domingo, 25 de maio de 2014

Um despacho do secretário de Estado da Educação João Grancho

“E é por isto que te aconselho a pores ponto nessas missivas, e a não falares em ‘respostas apropriadas’, de que  aqui toda a gente se ri” (Camilo Castelo Branco).

Não se desse a circunstância de João Henrique Grancho, actual secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário, ser diplomado pela Escola do Magistério Primário do Porto, ensino médio com larga tradição na exigência do ensino da Gramática aos seus alunos,  era de deixar passar em branco a vírgula  da lacónica frase do seu despacho oficial ao “Pedido de dispensa da componente lectiva e não lectiva para os classificadores e supervisores das provas finais dos 1.º e 2.º Ciclos” (14/04/2014). Reza desse brevíssimo naco de prosa: "Concordo e autorizo, nos termos propostos".

Ou seja, a vírgula horrenda que pousou neste naco de prosa  teria pleno cabimento se a frase,  manuscrita  por Sua Excelência,   tivesse a seguinte redacção: Nos termos propostos, concordo e autorizo. Mas não foi o caso!

Escreveu Camilo ( cito de memória): “Pode-se asnear nos tratamentos; mas na gramática lavra mais fino”. Asnear nos tratamentos, segundo o festejado  autor  do “ Amor de Perdição”,  nem real importância tem. Mas na Gramática não se pode (ou melhor, não se deve!) dar pontapés!

Já o nosso Padre António Vieira comungava do perigo dos manuscritos.  Escreveu ele: “Três dedos com uma pena na mão é o ofício mais arriscado que tem o género humano”. Não sei, nem isso vem ao caso, se este despacho foi escrito com uma simples “BIC” ou com uma sofisticada caneta “Montblanc”. Mas já seria de interesse saber se este tipo de despacho,  utilizado no dia-a-dia dos gabinetes do Governo, padece de igual erro relativamente a outros anteriores ou posteriores, subscritos pelo senhor Secretário de Estado,  ou se tratou de um lapsus calami.  Mas se errare humanum est, perseverare diabolicum, a ter acontecido,  merece  tamanho erro a palmatória da “menina dos 5 olhos” da antiga escola primária de tempos idos.


P.S. : Este meu texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

41 comentários:

Graça Sampaio disse...

Não sabia que o «capitão Gancho» tinha essa base de instrução.

Anónimo disse...

Rui Batista, conheci tanto filho da puta de excelente gramática que fico a pensar, respeitoso e cordial e com profundidade e seriedade, como manda o vosso livro de etiqueta, que o seu post é um bocejo um pouco enfatuado.

Cordialmente,
Pedro Teixeira

Anónimo disse...

Dou-lhe os meus sinceros parabéns, caro Sr. Rui Baptista, por ter detectado tão gravíssimo erro, demonstração inequívoca da incompetência da nossa classe política, e por ter, simultaneamente, realizado o prodígio de dedicar quatro parágrafos e três citações ao assunto, onde ainda conseguiu convocar o Latim... Realmente, só me surpreende mais o facto de ainda não ter apresentado a demissão o Sr. João Grancho. Por amor de Deus...

Nuno

Fora da lei disse...

Professor, tenho uma dúvida!

Acha que uma pessoa que não fez qualquer licenciatura pode, numa Universidade Católica, tirar uma especialização (pós-graduação)? Pós graduação não significa uma graduação após outra?
E acha que esse alguém que não tem qualquer licenciatura pode, num qualquer instituto, daqueles em que se paga bem, dar formação a mestrandos?
Não sei se as vírgulas se encontram bem colocadas... Tenho alguma dificuldade nos complementos circunstanciais, os tais grupos móveis das frases que camaleonicamente vão mudando de rótulo ao longo da existência...
Elucide-me.

Nota: Se soubesse o que sei hoje, teria seguido a carreira de cantora. Sempre me divertia.

António Pedro Pereira disse...

Senhor Rui Baptista:
Mas este senhor, pela idade que aparenta, estudou nos tempos da «boa escola», nos tempos em que um diplomado com a 4.ª classe (ou seria a 3.ª classe, o topo do ensino obrigatório até aos anos 60?) saia da escola a saber mais do que um licenciado de hoje (ou será mestrado, as licenciaturas curtas bolonhesas desceram à categoria dos extintos bacharelatos).
Contradições insanáveis para certas narrativas que a realidade se encarrega de desmentir todos os dias.
Talvez fosse prudente os Ruis Baptistas deste blog (e de tantos outros) meditarem sobre este caso (e tantos outros) do mau uso da nossa nobre Língua, não desperdiçando setas fora do alvo dos culpados.

Anónimo disse...

