terça-feira, 16 de junho de 2015

Arte e Pornografia



Uma secção e  o Índice do livro LIBERDADE DE EXPRESSÃO. Uma breve introdução de NIGEL WARBURTON, que está a sair na Gradiva na colecção Filosofia Aberta. A tradução é de VÍTOR GUERREIRO (Instituto de Filosofia da Universidade do Porto) e a revisão científica de AIRES ALMEIDA (Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa):

Arte e pornografia

Haverá boas razões para que a fotografia sexualmente explícita de Robert Mapplethorpe, as esculturas dos irmãos Chapman, ou Lolita de Vladimir Nabokov devam ser imunes à censura a que poderiam estar sujeitas se não tivessem sido criadas por artistas ou escritores reconhecidos? Haverá uma defesa especial para as artes que as possa isentar da censura? Um modo de responder a isto é que os artistas devem estar imunes à censura por causa da seriedade das suas tentativas de abordar a condição humana e por causa das qualidades literárias ou artísticas da interpretação de acontecimentos que tornam complexa a experiência dessas obras. Na nossa cultura, privilegiamos apropriadamente o papel do artista porque é pela arte que a cultura é transmitida e questionada.

Talvez o caso mais importante em que foi usada uma defesa artística tenha sido o julgamento a propósito de O Amante de Lady Chatterley, no Reino Unido. Este julgamento, que teve lugar em 1960, devia determinar se o romance de D. H. Lawrence poderia ou não ser publicado na Grã‑Bretanha ou se deveria permanecer banido ao abrigo do Édito relativo a Publicações Obscenas. Mais de cinquenta especialistas foram chamados a testemunhar sobre os méritos literários do livro, incluindo E. M. Forster, Raymond Williams e Richard Hoggart. Por consenso geral, O Amante de Lady Chatterley está longe de ser o melhor livro de Lawrence, mas as testemunhas fizeram uma boa defesa dos seus méritos literários, cientes de que não defendiam apenas um livro particular mas também a liberdade de um escritor exprimir a sua perspectiva sobre a vida. O livro, com o seu uso repetido da palavra «foder» e a descrição detalhada do adultério, era sem dúvida potencialmente ofensivo para muitos leitores. O teste da obscenidade, contudo, era o de que corromperia os leitores e os tornaria depravados. O juiz que se encarregou do caso decidiu que o livro poderia ser publicado (mas não antes de perguntar ao júri se estaria à vontade com a ideia de os seus criados o lerem).

Em 1990, a exposição The Perfect Moment do fotógrafo Robert Mapplethorpe foi apresentada no Centro de Arte Contemporânea em Cincinnati. A exposição incluía imagens explícitas de sado‑masoquismo homossexual, sexo oral masculino e também uma fotografia, Rosie (1976), de
uma menina de quatro anos sentada num banco de jardim, vestindo uma saia que claramente deixava ver os seus genitais.

O director do museu, Dennis Barrie, foi acusado de obscenidade e uso impróprio de um menor numa fotografia. A imagem não foi incluída quando a exposição passou para a Galeria Hayward de Londres. Como sucedera com o julgamento sobre O Amante de Lady Chatterley, as questões
acerca do mérito artístico eram centrais. Dennis Barrie foi absolvido com base em que o trabalho de Mapplethorpe mostrava grande sensibilidade artística com o erótico.

A fotografia de Mapplethorpe é frequentemente bela e altamente formal, mesmo quando os seus sujeitos participam em actividades sadomasoquistas hardcore explícitas. A sua defesa poderia também ter‑se tornado mais fácil pelo conhecimento disseminado da sua própria homossexualidade. Numa entrevista, explicou como queria usar a obscenidade, mas ao mesmo tempo transcendê‑la:

"Poderia ser pornografia e ainda assim ter valor social redentor. Pode ser ambas as coisas, o que é o meu propósito ao fazê‑lo — ter todos os elementos da pornografia e no entanto ter uma estrutura de iluminação que a faz ir além do que é. "

A questão levantada quer pelo julgamento sobre O Amante de Lady Chatterley quer pelo julgamento sobre Mapplethorpe, contudo, é a de um juízo de mérito artístico dever ou não ser um factor para determinar se um livro, imagem, filme ou actuação devem ou não ser censurados. 

A abordagem mais libertária consiste em argumentar que toda a censura artística é errada. Nesta perspectiva, os artistas devem ser livres de desafiar tudo o que desejarem desafiar e exprimirem‑se de qualquer modo que achem apropriado, com ou sem mestria artística. Semelhante posição é mais fácil de afirmar como palavra de ordem do que de justificar. Isto é assim particularmente na área das imagens sexualizadas de crianças. Quando há crianças lesadas na produção dessas imagens, não há necessidade de relacionar este assunto com questões de liberdade de expressão. Mas mesmo quando as crianças não são fisicamente lesadas, como no caso Mapplethorpe, muitos (e conto‑me entre eles) sentem que o risco de estimular a imaginação perversa dos pedófilos é um preço demasiado elevado a pagar pela liberdade artística. Para outros, contudo, por repugnante que uma tal imagem lhes possa parecer, deveria ser tolerada. É fácil tolerar a arte de que gostamos — o teste genuíno sobre se o leitor é ou não sincero quanto à liberdade de expressão é quando está disposto a tolerar a arte que acha repugnante e profundamente ofensiva. A tolerância, evidentemente, não impede a oposição que fique aquém da censura. 

