irritar o mais possível os adversários: a
tourada irrita solenemente a esquerda enquanto a parada homossexual irrita solenemente
a direita. Enquanto os dois grupos preparam o grande dia, surgem em Augusta
alguns personagens extravagantes, em geral forasteiros: um artista louco (que
só tira fotografias desfocadas), uma
jovem socióloga que vem estudar as comemorações, um guru com o seu pequeno séquito
de alienados, um ex-pide que pretende voltar ao tempo da “outra senhora” e um casal que, vítima da crise, perdeu a
casa para o banco e quer-se vingar à bomba do neoliberalismo reinante (antes de
deitar a bomba a uma vivenda cogitam para saber se ela será de um neoliberal).
Para a tourada, a direita acaba por arranjar um toureiro espanhol de terceira
categoria (tinha a vantagem de ser barato, o mais barato que havia), enquanto,
para a parada gay e lésbica, a esquerda experimentou alguma dificuldade em
arranjar manifestantes. Como o humor é sempre a exploração da surpresa. Não vou
aqui introduzir spoilers para saber
como tudo vai acabar, apenas digo que o autor se serve do seu conhecimento de
arte contemporânea para resolver tudo com uma entropia artística, uma exposição
intitulada “Estado Renovo” que acaba desconstruída
Como é normal quando se recorre à sátira humorística alguns personagens
são caricaturas levadas ao extremo. Da mesma maneira que um caricaturista põe
enorme o nariz já grande de alguém, o autor, que dá mostras de ser um bom
observador, exagera os tiques dos seus personagens. Nas situações caricatas que
eles vivem podemos reconhecer as fraquezas, para não dizer as misérias, da
nossa vida política, artística e até científica nacional. Não raro me vi a rir
destemperadamente com o destempero de algumas situações cómicas. Por exemplo, o
casal de bombistas não consegue destruir nada à bomba, pois não passamos de um
país de “inconseguimentos” (o vocábulo, que ficou célebre, é de uma política
que presidiu à Assembleia da República!). Portugal é um país de “portugueses
suaves”, mesmo quando alguns se armam em “durões”. Enchemo-nos de discursos
extremos, indignamo-nos por tudo e por nada, mas depois tudo fica em
meias-tintas. Andamos todos uns contra os outros, mas depois no fim ficamos todos
amigos na mesma. Começa-se com o “corte,” mas depois tudo acaba em “costura”,
ainda que seja uma costura mal feita.
Esta é uma prosa narrativa repleta de diálogos e, portanto,
próxima da linguagem do dia-a-dia. Lê-se bem de uma ponta à outra, por quem
conheça a realidade nacional (julgo que será mais difícil encontrar leitores lá
fora, ao contrário da “Tragédia de Fidel Castro”). Obra não convencional no
nosso panorama ficcional (lembra-me por vezes a ficção de Manuel João Ramos,
embora nesta os aspectos sexuais sejam bem mais empolados) , cumpre o duplo propósito de simultaneamente de
divertir e denunciar a situação política e social do país. É uma paródia não tanto ao 25 de Abril, que
foi a fonte de liberdade de que felizmente gozamos, mas ao país em que nos
tornámos, mais de quarenta anos depois da Revolução.
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