Artigo de Guilherme Valente no Observador:
As discriminações não se combatem levando as pessoas a auto-discriminarem-se. Não quero reservas ‘índias’ na minha terra!
NUM TEXTO recente no Observador, critiquei
a defesa feita por Alexandre Homem Cristo da inserção no Censo de 2021
de perguntas sobre as origens étnicas ou ‘raciais’ da população
portuguesa.
Segundo
ele, no próximo Censo, o INE deveria incluir no questionário perguntas
aos inquiridos sobre as suas origens étnicas ou ‘raciais’.
Seguramente
bem-intencionado, AHC terá caído em logro idêntico àquele em que terão
incorrido alguns dos académicos subscritores de uma ‘Carta Aberta’ de
oposição a um Museu dos Descobrimentos, há uns meses divulgada. Na
verdade, está tudo ligado.
Na minha crítica à posição de AHC, procurei mostrar não apenas a impraticabilidade científica de tal inquérito mas a sua perversidade. O argumento de que as respostas a essas perguntas permitiriam ao Estado enfrentar as discriminações ronda o inimaginável.
A INTENÇÃO da iniciativa de tal Censo – fingindo ser, digamos, técnica e politicamente neutra – é flagrantemente política e ideológica.
Intenção
em que convergem, como se vem manifestando noutros registos pela
Europa, os extremos do espectro político. Numa crónica recente no Público
(1 de Julho), António Barreto sugere esta mesma possibilidade,
ilustrando cabalmente o absurdo científico de tal inquérito (1) e
referindo expressivamente o efeito potenciador de racismo e de
discriminação que teria.
Num comentário urbano a esse meu artigo no Observador,
um leitor lembrou-me que as respostas ao questionário seriam anónimas.
Tentei explicar-lhe que esse facto não impediria o efeito perverso das
perguntas, mas antes o potenciaria, pois as interrogações que se nos
colocam na solidão da nossa consciência tocam-nos mais profunda e
estigmatizadoramente do que as interpelações públicas.
CONSIDERO
MESMO que, num acme de perversidade, o objectivo de tal Censo seria gerar a auto discriminação. Manter num gueto também interiorizado de
miséria e inferioridade a gente étnica, cultural, económica e
socialmente fragilizada -- da qual o activismo dito anti-racista e os
grupos políticos que o apoiam se servem como carne para canhão para
desígnios sinistros.
A
discriminação não se combate levando as pessoas a discriminarem-se a
elas próprias, a interiorizarem uma sua suposta inferioridade.
Abominável, tal Censo seria mais uma etapa num processo que conduziria em última instância a uma regressão civilizacional. O mesmo
objectivo, afinal, da tentativa de chantagem com o passado histórico de
Portugal – obra humana, por isso imperfeita, admirável e gloriosa.
E
TAL COMO A. Barreto sugeriu, também eu penso que o ‘problema’ não são
os indianos, nem os judeus – estes até (inconfessadamente) achados
superiores, e por isso invejados e perseguidos entre nós no passado –,
nem os chineses.
Chineses
cuja civilização deslumbrou a Europa e cuja riqueza voltamos a invejar –
como a minha geração invejou a da América. Chineses que, pelo que
sempre foram milenarmente, são indiferentes ao que pensamos deles
(‘viver e deixar viver’).
O
problema nem são mesmo os ciganos – afinal, em muito, um ‘problema’
civil, administrativo, do sistema educativo e de acção social, de
coragem política firme na vontade de os integrar.
O
‘problema’ são... os negros. Esses ‘eternos’ deserdados do planeta,
‘eternos’ estigmatizados e inferiorizados do mundo. Bodes expiatórios,
alvo perfeito para a projecção das pulsões mais odiosas recalcadas nos
recônditos reptilianos do ser humano.
O
problema é o racismo branco e o racismo negro, os extremos políticos
ressentidos, aliados oportunistas do racismo negro muçulmano, do
radicalismo islâmico, como é mais visível na França. Pensando que por
aí virá a concretização da profecia, afinal abominável, de Marx.
O QUE QUEREM impor é um mundo de apartheid,
de guetos, tribal, de todos contra todos. O que os afronta e detém são
os valores iluministas e solidários, o humanismo e o universalismo, o
melhor do espírito europeu. O seu alvo mais do que evidente é o Estado meritocrático.
Não
é numa sociedade assim que quero viver! Há pessoas com quem gosto de
conviver, outras que não me dizem nada e algumas que evito mesmo. Pessoas de todas as cores, que nem vejo a cor delas. Não abdicarei do
convívio fraternal de muitos amigos negros, ‘brancos’, deste ou daquele
partido (que não me queira impor a sua ideologia). Sou cristão e
europeu. Não quero ver reservas na minha terra.
(1)
Acrescento ainda: na sucessão das gerações, no ‘jogo dos possíveis
genético’ (F. Jacob), em que momento alguém passará a ser, a responder,
‘branco’ ou ‘negro’? No meu caso, por exemplo, em que momentos ‘eu’
deixei de ser viking para passar a ser celta-ibero, lusitano, semita,
berbere (umas pitadas, que nasci a Norte do Tejo), ‘branco’, enfim?
Tão estúpido quanto sinistro tal Censo!
Guilherme Valente (editor)
Guilherme Valente (editor)
1 comentário:
Entre os riscos da globalização, que podem também ser revertidos em virtualidades ou potencialidades, consoante o "controlo", vivemos numa época em que o "controlo" (ou pelo menos o problema do controlo) é omnipresente, omnisciente e omnipotente, qual Deus dos hebreus e dos cristãos, e dos outros, há que considerar o "enfoque", ou a atenção privilegiada de umas questões relativamente às outras. Centrar toda a atenção, por exemplo, no combate aos nossos inimigos invisíveis, quais demónios, se isso for metódica e "superiormente" programado, nomeadamente através das redes sociais e dos noticiários e dos programas partidários, pode ser um descalabro social e cultural. Imaginemos uma escola que não pensa em mais nada que não seja em "não deixes" que o teu amigo te passe a perna, somos todos inimigos uns dos outros, estamos todos a lutar pelo primeiro lugar, o nosso objetivo não é ser felizes, é vencer, custe o que custar, ninguém deve ter o privilégio de poder sorrir e de poder dormir em paz, porque a vida só tem o significado de ser uma luta e uma concorrência e o mérito de quem morre a trabalhar é o verdadeiro mérito, porque não há mérito em se ter talento e em se gostar de gozar a vida, porque isso é baixar as guardas, é entorpecimento fatal, que os nossos inimigos, que são potencialmente todos os que nos rodeiam, muito provavelmente, aproveitarão, em nosso prejuízo...Etc., etc....
Temos de ser capazes de enfrentar esta ameaça de totalitarismo, que se vai mostrando como a outra face do capitalismo/consumismo. Mas não é fácil.
Temos de ser capazes de transformar/reconhecer as boas causas como causas comuns. Neste barco em que vamos todos, quem quiser por alguém fora, deve pensar primeiro se não estará a mais.
Enviar um comentário