O mais curioso é que "postadores" como o Fiolhais ou o Luís Alcácer preciosidades ortográficas bem mais graves têm deixado aqui e o Baptista tem calado e comido. Isto para não falar nas citações algumas vezes inventivas ou ardilosamente truncadas do próprio Baptista. Isto do síndrome de professor de escola primária deve ser coisa patológica.

Rui Baptista disse...

Uma vírgula mal colocada não justificaria tal demissão por parte do actual secretário de Estado da Educação. Nada disso! Se reparar, eu até ponho a hipótese de ter sido um simples "lapsus calami"! Aliás, casos graves da vida privada, pública e/ou política portuguesa não têm tido decisões tão draconianas.

Chega-se, até, ao ponto de serem desculpados esses casos com o anexim: "Os cães ladram e a caravana passa"?" Embora situações dessas, em defesa da ética e da moral dos costumes, justificassem, no mínimo, uma tomada de posição pessoal de pedido de demissão em nome de um pingo de vergonha. Um simples pingo de vergonha!

“Last but not least”, mas haverá sempre suspeitas sobre a fonte donde emanou este comentário e as motivações do seu signatário: Nuno, “tout court”!

Rui Baptista disse...

No verdadeiro regabofe em que se tornou certo ensino superior em Portugal (vide, por exemplo, provas de acesso para maiores de 23 anos!) tudo é possível neste "jardim à beira-mar plantado" com cardos de legislação feitos à medida de interesses pessoais ou clientelas políticas. Quanto a especializações, um especialista, como escreveu alguém, com certa ironia, é aquele que sabe cada vez mais de cada vez menos. O que é diferente de saber cada vez mais de absolutamente nada!

Trinado disse...

Há uma decadente ligeireza no reino da Dinamarca...
Irrito-me quando alguém se lembra de passar de fá maior para fá sustenido menor. Por exemplo, a opus 99 de Brahms, uma sonata para violoncelo e piano, era inicialmente em fá maior. Que chatice esta mania de atonalidade! Fica por ali o cânone a sofrer de irregularidades e de dodecafonismos divinos... Claro que tudo se ajusta e no fim até parece que soa bem.

Já agora, essa do especialista é do livrinho "A lei de Murphy" que retrata exemplarmente a ordem estupidológica das coisas e dos seres.

Anónimo disse...

Não me escandaliza uma vírgula a mais ou a menos. Há coisas mais prosaicas como as verbas que se encurtam na educação e na despesa com a função pública em geral, que são escandalosas. E quando ouvimos falar dos cortes para 2015, uma vírgula o que é?! Além de vírgula.

Anónimo disse...

Entre postadores deste blog e citações criativas ou truncadas do professor primário, erros bem mais graves podem ser encontrados aqui. Mas parece que para esses temos que fingir que não vimos. "Em casa de ferreiro, espeto de pau" ou um outro desproposito qualquer para esconder aquela palavra que começa com Hipo e termina com crita.

Ao que parece o lápis azul anda à solta por aqui.

Anónimo disse...

Um favor lhe peço: não chame "antiga" à sua ortografia. Ela é, sim, a que legalmente vigora. O que resultou do repugnante acordo ortográfico de 1990 foi uma aviltante mixórdia que se pretende ilegalmente impor. Mas pretender que aquilo é a actual ortografia da língua portuguesa é - como já exaustivamente demonstrado - uma gritantreilegalidade que um medíocre aluno do primeiro ano de um curso de direito tem obrigação de conhecer.

Só um povo profundamente inculto e embrutecido, sem ponta de amor-próprio (o que possa restar consome-se como fogo fátuo nessa monstruosidade chamada futebol), governado - e não é de agora - por um arrogante bando de ignorantes venais, pode aceitar a imposição daquela barbaridade.

Costa

Rui Baptista disse...

A importância de uma vírgula num texto oficial traz-me à memória (ainda não necessitada de “Memofante”, tão propagandeado na televisão) o caso verídico, relatado num jornal, de um presidente de Câmara Municipal que, num contrato de concessão de recolha de lixo a uma empresa, por mais uns anos, se viu obrigado a pagar milhões de euros provocados pela respectiva redacção com um vírgula fora do lugar.

Por outro lado, Eça, meu companheiro de mesa de cabeceira, falando de críticas, escreveu: “Quando me aparece um artigo de crítica, sinto-me penetrado de reconhecimento como cidadão e como português. É a impressão de um homem ordeiro e honesto, que, no meio de uma suja desordem de taberna, veja de repente aparecer à porta um ‘gendarme’. Com efeito, a crítica não é só a consciência escrita de uma literatura, é também a polícia da literatura. Onde ela falta, como entre nós, há logo, como entre nós, anarquia e balbúrdia na cidade literária”.

