sexta-feira, 5 de julho de 2019

Ensino e sedução — Notas de leitura

O filósofo francês Gilles Lipovetsky, no seu mais recente ensaio publicado em Portugal, Agradar e Tocar — Ensaio sobre a Sociedade da Sedução, 2019, Lisboa, Edições 70, apresenta-nos mais uma extraordinária análise da sociedade contemporânea.

Neste ensaio, Lipovetsky analisa o poder da sedução, nos mais diferentes domínios, a sua presença ao longo da história da humanidade, mostrando que “agradar e tocar” é um princípio que se aplica a tudo e a todos:
“aplica-se aos homens, às mulheres, aos consumidores, bem como aos políticos e até aos pais; é “a lei e os profetas” dos tempos hipermodernos”, alertando para os perigos que daí advêm, pois “a sociedade da sedução, tal como hoje funciona, não é um modelo sustentável nem um futuro desejável”, lembrando que é preciso “uma sociedade da sedução de alguma forma aumentada ou enriquecida, que, dando todas as oportunidades à cultura, ao saber, à criatividade, proponha às gerações futuras atrações diferentes das do cosmos comercial.” (in Introdução)
No capítulo dedicado à sedução na educação, o filósofo analisa as várias “modas” em matéria de educação e ensino, desde a atitude dos pais perante os filhos às pedagogias nos estabelecimentos escolares. Fazendo uma análise do ensino ao longo do século XX, debruça-se sobre as correntes da Escola Nova e o seu ideal de espontaneidade da criança, que deve aprender por si, ao seu ritmo, segundo as suas apetências, sempre de forma lúdica e atractiva. Dando toda a liberdade à criança na construção do seu saber, nada impondo, a nada obrigando, numa inteira liberdade de escolha, estas pedagogias contribuíram para o fracasso na aquisição de conhecimentos e foram alvo das mais violentas críticas, principalmente por parte daqueles que defendiam o regresso à escola “tradicional”:
“O fracasso das pedagogias modernas... é flagrante, pois não permitem nem a aquisição de competências escolares elementares nem a redução das desigualdades sociais e da influência do meio de origem sobre os alunos.” p. 347
Acrescentado o autor:
“Fomos demasiado longe na eliminação dos métodos tradicionais de transmissão que são necessários para a aprendizagem da leitura e da escrita, para adquirir os mecanismos necessários ao bom exercício do pensamento. No entanto, isto não significa os apelos ao regresso da escola de outrora.” p. 347-348
Não é preciso regressar à escola de antigamente, mas saber conciliar os dois modelos, não rejeitar o que de bom existia, mas adaptar. A educação pela sedução, na ideia de que tudo tem de ser fácil e atractivo, de que a aprendizagem tem de ser feita a um ritmo agradável, eliminando todos os exercícios enfadonhos que afastam a criança do gosto de ir à escola, só conduz a maiores desigualdades sociais e a um desfasamento entre a escola e a sociedade:
“A aquisição dos saberes abstratos e cultivados exige necessariamente esforços perseverantes, disciplina intelectual, repetição, exercícios geralmente fastidiosos. Mas nem tudo deve ser lúdico e atrativo: o trabalho difícil, metódico e organizado dos alunos é necessário para transmitir o património dos saberes e desenvolver as capacidades de inteleção de todos.” p. 349
Depois das críticas a estas pedagogias da Escola Nova, outras “modernidades” surgiram, nos tempos mais actuais:
 “ uma nova magia apoderou-se da época: a do complexo digital-educativo.”
Assistimos agora ao deslumbramento pelas tecnologias, apresentadas como uma solução maravilhosa para todos os problemas do ensino, como uma nova “máquina” de sedução que dará a todos as mesmas oportunidades, que irá cativar os alunos para o gosto de aprender, que tornará a escola um local “apetecível” onde crianças e jovens gostam de estar, onde se sentem felizes. E assim:
“Ao peso da aquisição tradicional dos saberes, sucede uma aprendizagem “informal”, fragmentada e descontínua, que permite menos submissão ao discurso do mestre, mais interatividade e autonomia dos alunos que se tornam assim “agentes das suas próprias aprendizagens”. É a utopia da “sociedade descolarizada” já imaginada por Ivan  Illich, revitalizada, reerguida, possibilitada pelos milagres da informação em rede.” p. 351
Mais uma vez o autor alerta para os perigos deste exagero:
 “... não podemos abandonar a escola clássica, a única capaz de fornecer os conhecimentos básicos para saber ler, escrever, contar, exprimir-se corretamente, argumentar, expor com correção e rigor as ideias. Não enterremos demasiado depressa as práticas metódicas de aprendizagem, que, baseadas na repetição, na memorização, na transmissão das referências fundamentais, são tão indispensáveis como o eram no passado. A liberdade do espírito e a formação das mentes “bem feitas” exigem a perpetuação de alguns métodos clássicos “estritos”, mais necessários que nunca numa época de excrescência dos dados e de dispersão ”googlizada”. É ilusório pensar que as navegações na Internet estão à altura desta exigência e que são capazes de assegurar a aprendizagem do rigor intelectual, bem como o domínio das normas da expressão oral e escrita.” p. 354
Em tudo podemos ver como o excesso é prejudicial. Cortar de vez com o passado, na ideia de que tudo estava mal e que queremos, no presente, apresentar ideias novas, mais consentâneas com a actualidade, só pode gerar novas discrepâncias, fazer das novas gerações “cobaias” de experiências que nunca são avaliadas para delas se separar o melhor do pior.

