"Eu até podia dizer, que o maior crítico da
reforma designada (erradamente) pela reforma
Veiga Simão,seria o próprio Veiga Simão".
José Veiga Simão, 2010.
No dia 30 de Abril de 2010 tive a honra de receber, numa aula de Mestrado de Educação e Sociedade do Conhecimento, o Professor Veiga Simão. Nessa tarde de sol, no anfiteatro da minha Faculdade, a lição do antigo Ministro da Educação foi sobre as ideias em que baseou a sua Reforma Educativa. Ideias simples, ditas de modo ainda mais simples, colhidas na sua família e nas leituras de Aquilino, no café Arcádia e em Cambridge, nos bancos da Universidade de Coimbra e nas viagens para Inglaterra... Afinal, em educação, as ideias simples são as mais profundas e também as mais precisas.
Até ao momento, essa lição esteve reservada como documento académico, mas a importância que entendo ter leva-me a partilhá-la com os leitores do De Rerum Natura. Trata-se da homenagem que posso prestar a um nome maior da Educação, que hoje nos deixou.
Que pressupostos teve o Senhor Doutor Veiga Simão em conta para desenvolver a reforma educativa que ficou conhecida com o seu próprio nome, reforma que não se diluiu, continuando presente nas reflexões que se fazem sobre o sistema de ensino?
"Agradeço a gentileza de me terem convidado para vir aqui, à minha Universidade. A Universidade de Coimbra contribuiu largamente para os meus ideais em termos de política educativa. E não posso deixar de referenciar, alguns episódios desse tempo (…)
Eu tive a pouca sorte de ser Professor Catedrático muito cedo. Algum mérito teria, mas para se ocupar o lugar é necessário aparecer uma vaga, e foi o que aconteceu. Isso fez com que aos trinta e um anos fosse Professor Catedrático, o que era raríssimo, e devo dizer-lhes: estraguei a minha vida académica, porque fui para Moçambique, prestando um serviço à Universidade de Coimbra.
A missão, que me proporcionou uma das melhores experiências de vida, era fundar uma Universidade em África. Eu queria dar alguma projecção a essa universidade, apostando, acima de tudo, na qualidade de ensino e não na quantidade. Isto, numa sociedade que impunha um conservadorismo muito estreito, não era tarefa fácil.
Só para compreenderem, aqueles que estudam Ciências da Educação, e apenas em breves referências, vejam como se afigurava difícil institucionalizar em Moçambique uma licenciatura em Agronomia exactamente com o mesmo plano curricular, as mesmas disciplinas que se ministravam no Continente. Um absurdo dos maiores! Havia a disciplina de Vitivinicultura, só que não havia vinhas em Moçambique, pugnei para que essa disciplina fosse mudada para uma mais adequada a culturas tropicais, mas devo dizer que os primeiros Engenheiros Agrónomos, que concluíram o curso e tiveram a assinatura do Reitor, sabiam Viticultura em termos.
Essa rigidez nos planos curriculares foi algo que me marcou e influenciou o meu pensamento, tal como a convivência na Aldeia de Prados, onde passava as minhas férias, junto a Celorico da Beira. Nessa aldeia, eu verificava aquilo que Aquilino Ribeiro nos dizia, e que determinava o grande atraso nacional: “a inteligência congelada nos ribeiros do interior”.
A essa inteligência que está congelada nos ribeiros do interior, associava-se, naturalmente e cada vez mais, perante a evolução demográfica portuguesa, a inteligência que está congelada nos subúrbios das grandes cidades. Ainda temos muita inteligência perdida.
Eu aprendi muito na minha juventude, no meu liceu, na Guarda, o Liceu Afonso de Albuquerque, mas tive uma lição da vida que foi também muito importante. Naqueles tempos, uma família para poder educar os filhos, designadamente quando o pai era funcionário público, deslocava-se toda, se possível.
Na minha família foi o que aconteceu, o meu irmão, mais velho do que eu oito anos, veio para a Universidade de Coimbra e eu vim para o Liceu. Coimbra era, para mim, uma cidade mítica, a cidade mítica dos saberes. Era uma cidade, onde perante grandes doenças, as pessoas encontravam o hospital, vinham num comboio lento com a esperança de recuperar a saúde. Era uma cidade conhecida pelos seus juízes e pelos seus advogados. Coimbra era visita lá da Beira Interior, como a cidade real dos Doutores, que nos ensinavam.
Recordo-me da minha chegada a Coimbra, que foi um episódio muito interessante. Vinha com o meu pai numa camioneta, onde se trazia a mobília, e quando passava nos Arcos do Jardim, ouvi na rádio que a Inglaterra e a França tinham declarado guerra à Alemanha Nazi. Aprendi muito no meu liceu de Coimbra, um grande liceu, o liceu normal onde havia professores muito bons, de grande saber. E aprendi muito na Universidade e fora da, mas em relação com ela. Tive grande fervor pela Associação Académica de Coimbra que acompanhei em várias viagens, orgulho-me de ter frequentado os campos de Santa Cruz, de ir ver a Académica, ganhar e, às vezes, perder, ao campo da Arregaça, aos campo do Calhabé e do Loreto. É com muito orgulho que sou o sócio número 1 da Associação Académica e devo dizer que sofri imenso ainda no último domingo, tendo tido a grande alegria de estarmos longe da descida da divisão.