Nunca esperei, quando o escrevi, , que o meu “post” desencadeasse tantos defensores de João Grancho - parafraseando Aquilino Ribeiro, trazendo às costas uma mochila de regimento - para me invectivar por criticar a escrita de um seu despacho que seria marcado a tinta vermelha no exame da 4.ª classe do antigo ensino primário!

Em nome da justiça, exceptuo o seu comentário por se referir a prioridades como, por exemplo, "verbas (escandalosas) que se encurtam na educação e na despesa com a função pública". O primeiro exemplo por mim apresentado, dá conta da má colocação de uma vírgula, num contrato camarário com um empresa privada, que trouxe enorme prejuízo para o erário público. Ou seja, uma simples vírgula merece, pelo menos, a atenção que a sua falta, ou má colocação, provoca no português: uma língua muito traiçoeira, no dizer de Herman José. Como diziam os romanos, “ridendo castigat mores!”

Como soe dizer-se, se os conselhos fossem coisa boa ninguém os dava – vendia-os. “Malgé tout”, atrevo-me a aconselhar o secretário de Estado da Educação (educação e instrução são coisas diferentes, bem o sei!) a fazer passar os seus despachos pelo crivo de um dos seus assessores que domine a Língua pátria! É o mínimo que me deve ser exigido como dever de cidadania!

Rui Baptista disse...

Pondo de parte (não por ter como coisa menor, mas por ignorância minha!) a chamada música clássica, reporto-me, apenas, à frase por mim citada de memória e que ora transcrevo, textualmente, em consulta feita no Google: "Especialista é aquele que sabe cada vez mais a respeito de cada vez menos". Foi seu autor Samuel Butller, novelista e ensaísta (1835-1902).

Rui Baptista disse...

Dado o adiantado da hora, mais tarde responderei ao seu comentário. Todavia, desde já, não posso deixar de lamentar a sua referência maldosa a respeitáveis autores deste e outros blogues associando-os ao meu nome. A questão a dirimir é entre mim e si. Tão-só e apenas, tendo como mote um despacho de João Grancho.

Entretanto, tendo como conselheira a minha almofada, ainda vou pensar se valerá a pena “gastar cera com ruim defunto”!

Virguulina disse...

O problema surge quando a vírgula é a única coisa certa no meio da desordem da taberna perdida na viela mais obscura e bafienta.

Eduardo Martinho disse...

Gostaria que alguém explicasse calmamente qual a diferença que existe – se é que existe – entre "Concordo e autorizo, nos termos propostos" e “Nos termos propostos, concordo e autorizo”.
Estaremos perante algo que justifique tanta (des)conversa?

Rui Baptista disse...

Completamente em consonância consigo. ! Este acordo proposto quer ser mais papista que o próprio Papa! Repare-se que a Inglaterra e os Estados Unidos convivem bem com uma língua comum que se afasta, por vezes, dos cânones do chamado inglês de Oxford.

Pela andar da carruagem, não deverá tardar muito para que exista um acordo para uniformizar a oralidade das vendedeiras do Bolhão com as tias da linha de Cascais.” Carago”!

Rui Baptista disse...

"Respeitoso e cordial e com profundidade e seriedade" (Pedro Teixeira), transcrevo-lhe de Voltaire - embora haja quem lhe não atribua a autoria - o seguinte pensamento (cito de memória): "Posso não concordar com o que diz, mas defendo até à morte o direito que tem em o dizer".

Justifico esta citação com o facto de ter escrito que o meu "post" é um bocejo um pouco enfatuado!

Cordialmente,
Rui Baptista

Rui Baptista disse...

Confundir o lápis azul dos coronéis do Estado Novo com uma simples discordância ortográfica é, no mínimo, aproveitar a ocasião para uma referência política descabida e fora do contexto, confundindo alhos com bugalhos. Mas eu explico-me melhor: a referência ao lápis azul dos coronéis da censura teria pleno cabimento se, porventura, não fossem publicados os inúmeros comentários ao meu"post". Ademais, acresce que os erros ortográficos, por norma, não são corrigidos a azul mas a vermelho!

Já agora, por não ser muito dado a charadas, solicitava-lhe que me descodificasse a palavra começada por "Hipo" e terminada em "crita". Será a palavra Hipócrita sem acento? Quando escreve (e passo a citar) "citações criativas ou truncadas do professor primário", desculpe a insistência, a que "professor primário" se refere?

Rui Baptista disse...

Como diz o povo, no melhor pano cai a nódoa. Extrapolar o "caso Grancho" para a formação dada pelas antigas Escolas do Magistério Primário será confundir a nódoa com o pano. Ou seja, a canção é boa, certos cantores é que destoam.

Rui Baptista disse...

