domingo, 25 de maio de 2014

UM COMBOIO PARA BRAGA


Conto da escritora Cristina Carvalho, enviado especialmente para o De Rerum Natura (fotografia de Henri Cartier Bresson):

Foi assim que a rapariga sentada no lugar número quarenta e dois da carruagem número três do comboio número cento e trinta parado na linha dois enfrentou o ruído extraordinário, bastante inquietante que o seu computador começou a emitir. O ecrã avermelhou-se, o homem alto à volta dos cinquenta entrou, olhou para o lugar da rapariga do computador e dirigiu a palavra à sua acompanhante «não se sente aí, antes aqui, o comboio está vazio…» 

e ele "e se vier o dono  dos lugares?"

 e ele «mas não, hoje não haverá movimento nenhum, vai vazio, vai ver…»
Agora um estrondo que se desenrolou num ronronar agressivo, a rapariga que não era portuguesa com ar alourado, cabelo curto, óculos claros, fixava perturbadamente e muito ansiosa o ecrã do seu computador que, de repente, aclarou e o ruído parou e o comboio entrou na estação do Oriente onde entraram muitas, muitas pessoas todas com pastas e computadores dentro de suas maletas e o homem que rondava os cinquenta, aquele cheio de certezas teve de sair donde estava já anichado, anichado e completamente, inequivocamente cheio de certezas, ele e a sua companheira de viagem, a tal que não queria sentar-se no lugar que não lhe pertencia, mas que era um belo lugar de janela com uma mesa ao meio e a janela era para os dois, para dividirem a paisagem, para ela e para o homem sábio que andaria pelos cinquenta.
A tarde rolava à velocidade do comboio, o homem e a mulher que o acompanha sentam-se agora na fila à minha frente de modo que eu posso vê-lo e ouvir muito bem tudo o que vão dizendo por entre o intervalo das cadeiras. A mulher está de costas para mim, assim como a rapariga estrangeira alourada de óculos claros cujo computador agressivo e barulhento deixou de se ouvir tendo a paz informática regressado ao semblante plano que é o pequeno ecrã. Todos sorrimos, eu, a rapariga, a mulher que acompanha o sábio e todas as outras pessoas que enchem esta carruagem agora que o comboio parou na estação do Oriente. Ainda que alguém dormitasse, ainda que outros falassem ao telefone, que outros lessem, outros ainda tentavam conversar com o viajante do lado. 

Mas o homem sábio não parava de falar. Via-se que sabia muito. Talvez soubesse tudo ou quase tudo da vida, quem entra e quem sai deste comboio, o que é que faz, onde vive, donde vem, para onde vai, o homem dos cinquenta que falava todo o tempo, ininterruptamente, que tinha tirado o casaco, que tinha uns papéis à sua frente e tiritava dois dedos numa esferográfica dessas boas, douradas, de marca, escorregadias e pesadas, que tossiu, que se assoou, que limpou os óculos de evidente transparência com um delicado paninho retirado de um dos seus bolsos, que nunca olhou para o mundo a passar lá fora depois das janelas do comboio, que nunca se levantou nem disse nada ao homem que passou no corredor arrastando o carrinho das bebidas «desejam tomar alguma coisa?» 

e ele «nada, nada e nada!»