Na explicação que apresentou deste caso no seu livro Eroticism and Art, a historiadora da arte Alyce Mahon parece surpreendida por a fotografia ter provocado consternação

 "[...] apesar de a modelo, Rosie, uma mulher adulta de 23 anos na altura da exposição, não ter qualquer problema com o seu retrato e o exibir alegremente em Notting Hill, Londres, no restaurante que geria."

O consentimento restrospectivo de uma modelo não é, todavia, a questão aqui. Imagine‑se
o caso em que, na verdade, Rosie se sentiria, em adulta, profundamente envergonhada desta imagem amplamente reproduzida. Ela não tinha, quando a imagem foi feita, idade que lhe permitisse ter dado um consentimento informado em ser fotografada. Embora não tenha sido fisicamente lesada no processo, caso tivesse ficado gravemente traumatizada pela exposição pública da imagem, isso seria o equivalente a um dano psicológico. Mapplethorpe não poderia saber que mais tarde ela teria orgulho na fotografia, em vez de se sentir perturbada por esta. A ausência de possibilidade de consentimento num caso semelhante torna‑o muito diferente de uma imagem de um adulto tirada com o consentimento desse adulto.

Uma fotografia maravilhosamente tirada e proficientemente impressa dos genitais de uma rapariga de quatro anos é, ainda assim, uma fotografia que pode facilmente excitar um pedófilo, e a sua exibição pública pode também comunicar indirectamente a ideia de que fixar um olhar sexual por baixo da saia de uma criança de quatro anos é socialmente aceitável. Por esta razão, não aprovaria a sua exibição. Dado o contexto de uma exposição que contém fotografias de actos inequivocamente sexuais, seria desonesto afirmar que não há aqui sugestão de sexualidade na imagem Rosie. A justaposição com fotografias de pessoas fazendo todo o tipo de sexo torna quase inevitável uma leitura sexual. É razoável questionar os motivos de um artista que cria e exibe semelhante imagem; é também correcta a preocupação com os efeitos prováveis de exibir essa imagem. Os riscos associados a esta fotografia e outras como ela são, para mim, demasiado elevados para lhe dar o benefício da dúvida. Na verdade, há algo perturbador na perspectiva de que a expressão artística e o mérito dessa imagem a devem tornar imune a outras considerações, como se as preocupações artísticas se sobrepusessem sempre às morais.

Maioritariamente, os defensores liberais da livre expressão argumentam a favor de um princípio formal que se centra na protecção do discurso, que seja neutro quanto às ideias expressas (até ao ponto em que incitam ao dano). Nos casos descritos, contudo, o mérito artístico das obras em causa foi considerado relevante. Tivessem os tribunais demonstrado que quer o livro de Lawrence quer as fotografias de Mapplethorpe careciam inteiramente de mérito artístico, então teriam muito provavelmente sido banidos. Mas por que razão deveria o mérito artístico ser relevante? 

Uma resposta é que as obras artísticas exprimem e dão corpo a pensamentos acerca daquilo que descrevem ou representam. Nesta perspectiva, o propósito de uma obra pornográfica é ser transparente quanto ao que está diante da lente. A pornografia é um tipo de voyeurismo. Por contraste, a arte que superficialmente se assemelha à pornografia interpõe sempre a interpretação e o envolvimento imaginativo com o assunto. Pode, como argumentou Susan Sontag, representar aquilo a que chamou «a imaginação pornográfica», como por exemplo num romance que representasse um pedófilo ou um sádico sexual. 

O Amante de Lady Chatterley não foi escrito do modo como foi simplesmente para excitar o leitor; as imagens de Mapplethorpe não são simplesmente feitas como pornografia, mas pretende‑se que sejam vistas como formalmente belas, partilhando algumas das qualidades da arte clássica. Neste tipo de argumento, é a possibilidade da compreensão reflexiva ou de apresentar um carácter que essas obras dão ao observador ou leitor que as leva além da pornografia e lhes permite serem tratadas de modo diferente. Uma fotografia de uma menina de quatro anos tirada por um pedófilo constituiria claramente um tipo de abuso. Segundo este argumento, Mapplethorpe deve ser tratado de modo diferente do pedófilo porque a sua mestria artística lhe permitiu produzir uma imagem que é acerca da inocência e beleza em vez de visar o estímulo sexual. Uma dificuldade pragmática neste género de abordagem, contudo, está em distinguir entre o artista e o pedófilo que deseja trabalhar sob a protecção de um princípio que protege a arte erótica.

