Esta afirmação é válida sobretudo para quem, como eu, está, por ofício, ligada a essa área. Procuro, pois, acompanhar as notícias, os programas que a comunicação social, sobretudo a portuguesa, publica/realiza.
O exercício é, as mais das vezes, penoso: os erros graves e as falácias são uma constante, a que acresce o tom de certeza inabalável com que são veiculadas. Aceita-se que todos se pronunciam sobre a educação, tenham ou não estudado, e que todas as declarações valham o mesmo, até aquelas que são uma vulgar opinião. Raro é o discurso que, além de denotar conhecimento denota também ponderação.
Isto vem a propósito, não só mas também, do programa Prós e contras (da RTP 1) dedicado à Revolução digital na educação, que foi para o ar no dia 1 deste mês e que tinha reservado para análise.
Diz-se na peça de abertura o que já ouvimos dezenas, centenas de vezes, até interiorizarmos como verdade:
"Procura-se tornar o ensino mais próximo das novas tecnologia que os alunos já estão habituados. É uma aposta no futuro mas esta sala não teve qualquer apoio do Estado [a "ajuda" de relevo foi dado por duas fundações] (locução e professor de uma "sala de aula do futuro")
Já vemos muitas experiências a nível do formato da aprendizagem, uma evolução e um acompanhamento a nível disto que são as tendências, a nível dos conteúdos programáticos acho que há um caminho mais longo a ser percorrido (representante de uma empresa).
A escola tem de ser rapidamente reformulada. O sistema educativo já não funciona sem estar ligado às novas tecnologias."Para (re)pensar estas palavras transcrevo extractos significativos da intervenção de um professor que é também escritor, António Carlos Cortez, de quem já havia destacado outra intervenção no mesmo programa (aqui).
"Não tenho nada contra aulas expositivas, tive grandes professores [que conduziam] maravilhosamente as aulas [algumas] transdiciplinares, conceito fundamental na aprendizagem: um professor, sendo de Português de História ou de Físico-Química, consegue abarcar e fazer relações. Tenho muito esta ideia de que os alunos hoje o que pedem é que as aulas (...) não sejam uma "seca". As aulas só não serão uma "seca" quando são expositivas se o professor tiver aquela compreensão no sentido que lhe dava António Sérgio, do abarcar, no acto de expor uma matéria, de forma sedutora (...). Julgo que estamos de acordo quanto ao facto de nestes últimos anos ter havido uma corrupção do que significa leccionar (...) [muito devido a] essa questão falaciosa dos rankings. Esta ideia de que aprendemos em função da competição é um dos aspectos que mata o ideal de ensino porque, justamente, não leva a que recaia na pessoa do aluno (...), faz-se passar a ideia de que o bom aluno é aquele que é um grande competidor. Ora, o ideal de ensino não pode e não deve ser esse porque [se assim for] estamos a defender uma escola-linha-de montagem (...) [os alunos] podem ter competências, e eles são hoje muito versáteis em competências digitais, mas, por exemplo, na leitura do texto complexo, nomeadamente do texto literário são muito graves as lacunas que têm e [também] ao nível da redacção. E isto não vai lá com oficinas de escrita nem com estratégias pós-modernas vindas das ciências da educação. Isto vai lá com o regresso aos textos, à leitura científica desses textos (...). É fundamental ler, o livro deve regressar à escola. A reportagem do início do programa [traduz o] fetichismo da técnica que é, a meu ver, absurdo. Ficamos com computadores nas salas de aulas e nas bibliotecas mas se formos ver, uma das causas principais para que as bibliotecas escolares não tenham alunos a ler foi, justamente, a introdução [lá] dos computadores (...). O livros e as novas tecnologias devem estar em harmonia (...) a escola não pode ser o lugar da imitação da sociedade digital (...). A capacidade analítica, de saber escrever, a ponderação e a lentidão que é preciso para formar leitores não se compadece com uma sociedade vertiginosa, multitasking. Há alunos que têm dificuldades reais de interpretação de textos e enunciados, seja porque ignoram o verbo, seja porque ignoram construções sintácticas mais complexas ou porque ignoram referentes histórico-culturais.
Tenho esta pergunta: como é que se constrói a tal individualidade, a subjectividade [com] essa ideia da negociação permanente. Qual é o papel do professor na relação pedagógica? (...). Uma das coisas mais extraordinárias na escola (...) é que a reboque daquilo que me parece ser, como direi, uma inflação de um ensino técnico, tecnocrático e burocrático, até, perdeu-se a ideia do que é orientar com conhecimento, com conhecimento sério dos textos e das matérias. Houve (...) a ideia de fazer das aulas oficinas de escrita ou laboratórios disto ou daquilo, e eu não tenho nada contra o professor, o magister... por vezes pergunto-me se os nossos alunos não têm falta dessa figura, do professor conhecedor, do mestre.