Aceito que o meu “post” seja um preciosismo que não justifica “tanta (des)conversa”. Mas aceitaria de melhor grado se não se desse o caso de João Grancho estar sujeito aos holofotes da crítica pública pelo elevado cargo que desempenha com tutela sobre a Educação. Não há rosas sem espinhos.
Mas adiante! Pelo “post” que escrevi, sentado no banco dos réus por casa dos comentários contra ele levantados, cumpre-me o ónus da prova que me tente ilibar de pena pesada. Só por esse motivo assumo o papel de “alguém que explicasse calmamente qual a diferença que existe – se é que existe – entre ‘Concordo e autorizo, nos termos propostos’ e ‘Nos termos propostos, concordo e autorizo”.

Das duas uma:

Ou este despacho era redigido “Concordo e autorizo nos termos propostos” (sem a vírgula).

Ou, em minha opinião (e as opiniões valem o que valem), era redigido “Nos termos propostos, concordo e autorizo” (com vírgula).

Se se tratasse de uma simples frase – e não, como o acontecido, de um despacho oficial- seria uma chinesice minha contrariada por escritores consagrados que se dão ao luxo de escrever a seu bel-prazer fazendo com isso escola literária. Mas não!

Acontece que no âmbito de textos jurídicos as vírgulas são bem pontuadas para evitar interpretações dúbias como, por exemplo, no exemplo por mim citado, no início do meu “post”, com o caso do contrato de uma Câmara Municipal com uma entidade privada que penalizou gravemente os dinheiros públicos.

Em 10/03/2013, Berta Cabral, secretária de Estado- Adjunta da Defesa Nacional, exarou o seguinte despacho:” Concordo e autorizo nos termos propostos”. Decisões judiciais reforçam esta redacção: “Concordo e autorizo nos termos propostos”.

A propósito, ocorre-me a história da mãe orgulhosa que assiste a um aparatoso desfile militar em que o filho leva o passo trocado. Impante de orgulho, exclama alto e bom som: “Todos levam o passo trocado; só meu filho leva o passo certo!”

Aqui chegado, será que o despacho de João Grancho é que está redigido livre de mácula? Esta a questão!

Rui Baptista disse...

Errata (1.ª linha do 2.º § do meu comentário a Eduardo Martinho): onde escrevi "por casa dos comentários", corrijo para "por causa dos comentários".

Rui Baptista disse...

Resposta ao anónimo (26 de Maio de 2014 às 11: 46):

Embora contemplado pelo perfil psicológico, por si traçado, que diagnostica em mim a patologia do”síndrome de professor de escola primária” ( se não estiver inscrito na Ordem dos Médicos ou dos Psicólogos, espero não me apresentar honorários da consulta que faria recair sobre si o crime de exercício ilegal de profissão ), desafio-o a apresentar casos de citações minhas “inventivas ou ardilosamente truncadas”.

Eduardo Martinho disse...

Professor Rui Baptista: Muito obrigado pela gentileza da sua explicação.
Há 21 anos, era então primeiro-ministro Cavaco Silva, escrevi um texto intitulado “O enigma da virgulação” baseado num caso verídico. Revi-o agora e sorri-me novamente. Talvez os leitores deste blogue lhe achem alguma graça:
http://tempoderecordar-edmartinho.blogspot.pt/2011/02/o-enigma-da-virgulacao.html

Rui Baptista disse...

ERRATA: Se mesmo no melhor pano de cambraia cai a nódoa, o que esperar da serapilheira da minha prosa?

Assim, na 1.ª linha do último § do meu comentário (27 de Maio de 2014 às 01:56), escrito a uma hora em que o João Pestana nos semicerra os olhos e baralha a escrita, pela calada da noite, pousaram duas atrevidas gralhas : "soe" e "Malgé.

Com humilde pedido de desculpa ao(s) leito(res), sem o recurso à muleta de que errar é humano, corrijo-as: “sói” e “Malgré”.

Grãtias disse...

Só para relembrar: se não tivessem feito a 4ª classe com o pobrezinho do professor primário, nunca chegariam a doutores.

Vamos lá! Não custa nada!

OBRIGADO!

Rui Baptista disse...


Agradecendo o comentário enviado, para deleite meu e dos leitores, transcrevo o referenciado post (publicado, no primeiro dia de Abril de 2012, no blogue “tempo de recordar”) da autoria do Professor Eduardo Martinho:

"O enigma da virgulação

Era uma vez uma vírgula bem colocada num texto, algures num decreto-lei. Não tinha bem consciência do seu valor. Dizia-se, porém, que tinha sido debitada por um ministro, pela módica quantia de 120 mil contos, numa folha de papel timbrado, daquelas que são, ou deviam ser, “A Bem da Nação”. É verdade que se sentira lisonjeada por ter sido desenhada por uma Parker dourada, mas, à parte isso, era uma vírgula modesta, bem comportada, que desejava apenas que a deixassem sossegada.