Outro argumento para tratar a arte como uma zona protegida é que a arte, pela sua própria natureza, é uma área de actividade humana que coloca desafios sérios e importantes à opinião estabelecida. As restrições à liberdade artística são, nesta perspectiva, particularmente perniciosas porque limitam a criatividade das mesmas pessoas que mantêm a nossa cultura viva, auto‑reflexiva e autocrítica.

No entanto, esta abordagem é antitética de qualquer outra abordagem à liberdade de expressão assente num livre mercado de ideias: supõe que um domínio da expressão deve ser protegido acima dos outros. Este género de imunidade à censura foi também invocado na área da arte que ofende as sensibilidades religiosas. Dois casos bastam para ilustrar esta ideia, ambos considerados ofensivos.

Quando Andres Serrano submergiu um crucifixo na sua própria urina e o fotografou como Piss Christ, muitos cristãos ficaram profundamente ofendidos com esta obra deliberadamente provocadora. Na verdade, foram levantadas questões ao senado norte‑americano sobre a legitimidade de este artista ter conseguido financiamento público para aquela obra. Alguns dos que falaram negativamente acerca de Piss Christ afirmaram que Serrano não era um artista, talvez reconhecendo indirectamente um argumento de que a arte merece protecção especial da censura.

Analogamente, embora à primeira vista a imagem de Maria por Chris Ofili, em 1996, seja suficientemente inofensiva, o seio direito da Virgem foi feito a partir de excremento de elefante, e o fundo decorado com fotografias de partes corporais tiradas de revistas pornográficas. Mais uma vez, muitos cristãos acharam ofensiva esta obra. Quando foi levada para o Brooklyn Museum of Art, integrando a exposição Sensation, de 1999, o então presidente da Câmara de Nova Iorque, Rudolph Giuliani, foi um dos que se sentiu ultrajado perante esta poderosa combinação de aparente blasfémia e imagens sexualmente explícitas. Considerou‑a um ataque especificamente dirigido ao catolicismo romano e ameaçou retirar sete milhões de dólares de financiamento público ao museu por causa disso, embora tenha sido posteriormente forçado a ceder.

Muitos no mundo da arte se escandalizaram com a tentativa de censurar a arte. A arte deveria ser imune a este género de crítica, afirmaram. Mas há um bom argumento de acordo com o qual é o acto de censura que estava errado, não o facto de aquilo que foi censurado ser arte. Numa sociedade civilizada, a liberdade de ofender deve ser protegida, mas não há boas razões para fazer da arte um caso especial e protegê‑la da censura apenas porque é arte.

ÍNDICE


Prefácio................................................................................

1. Livre Expressão.................................................................
A Primeira Emenda...............................................................
O que se entende por «expressão»?.....................................
O que se entende por «livre»?..............................................
Liberdade e não licenciosidade.............................................
Onde traçar o limite?.............................................................
Um argumento da derrapagem............................................
Argumentos instrumentais e morais a favor da livre
expressão.............................................................................
A liberdade de expressão, hoje.............................................
Os Versículos Satânicos e os cartunes dinamarqueses........  

2. Um livre mercado de ideias?..........................................
Sobre a Liberdade, de John Stuart Mill..............................
O princípio do dano, de Mill..............................................
Os argumentos de Mill.......................................................
O argumento da infalibilidade.............................................
O argumento do dogma morto............................................
O argumento da verdade parcial.........................................
Quão relevantes são os argumentos de Mill, hoje?...........  
Negação do Holocausto.....................................................
Respeito em detrimento da verdade....................................
Argumentos contra «dar palco»...........................................

3. Ofender e ser ofendido.....................................................
Blasfémia...............................................................................
Discurso de ódio.....................................................................
Skokie e tolerância..................................................................

4. Censurar a pornografia.....................................................
O que é a pornografia?..........................................................
A pornografia hardcore será uma forma de expressão?.....    
Uma defesa feminista da pornografia.................................    
Dano físico e psicológico para os participantes.................    
Pornografia e violação............................................................
Males sociais.........................................................................
A abordagem do moralista jurídico à pornografia............      
Arte e pornografia..................................................................

5. A liberdade de expressão na era da Internet..................
Será que a Internet mudou tudo?........................................
Alguns perigos da Internet...................................................
O «Diário de Mim»?...........................................................
Paternalismo com as crianças...............................................
Usar palavras e imagens de outras pessoas.......................  
Liberdade de expressão contra propriedade intelectual....    
O movimento para reformar a lei da propriedade intelectual..................................................................................
Conclusão...................................................................................

Liberdade de expressão: algumas datas marcantes.....................
Bibliografia.................................................................................
Leituras complementares............................................................
Índice remissivo..........................................................................

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