Na educação, como em tudo, é preciso prudência na introdução de novos paradigmas, é preciso explicitar o que queremos e não “alinhar” em modas que, como a própria palavra indica, são passageiras. Essencialmente, é necessário aplicar aquela máxima dos sábios gregos μηδὲν ἄγαν, quer dizer “nada em excesso”, princípio que, aqui, é extremamente importante.

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Ao ler este texto penso que muitas confusões são disseminadas (intencionalmente) ao sabor dos ventos políticos, não políticos, ou ideológicos propriamente ditos, mas políticos de partidos (não necessariamente organizações político-partidárias) avassalados. Parece fácil ser contra uma coisa e a favor de outra, mais ou menos contrária. Parece fácil ser, ao mesmo tempo, a favor de uma coisa e da sua contrária. Mas há uma dificuldade que é o vazio, a náusea, a imunidade. Os anticorpos são o que nos salva, professores e alunos, do caldo sulfuroso e demoníaco do palavreado. Se a educação sofre e corre perigo, é por causa do palavreado que se reproduz à velocidade da luz. Os educandos desenvolvem anticorpos, estão a salvo, mas a educação tem que se cuidar. E não tem outro remédio.
Falar em educação moderna, ou nova educação e em educação tradicional é falar de um problema que nem é novo, nem é tradicional.
O problema da educação não se reduz a opções de pedagogias, nem de didácticas, nem de métodos de ensino, nem de métodos de aprendizagens.
Diria que estes aspectos são a realidade da escola enquanto lugar/espaço/tempo de transmissão/aquisição/avaliação de competências/conhecimentos/valores.
Ou seja, não existe escola sem isso. A escola é isso. É muito? Depende. É pouco? Depende.
Depende do que ensinar e do que aprenderem e de muitas coisas mais. Mas o ensinar e o aprender dependem de inúmeros factores, uns controláveis, outros não e outros mais ou menos controláveis.
Das inúmeras falsas questões, ou pelo menos irrelevantes, meramente redundantes ou ruidosas, em torno da escola, destaco a recorrência ao qualificativo "tradicional", como se fosse a panaceia e a resposta para todos os problemas. O ensino é tradicional, a educação é tradicional. Isso é bom? Mas se até os defensores do tradicional/panaceia/resposta estão na primeira linha da sua crítica?!
Se os testemunhos pessoais valessem como argumento para alguma conclusão, eu, que fui educado e ensinado no século anterior, na escola do Salazar e do Caetano e, depois, do 25 de abril, não lhe encontrei nenhuma qualidade ou virtude. A escola não deve ser apenas uma instituição de certificação de competências. Isto é o caminho mais fácil para a escola e para muitos alunos, mas não é para todos. A escola de hoje é incomensuravelmente melhor, nem tem comparação, com a escola (era escola?) dos meus tempos de estudante. Aprendia-se mais? Ensinava-se mais? Avaliava-se melhor? Não. Experimente-se um quadro comparativo, em duas colunas, entre a escola de há 40/50 anos atrás e a escola de hoje.
Quanto às teorias, do ensino centrado no aluno ou expositivo, não são mais do que isso, teorias. O construtivismo? Não foi a geologia que produziu as pedras. A educação e o ensino antes de o serem já o eram.

Anónimo disse...

A dicotomia escola tradicional/ escola moderna, tal como nos é apresentada pelo progressista Carlos Soares, cheia de verborreia e falácia, se outro efeito não tiver, provoca, de certeza, um estado de náusea em qualquer leitor que entre de chofre neste blogue. Vamos ter calma!
Efetivamente, a dicotomia em causa no mundo atual é entre escola e anti-escola (palhaçada). Se o sábio Carlos Soares defende que substituir História, que se ensinava e aprendia na escola fascista, de Salazar e Caetano, por Cidadania, que consiste, na prática, em fazer um trabalho de grupo, em powerpoint, com recurso à internet, sobre a droga, a igualdade de género ou o aquecimento global, é construir uma escola melhor, então, assumindo até às últimas consequências a tempestade cerebral da moda, porque não transformar os mega agrupamentos escolares em circos de multi-pistas onde os palhaços de corpo inteiro projetem e inovem como manda a lei da autonomia e flexibilidade curricular?!

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