Em teoria estou de acordo com tudo o que está a ser dito aqui mas a capacidade de decidir, o sair da zona de conforto, expressão muito curiosa, mas que aluno é que tem capacidade de decidir, que aluno é que pode ter empatia, que aluno é que pode ter capacidade de liderança (...)?. A escola não tem de ir ao encontro dos interesses dos alunos, essa é uma das falácias mais extraordinárias, não, a escola não tem de ir ao encontro dos interesses dos alunos.
Sem um regresso ao livro, sem um regresso aos clássicos, sem um regresso a esse convívio entre humanidades e sem a harmonia entre as novas tecnologias e as competências de leitura e escrita, do saber histórico (...) estamos a construir especialistas de uma sociedade de insensíveis.Nota: Como em grande parte das actuais conversas sobre educação escolar não podia deixar de ser feita referência ao "Dr. Google". Isto diz muito do conteúdo preocupante dessas conversas.
4 comentários:
É uma coisa que me parece evidente," A escola não tem de ir ao encontro dos interesses dos alunos". E se o fizer acabamos todos a jogar apenas fortnite .
Se a minha mãe, totalmente à minha revelia como era na época a educação, não me tivesse obrigado a estudar violino, ao qual eu resistia, nunca descobriria a maravilha de fazer música mesmo de forma amadora.
É mesmo destes argumentos que estamos precisados. Dizem que o governo chinês reeduca as crianças dos pais que pensam diferente e resulta, porque elas aprendem coisas e desaprendem outras.
Se partirmos do princípio de que “no princípio era o verbo”, de que “o verbo se fez carne”, de que a linguagem foi o evento mais importante da humanidade, de que, por tal, o mundo é linguístico e que tudo se torna discurso, de que o discurso dá consciência e instrumentaliza, então, concordo com o António Cortez – devemos regressar ao livro clássico, ao anterior quase divino, a essa linguagem imersa em si mesma, pensadora, estruturante, construtora da realidade, e indo até ao extremo de Derrida, porque “Nada além do texto”. Os livros conectam-nos à realidade histórica e atual, à realidade transversalmente simbólica e é preciso que alguém nos ensine a interpretar, a descodificar, a ler metáforas, a perceber enredos. Primeiro do que tudo, saber dominar a língua. As fundações básicas deverão ser erigidas na escola, seja através de professores expositivos ou não, dependendo da forma de aprender de cada um. Muito mais tarde, após a consolidação dessas fundações primordiais de sustentabilidade do saber, ir dando aos alunos, faseadamente, graus de liberdade, considerando aqui “liberdade” como um número de determinações independentes, de acordo com o grau de maturidade de cada um. Só a esta altura, com as solas dos sapatos meias gastas, e algum desenvolvimento cerebral, me parece razoável a flexibilização curricular adequada ao interesse do aluno. Tudo a seu tempo: nem frangos de aviário, nem maçãs verdes. Para além do inflexível e belo clássico, parece-me também importante desenvolver, em sala de aula, exercícios de imprevisibilidade jazzística sem erosão da melodia. Neste momento, as estátuas encontram-se a perder a pedra e o orgânico tecnológico entrou para ficar, trazendo consigo o deserto do pensamento superior e a reverência ao órgão e à função. O panorama global é híbrido e as ferramentas para saber lidar com mutações globais devem ser também facultadas na escola. Não há como fugir a esta desconstrução pelo telhado... A escola, ao abrir as suas portas a tudo e a todos, fundiu-se no exterior, perdendo a capacidade de o mudar, no irreversível caminho de andar para a frente, o que, por vezes, me obriga a olhar para trás, transformada em sal, para ler a frase do Agostinho da Silva “Um livro é um delírio coerente.”
F.
A parafernália digital, em contexto de sala de aula, só pode ser mais um instrumento ao serviço de professores e alunos que querem ensinar e aprender velhos e novos conhecimentos. Ora, na revolução em curso, da escola inclusiva com autonomia e flexibilidade curricular, todos os conhecimentos disciplinares estão a ser desprezados, reduzidos e sacrificados para que o sucesso dos alunos seja total e absoluto!
Assim, com a Educação virada de pernas para o ar, a internet e os telemóveis prejudicam mais do que ajudam professores e alunos!
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