Estava a pobre coitada no tranquilo desempenho da sua função, quando, de repente, citada na televisão por uma jornalista e retomada depois num jornal pela pena de um deputado, a vírgula saiu inesperadamente do anonimato, tendo sido catapultada da sua condição de insignificância para a posição de autêntica vedeta do PdB (sigla de País das Bananas, onde se passou esta história). [É claro que uma tal projecção fez com que muitos ficassem roídos de inveja, com a ciumeira própria dos ignorados. Cada um manifestou-se à sua maneira: os estupefactos alinharam com os pontos de exclamação, os incrédulos juntaram-se aos pontos de interrogação e os peremptórios fizeram coro com os pontos finais.]

Não fosse o diabo tecê-las, o Grande Chefe levou duas semanas a abalançar-se na denúncia pública do perigo que seria deixar pairar a dúvida sobre a credibilidade das vírgulas nos decretos-lei do seu país. Compreende-se a hesitação: aquela vírgula poderia ser um trunfo para, ou contra, os adversários. Ganha a necessária afoiteza, foi anunciado aos quatro ventos: “É preciso esclarecer o caso da vírgula!”.

Entretanto, os PdBeses, que, apesar de serem um povo sofrido, tinham um grande sentido de humor, foram-se a elas, às vírgulas, e foi um regalo. Houve de tudo na brincadeira. Glosaram-nas em todos os tons, escreveram artigos, alguns sem pontuação (como fazia a Guidinha, nas suas redacções de boa memória), inventaram anedotas, compuseram cantigas, eu sei lá. Se tivesse sido dada uma ordem ao Banco Central das Vírgulas para lançá-las no mercado para regularizar o sistema, a inundação não teria sido maior.

Quanto aos partidos políticos representados no Parlamento, uns eram de opinião que se devia ir à procura da vírgula, e mesmo de outras vírgulas malparadas, outros manifestavam a sua perplexidade perante tanto zelo neste caso e o deixa-andar-Maria-vai-com-as-outras noutros casos virgulentos, e os restantes entendiam que o Parlamento não devia lançar-se em correrias atrás da primeira vírgula que lhes pusessem à frente. Por fim, os parlamentares acordaram na ideia altamente original e inovadora de criar uma comissão para deslindar o mistério. Sabe-se que foram distribuídas lupas pelos membros da Comissão de Inquérito à Vírgula. Ignora-se o resto.

Tudo indica que esta história, como outras, terminará bem. Provavelmente a vírgula casa-se com um ponto, têm um filho, o ponto e vírgula, e são felizes para sempre."

Rui Baptista disse...

Nesta de 28 de Maio, ´é bom relembrar maus e bons velhos tempos para não caírem no esquecimento.

Ao professor do ensino primário, “sem qualquer espécie de ‘parti pris’, ou desprimor da minha parte, por esses esforçados cabouqueiros (expressão que se tornou já num lugar-comum!)”, frase entre aspas que escrevi num meu livro, publicado em Outubro/2005, e da qual posso fazer prova, para além da 4.ª classe era exigido o 5.º ano dos liceus. Aliás, nesse tempo, também, mesmo ao professor catedrático era exigido essa 4.ª classe, o 5.º e o 7.º anos do liceu.

Nos dias de hoje, o próprio acesso ao ensino universitário, chega a estar dependente, apenas, das Novas Oportunidades e de Provas de Acesso ao Ensino Superior colhidos numa “Árvore de Ignorância” que cresce desalmadamente e meteoricamente.

Sinais de tempos de chicos espertos que povoam a nossa classe política que, em prova de ingratidão, para o facilitismo de uma vida de elevados cargos, não descansam até terem a anteceder o seu nome o almejado dr. ou engenheiro obtido, por vezes, em universidades privadas "de vão de escada". Faço-lhe a justiça de o não desmemoriar, citando esses nomes que tanta tinta fizeram correr na imprensa escrita séria ou de escândalos.

Aliás, o testemunho de gratidão para como esses antigos professores primários está sempre presente quando muitos dos espíritos cultos da nossa sociedade se lembram do nome do seu velho mestre- escola dando-lhe papel de destaque no seu cresmento intelectual e cívico.

Rui Baptista disse...

Errata: Na 1.ª linha do 1.º§, do meu comentário anterior, substituir "Nesta de 28 de Maio" por "Neste 28 de Maio".

Pena direta disse...