 Na carruagem, ele e apenas ele a caminho de Braga onde, percebi, ia fazer uma palestra sobre a correnteza das águas e sua influência nos moldes da arquitectura actual, em princípio, nos edifícios urbanos – coisa que seria muito interessante, tão interessante que o sábio falava e falava e falava sem se cansar. A rapariga alourada fixava o seu computador e orava-lhe surdas preces com certa angústia na expressão; a mulher à sua frente regalava-se com um chocolate qualquer; eu, na fila de trás, e a meu lado um homem ainda novo, de crânio rapado e uma tatuagem no pulso direito a representar a estrela de David balbuciava coisinhas incompreensíveis para um telemóvel cimentado na orelha esquerda. Depois, havia o corredor e ainda outra fila de cadeiras agora todas ocupadas, um homem que afagava com as polpas dos dedos uma superfície qualquer  jogando um interminável solitário; um rapaz belo, belo, de cabelo cor de cobre alisado para trás ao correr da nuca ia olhando, constantemente, para a arrumação ali por cima onde tinha colocado uma espécie de mochila, parecia que tinha medo que o objecto caísse ou desaparecesse, não sei; noutra fila, a seu lado uma mulher nova, encostada, quase deitada para cima da janela, tapava-se com um casaco castanho e o seu cabelo era da cor do casaco e alargava-se na gola do casaco, a mulher estava mesmo a dormir e o seu telemóvel gritava-lhe lá por dentro da mala, o belo rapaz passou-lhe a mão pelo cabelo, ela acordou «o seu telemóvel está a tocar há tempos…» e ela «vinha a dormir…» mas sentiu a mão quente do rapaz na sua cabeça, isso sentiu e tanto que sentiu, que acordou. Não ouviu o telemóvel mas ouviu a mão que lhe falou quase em segredo. O comboio ia cumprindo o seu percurso de distâncias, agora perto de Coimbra, cavalgando quilómetros oleados sobre os carris num reptilíneo deslizar, quase que não se sente, quase que não se ouve.

Em Coimbra,

Entraram na carruagem número três, esta, dois homens, um mais alto, outro mais baixo que sem olhar para ninguém, rapidamente se aproximaram do lugar do rapaz belo, belo, de cabelo acobreado que tinha acordado a mulher a seu lado adormecida passando-lhe uma das mãos pelos cabelos castanhos da cor do casaco, essa mulher que a seu lado ia sentada, saboreando a paz antiquíssima de todos os claustros, que falava num certo tom, com certa voz densa e continuava a falar, sempre a falar. Foi então que o rapaz olhou para a bagageira por cima do seu lugar e confirmou a presença da mochila e confirmou também a presença dos dois homens, um mais alto, outro mais baixo ali mesmo, muito perto, avançando pelo corredor da carruagem.
Descubro alguém nas últimas cadeiras. Estão enrolados como dois bichos-de-conta, discretos, dificilmente se daria por eles. São dois rapazes muito novos, poderão ter, por exemplo, dezoito, dezassete, dezanove anos cada um. Dão as mãos, dão os braços, os abraços. Dão os corpos, dão os rostos, dão as almas, a vossa pele arrepia-me, vou-me chegando mais perto, agrada-me o ar liberto, aperta-me o vosso olhar, o comboio avança e rola no caminho para Braga, não há túnel que amedronte, nada me fará parar, o homem sábio sabia, a mulher loura dormia, o ecrã balbuciava, o rapaz aqui ao lado tentava, tentava e não conseguia.

Agora a noite. Uma grande, insensível lua baixa, roça o dorso da água do rio, água em silêncio, nem viva nem morta, apenas a água que acolhe, que recebe e faz deslizar todas as sombras possíveis, a da ponte, a do barco, a da luz ao longe, a sombra do longe, a sombra de perto, desenho inconfundível de metálica palidez, de gélida placidez, de mansa pacatez, o rio e mais o rio, o rio, o rio, o comboio a caminho de Braga, todos sossegados, a lua a desenhar feitios breves com um traço de água, venha, venha, junte-se a nós, a mim, aos rapazes bichos-de-conta, ao sábio, à mulher, à loura mais o seu ecrã avermelhado, também o belo, belo de cabelo acobreado e ainda David, o da estrela, o da tinta gravada no pulso e seu triângulo dourado na testa.

Não sei se tem o triângulo dourado gravado na testa, mas se não tem, devia ter. O comboio seguiria sempre o seu caminho para Braga. Com triângulo ou sem triângulo.

Cristina Carvaho

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