E aprendi com a camaradagem, nos passeios junto ao parque da cidade. Coimbra oferecia o diálogo entre os estudantes com formações diversas, o que eu aprendi, com os meus companheiros de Direito, com os meus companheiros de Medicina, com os meus companheiros de Farmácia, com os meus companheiros das Letras. No café Arcádia, quando regressei de Cambridge, o que me ensinaram as conversas com Miguel Torga, com Afonso Queirós, com Guilherme de Oliveira, com Anselmo de Castro, com Dias Pereira…
Também aprendi muito na Universidade de Cambridge onde fiz o Doutoramento. Por exemplo, a vivência numa sociedade democrática que resultou em duas componentes essenciais: a primeira foi perceber que os conhecimentos teóricos que levava da minha Universidade de Coimbra, designadamente na Matemática e na Física Teórica, eram muito superiores, relativamente aos dos meus colegas ingleses, já os conhecimentos de natureza experimental, prática, eram efectivamente muito menores.
Para equilibrar o que eu sabia foram-me dados trabalhos obrigatórios, durante seis meses, nas oficinas. E quanto isso me enriqueceu! As oficinas devem estar sempre ligadas às escolas, sejam elas tecnológicas ou culturais. Portugal era, naquela altura, como dizia o Eça de Queirós, um pouco de “grange”, alguma coisa de “banque”, mas não era oficina. Infelizmente este paradigma de afastamento da teoria e da prática ainda hoje se mantém.
Eu trazia para este encontro convosco mais uma discussão dos tempos modernos, do que uma recordação destes tempos de que estou a falar, mas fui chamado a isso quando me pediram para dizer quais eram os pressupostos da reforma educativa que procurei levar a bom termo. Recordar esses tempos ajuda-me a explicar-vos. Uma nação, que não valoriza a sua inteligência está condenada.
Dizia eu que fui conduzido pela ideia de Aquilino Ribeiro, que tinha muito presente, de valorizar a nossa inteligência. Sendo eu um homem da primeira República, foi uma alegria imensa para mim dar nome “Aquilino Ribeiro” a uma Escola Preparatória que fundei em Vila Nova de Paiva, nas terras do Demo, a Escola Aquilino Ribeiro. Como dizia o filósofo e matemático Whitehead, em 1918: que uma nação, que não valoriza a sua inteligência está condenada, pode ter vitórias sobre vitórias, pode efectivamente apresentar sucessos sobre sucessos, mas um povo sem instrução, condenará inevitavelmente a nação à derrota.
Em suma fui contra as divergências, as contradições e as críticas de um conservadorismo que tinha o estreitamento da inteligência política, da inteligência sectária, que hoje é, em alguns aspectos, da inteligência partidária. Mas caros amigos, tive, portanto, um ideal que resultou de uma vivência e de algum estudo e que me permitiu pensar na reforma da educação.
A reforma foi, naquela altura, lançada sob um signo, e o signo que eu proclamava a todo o instante, era a de que um homem mais culto é um homem mais livre. Esse princípio foi o princípio que determinou uma estratégia para a educação, embora me sinta orgulhoso dela – ainda hoje é bastante falada –, a verdade é que ela foge das condições em que poderia ter algum sucesso. Tinha havido na Primeira República uma outra tentativa de reforma que infelizmente não teve resultado.
Iniciei a reforma no momento em que iniciei as minhas funções de Ministro da Educação e quando a primeira Lei de Bases do Sistema Educativo foi publicada no nosso País utilizei todos os meios instrumentais e legislativos, que me permitiriam consolidar a reforma. Para isso também contribuiu, devo dizer, a minha experiência de Moçambique, na constituição de uma universidade que privilegiou a formação de professores, as suas áreas de conhecimento, apostou na juventude, mais do que em edifícios pomposos, os edifícios do Estado Novo.
Efectivamente foi nisso que me concentrei, ao ponto dessa universidade de Moçambique ter doutorado, no período de sete anos, em Engenharia, Agronomia, Veterinária, Medicina e também formação de professores, mais pessoas do que as quatro universidades do Continente em quarenta anos. Essa aposta foi uma aposta decisiva. Qualquer mudança tem de partir de uma aposta na qualificação da juventude. Eu iniciei esse processo, que deu resultados, poderemos depois detalhar se são positivos e negativos.
O 25 de Abril, deu-nos o bem imenso da democracia, mas a seguir cometeram-se erros que eram, porventura, utopias. Não é agora ocasião para fazer essa análise mas falei nela para dizer que havia uma questão essencial a resolver: consagrar em letra de lei o direito à educação, à igualdade das oportunidades, ao acesso por mérito. Nada disso estava, nessa altura, consagrado em nenhuma legislação portuguesa, nem tão pouco na Constituição.