Não, não é essa a história que ouvi contar da dita vírgula

Estava a vírgula dependurada numa entrançada corda de palavras (porque havia caído de umas aspas plagiadoras tendo estas ficado desasadas) quando por ela passou um ponto de exclamação virado ao contrário, só porque tinha a mania que era cabeçudo, fazendo lembrar “o garbo teso e aprumado da perpendicular miss inglesa” de Eça mas, neste caso, mister inglês. O snob idiota. Pôs-se muito admirado a admirá-la no seu pungente e monocórdico balançar enquanto assobiava umas nervosas semicolcheias ao ritmo, que, tal como ele, não tinham ponta de vírgula por onde se lhe pegasse.
Admirava os sinais com curvas. Tinha andado há pouco tempo com um ponto de interrogação fêmea mas desistiu. Não era sinal que lhe desse estabilidade, sempre enganchada no devir, na incerteza, barriguda e coxa, sem qualquer atitude concreta, sem nenhuma ideia firme, sem projetos de pertencer a frases declarativas condignas, demasiado cusca para o gosto dele.
Ficou ali olhá-la. Exclamando-a. Esticou-se mais ainda para conseguir ler a frase que a justificava.
“E do céu, caiu uma estrela.”
Está explicado! Ficam sempre assim, bambas, a fazer de pausas, asmáticas e com paragens cardiorrespiratórias de cada vez que caem do céu. Não é fácil permanecer no céu o tempo todo. Aquilo tem um ambiente suspenso e gasoso. Ora faz nuvens, ora chove, ora faz sol, ora fica tudo azul. Passam mosquitos, pássaros, meteoros, aviões e anjos, às vezes, tudo ao mesmo tempo. É no que dá os espaços serem demasiado amplos e sem policiamento.
Olhou melhor para ela, aumentando a retina do seu único olho. Zoom. Que espanto! Uma bela curva, bem contornada, como metade de um curacao, fazendo lembrar um apóstrofo rebaixado pela falta de uso ou pela muita idade. Ela, sentindo-se observada, parou de balançar e sorriu. Parecia uma harpa. Pôs-se bem de perfil e encolheu o ventre. Da frase, o c de “caiu”, roçava-lhe ligeiramente a pequena cabeça, como uma meia lua em quarto minguante, e o vento vibrava-lhe nos finos dentes um som de cordas lentas.
- Vir gula! disse ele gulosamente.
Ela riu virgularmente e deu uma volta completa na frase, sobre si própria, pelo ponto do beicinho.

Não vou continuar mas posso avançar que, ao contrário da história anterior, esta acaba mal.

A voz do silêncio disse...

Então Professor, não há reações?

master chief disse...

asnear e lavrar são duas cortes do mesmo lavradio, e as vírgulas se foram inventadas não deveriam ser desprezadas a despeito de um asno parecer um burro e uma lavra parecer, uma colmeia de minhocas, mas respeito o adenso partiadarismo do autor em reconhecer Camilo e Eça como dois dos seus labores de instrução, e como dizia alguém educação é uma coisa e instrução outra; será?

master chief disse...

a bírgula é um enigma
assim como o ponto é uma estima
a birgula não desanima
assim como o ponto não esgrima"
a bìrgula e o seu mistério, carago
eu gostava inté de saber onde foram buscar essa lástima;
as bezes até escreber sem birgulas carago nem fica mal;
o poubo é que inbenta carago,eu sei dizer a tabuada
sem birgulas, carago; olha o zé do pipo manda outra que esta já foi"
no va abirgula ficar me entalada nas goelas e ainda não passo desta afonsin; ou o mesmo que dizer, não bou as festas de s.joaoue carago; as bírgulas"e os acentos e os agudos carago,já não basta a maria chatiar me todos os dias com os substantibos, carago e os adjetibos carago".

Tudo indica que esta história, como outras, terminará bem. Provavelmente a vírgula casa-se com um ponto, têm um filho, o ponto e vírgula, e são felizes para sempre." Gostei muito do fim; muito original; parabéns

Rui Baptista disse...


“O português gosta de ver um bravo, ou mesmo um louco, ao parapeito” (Vitorino Nemésio). De igual modo, mentiria, se dissesse ser eu excepção a esse gosto nacional que encontra respaldo na polémica.

Mesmo que essa polémica não personalize quem dela se torna personagem por motivos vários. De entre eles, aquela personalidade que não se digna descer a terreiro por pairar em situação social, política ou de fortuna tão alta e inacessível que lhe não lhe aconselha trocar ferros com o simples homem do povo. Mas sempre há o recurso ao anonimato ou à ”longa manus” (expressão aqui aplicada um tanto forçadamente) de quem por desígnio ordenado, interesse de terceiros ou simples amizade dela se faça executor.

Daqui a sua justa pergunta:“não há reacções?” Pergunto agora eu: reacções minhas ou de outros comentadores? Da minha parte, tenho o hábito de não deixar nenhum comentário sem resposta, recorrendo “à voz do silêncio”. Em fidelidade ao princípio de “quem não deve não teme”, comentários discordantes que me são endereçados mesmo não cumprindo normas de civismo, uma falta de civismo que, por vezes, mesmo sem entrar no domínio do insulto, extravasa a discussão do tema em causa entrando por caminhos ínvios. Se verificar, mesmos esses são publicados em respeito pelo sagrado direito de liberdade de expressão.

Eu, pela minha parte, embora com um ou outro desvio, que o calor da refrega promove embora desaconselhe de cabeça fria, tento ter sempre presente a norma de Fialho de Almeida: “A luta é legítima. Eu não respeito as suas ideias- respeito-o a si”.

Cordialmente,

Rui Baptista disse...

Errata (meu comentário anterior): Onde escrevi (3.ª linha do 2.º §): "que lhe não lhe aconselhe", corrijo para "que lhe não aconselhe".

FC disse...

Vivo em Portugal. Não tenho pátria. Sofro de um exílio tentacular e eterno desde que a Terra se contraiu. Nesse instante nasci e perdi o nome. Por isso, não o digo a ninguém. Porque este que tenho não é o meu...
De qualquer forma, maravilho-me com as criaturas que se sentam à porta do Éden, à espera... Algumas até montam Centros de Estudos Voyeuristas e Vampirascos e engolem à pressa só para perceberem melhor quem passa e alguns chegam a receber medalhas publicando livros com as suas condecoradas respostas sobre as existenciais descobertas da condição humana, gramaticalmente exemplares, diga-se na passagem. Muitas hipóteses e labirintos e nós de novelo nas garras dos gatos que se entretêm a brincar com o tédio. “Não sei nada...”, dizia o brilhante Pessoa.
Peço desculpa se me estou nas tintas para as águas turvas da política ou se não sou politicamente correta ou se as escolas, por culpa das águas e das gentes que por lá sobrevivem, ainda não descobriram o Santo Graal da qualidade e se arrastam pelas ruas cada vez mais sem casas para morar. 4º no , 5º ano, 7º ano, bacharelatos, licenciaturas, mestrados, doutoramentos e sei lá que mais degraus sem acesso direto à qualidade humana. “Íssimo, íssimo, íssimo cansaço...” e um desmembramento do Pinóquio que nunca chegará a ser menino de verdade. Invoco Bessa-Luís quando num texto afirma “Tenho a impressão que o meu jardim comporta um fantasma, como outros comportam palmeiras: como alguma coisa estranha ao clima e à paisagem”.
Os vitrais estão sujos e as esfinges deixam passar tudo e todos numa lógica de multiplicidade generalizada. Uma proliferação de janelas de liberdade/oportunidade, fratais e caóticas, parecidas com os aglomerados dos campos de concentração nazis com todos os nazis dentro. Ligeti no seu divino Requiem. Ninguém controla nada e o mal faz-se por fazer, já nem sequer o bem serve e as cadeias humanas não passam disso mesmo seja lá para o que for.

Mas respeito a cor branca das sobrancelhas de quem as tem porque o tempo é das únicas urnas que me faz enroscar o desprezo que sinto por quase, quase tudo.

Rui Baptista disse...

Façamos o ponto da situação que presidiu à elaboração do meu post.

Se a colocação da vírgula que deu aso a todos estes comentários fosse colocada por um “zé-ninguém” ou um “manel dos anzóis”, decerto, não mereceria da minha parte um post; apenas uma chamada de atenção. Mas repare-se que a vírgula, aposta numa simples frase de (6) seis palavras, deslizou do aparo de Sua Excelência, o Secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário, João Grancho, com a agravante de ser este governante diplomado por uma Escola do Magistério Primário do Porto, ensino com tradição de se preocupar com a redacção dos seus educandos, base de uma escrita da vida adulta que não deslustre quem quer que seja, como eu próprio tive a ocasião de confirmar, enquanto docente (13 anos) da Escola do Magistério Primário de Coimbra.

Releve-se o facto de eu próprio considerar tratar-se, eventualmente, de um “lapsus calami” de João Grancho: um vírgula mal colocada numa frase de seis palavrinhas, embora, uma simples vírgula, num documento oficial, possa custar fortunas ao erário público sustentado pelos impostos de todos nós (cf., 1§ do meu comentário de 27 Maio às 01:58).

Almeida Santos, conhecido pela elegância e cuidado postos na sua prosa, a quem é atribuído importante obra legislativa, não se inibe, ele próprio, de fazer a seguinte crítica (por mim citada de memória): “A maior parte das leis publicadas depois de 25 de Abril seriam chumbadas no antigo exame da 4.ª classe”.

O meu “adenso partidarismo”, por si reconhecido, em ter Camilo e Eça como dois dos meus labores de instrução ( instrução que transcende os muros da minha aprendizagem escolar por não se cingir a essas fronteiras). Ela está bem vincada nas citações de Eça e, bem estruturada, num meu post crítico ao facto de Camilo, o festejado autor de o “Amor de Perdição”, verdadeiro “ex-libris” da sua vastíssima obra de romancista, que os então responsáveis da 5 de Outubro (início desta década) lhe dispensaram por omissão dela nos compêndios escolares.