Havia, pois, que orientarmo-nos para uma lei de bases, mas eu tinha a noção plena de que se concentrasse os meus esforços unicamente na publicação de uma lei (que, vejam só, vem a ser aprovada em 1973!), nada faria. Iniciei as minhas funções em Janeiro de 1970, pelo que significaria que em três anos, dos quatro e meio em que fui Ministro, tinha estado parado. Não foi isso que aconteceu e, para avançar, utilizei o instrumento que me tinha deixado, porventura, não para aqueles fins, o Professor Inocêncio Galvão Teles, o chamado Decreto-lei das Experiências Pedagógicas, de que fui acusado de ter abusado. O parecer da Câmara Cooperativa sobre essa lei de bases, sublinha tudo aquilo que antes foi feito e até diz: “Vens aqui propor uma lei, quando a maior parte das coisas que aqui constam já estão feitas”.
Essa foi a minha estratégia e sem ela teria feito muito pouco, teria apenas lutado por uma lei, mas não tinha consagrado o conjunto de realizações que se efectuaram, por exemplo, no domínio da educação pré-escolar e primeira escolaridade. A Primeira República, não teve grande sucesso na educação pré-escolar mas reconheceu-a ma depois foi abolida pelo Estado Novo.
A escolaridade obrigatória da Primeira República era de cinco anos, o Estado Novo, em 1930, diminuiu-a para três anos, um retrocesso imenso. É curioso que só em 1957, temos a 4.ª classe como escolaridade obrigatória e, pasme-se, apenas para jovens do sexo masculino, tinham de passar mais três, para que, em 1960 as raparigas tivessem o mesmo direito. O Professor Galvão Teles aumenta a escolaridade obrigatória para os seis anos, mas mantém o ensino primário complementar, que é gratuito, em paralelo com o ensino preparatório, que não é gratuito. A escolaridade de seis anos torna-se obrigatória e gratuita com um decreto que eu publico em 1971 ou 1972. A Lei de Bases alargou a escolaridade obrigatória para os oito anos, que foi, ainda, regulamentada por um decreto-lei onde se determina que, independentemente da via onde se ande, esses oito anos são gratuitos. Infelizmente um Governo Provisório e um Conselho da Revolução, diminuíram a escolaridade obrigatória novamente para seis anos, e só em 1986 volta aos nove anos.
Agora temos agora a escolaridade obrigatória de doze anos. Escrevi recentemente um artigo sobre a evolução da escolaridade obrigatória, onde me congratulo por ter chegado aos doze anos mas Portugal, para vencer os atrasos que ainda tem de igualdade de oportunidades e de pobreza que atinge vinte por cento da população, devia dar prioridade à educação pré-escolar, dos três aos cinco anos, naturalmente com apoio do transporte e de alimentação.
O direito de acesso à educação evoluiu, mas, para prejuízo dos jovens, um facilitismo degradante cresceu durante algum tempo e ainda agora persiste. O equilíbrio do binómio quantidade/qualidade, é neste momento, o grande desafio nacional.
Que ideias tive? Tive apenas o ideal de corresponder àquilo que senti: que senti na juventude, que senti na minha vida académica, que senti em Moçambique, que senti em Cambridge. E a reforma que protagonizei teve dois pilares essenciais: o primeiro era a equipa que me rodeou, que era de eleição, deu origem, para além de muitos outros cargos, a quatro ministros e a nove sub-secretários de estado; o segundo era o estudo, não podemos tomar medidas sem saber, aquilo que aprendi aqui em Coimbra e em Cambridge é que é necessário fazer estudos, fundamentar e ter grandes debates.
Orgulho-me de naquele período antes da Democracia, porventura determinado por circunstâncias favoráveis, ter organizado um Debate Nacional sobre as linhas gerais da reforma do sistema de ensino, da escola e sobre as linhas gerais do ensino superior. Este debate que demorou cerca de sete meses, de Janeiro a Agosto de 1971, e que constituiu, não no meu dizer, mas no dizer ainda recentemente de várias personalidades, cujos nomes não vou aqui citar, como o maior debate, jamais realizado sobre educação em Portugal, e isto num período da Ditadura. É mérito meu, se tenho algum, apenas ter seguido a lição que os meus pais e a vida me ensinaram.
E orgulho-me da Lei nº 5/73, que propus, mas orgulhava-me ainda mais dela se tivesse sido publicada como a propus, se não tivesse remenditos… porque os Deputados da Assembleia Nacional, fizeram-lhe uns remenditos de que eu não gostei muito."
Maria Helena Damião
Nota: A condução da aula e transcrição foi realizada pelos professores-estudantes Carlos Afonso, Carlos Carvalheira
Este texto tem continuação aqui.
2 comentários:
Aprendi muito com o 25 de abril. Aprendi a liberdade de ficar sem casa e sem pátria e a compreender a importância dos implantes na suposta dignidade que deve ser a vida.
Toda a gente sabe que Veiga SImão foi um grande lutador pela liberdade. Mas a afirmação "os conhecimentos teóricos que levava da minha Universidade de Coimbra, designadamente na Matemática e na Física Teórica, eram muito superiores, relativamente aos dos meus colegas ingleses," é absolutamente falsa. O resto não li, é provável que haja muita falsidade misturada com verdades. Recomendo cuidado na leitura, muito cuidado.
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