Quanto ao autor da frase de que educação é uma coisa e instrução é outra, assumo a respectiva paternidade que me foi omitida. Difícil e complexo é fazer a destrinça entre ambas para não incorrer no facilitismo de dizer que a escola actual preocupa-se com a instrução e despreocupa-se com a educação que lhe compete de mãos dadas com a família que se demitiu desse importante papel. Ou o adulterou - deseducando!.

Mas este é um longo debate que se tem travado à volta dos respectivos significados, e âmbitos de acção, que não se podem espartilhar num simples comentário Debate que tem sido motivo de tratados que atravessam séculos de acesa, e nunca acabada, polémica, por naufragarem em escolhos de dificuldades.
Deixo, portanto, em aberto esta questão em que me limitei a dar uma mera e descuidada opinião pessoal. Com a sua observação, para utilizar uma linguagem da esgrima, com o fair-play dos ingleses, à sua pergunta “será?”, só lhe possa responder com uma palavra francesa: “touché!”

Rui Baptista disse...

Caro FC: Deixei passar o tempo para não comungar do "nosso" (se me permite) desalento, ou mesmo ampliá-lo, por um país (ia escrever Pátria, mas achei melhor não!) que séculos passados continua à espera de um D. Sebastião que a salve num dia de nevoeiro da sua , como escreveu Sophia de Mello Breyner, INCOMPETÊNCIA CULTURAL (assim mesmo com letras maiúsculas).

E por esta poetisa justificada,corria o ano de 76, da forma seguinte: “Houve até quem no grupo parlamentar, numa reunião de discussão, respondesse `minha crítica à má redacção de um articulado, dizendo-me que “o povo não precisa de gramática”.

Talvez por isso a pontuação de alguns (repare-se que não escrevi todos!) dignitários da nossa vida política, em atitude “democrática” de se misturarem com o “povo que lava no rio”, entendam não ser preciso respeitar regras de pontuação!

Nada disso! O povo precisa de gramática e a classe média desse povo necessita que não lhe cortem nos vencimentos, nas reformas, não lhe aumentem os impostos para poderem comprar livros, jornais, etc., para que lhe seja possível o acesso à Cultura.

Como disse um escritor (que cito de memória), “uma boa biblioteca exige ao lado uma boa cozinha”. Experimentem essas personalidades da vida política nacional que, porventura, tenham em suas mansões uma boa cozinha e ao lado uma péssima biblioteca diminuir a sua cozinha e aumentar a sua biblioteca para não dizerem ou escreverem disparates!

E, desta salutar forna, aumentarem a sua massa encefálica e diminuírem a barriga! Ficavam a ganhar a Cultura e a Saúde Pública. “Alea jacta est”!

Rui Baptista disse...

Errata: Penúltima linha do último § do meu comentário anterior, onde escrevi "forna", corrijo para forma.

FC disse...

COMO o compreendo!
Mas, Professor, o povo não precisa de gramática. O povo, quando sabe gramática, deixa de querer ser povo porque a gramática é ortopédica, corrige as almas. E uma alma corrigida não quer circular por entre massas disformes de frases desarticuladas, palavras amolgadas contra a boçalidade, estrábicas pontuações e ruidosos vazios vocais. E isto cria um problema: o problema da insustentável leveza do ser. O que fazer quando se está impregnado de gramática, prenhe de beleza discursiva e não se tem onde parir porque se continua a viver no despovoado povo? Cria-se então a noção interior de “estrangeiro”, aquele que não pertence ao conjunto e sofre matematicamente, o que ouviu a voz de Deus num poço tapado e vive na mansarda (não me apetecem aspas, agora). Por isso, que interessa ao povo saber gramática? Não é salvífica e agudiza a precária condição humana. Mais vale Caeiramente saber que uma pedra é uma pedra e concluir-se na erosão do imóvel com o sorriso podre de felicidade.
A cultura. Ah, ah, ah! Uma matriz ideológica criada por um bando de ladrões para comercializar ideias, cifrada para os irmãozinhos reprodutores poderem povoar o planeta à sua imagem e semelhança e encherem os bolsos do vil metal. Claro que sou uma incompetente cultural, Sophia, e atiro paus e flechas aos lobos que passam, faço festas à menina selvagem do espelho meu e mostro a língua aos intelectuais por um chão descalço de importância. Zizek, o meu odioso deus da verdade, fala da “Coisa Real como espectro fantasmático que nos garante a consistência do nosso edifício simbólico”. E é só isso. O povo, composto orgânico de quem pensa, a comida e o excremento, a matéria de que são feitas as estrelas… sendo que, não há estrelas… Ou há, Professor?

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