quinta-feira, 8 de maio de 2014

Ver as coisas por dentro




Minha crónica na última Gazeta de Física (na imagem Max von Laue):

No presente ano passa o centenário do Prémio Nobel da Física atribuído ao alemão Max von Laue, pela “sua descoberta da difracção dos raios X pelos cristais”. Esse foi um dos pretextos invocados pelas Nações Unidas para designarem 2014 como o Ano Internacional da Cristalografia.  De facto, a ideia que conduziu a essa descoberta data, segundo o próprio autor, de Fevereiro de 1912. Num passeio pelo Englischer Garten em Munique, von Laue, que já era doutor por Berlim desde 1903 (tinha sido aluno de um outro Max, Max Planck),  foi estimulado por uma conversa com Paul Ewald, então estudante doutoral de Arnold Sommerfeld. O problema de Ewald tinha a ver com a passagem de luz visível por um cristal, mas Laue (que então ainda não era von Laue, pois só mais tarde, e à custa do pai, ganharia tal distinção nobiliárquica) pensou que faria mais sentido fazer passar raios X pelos cristais. Já se conhecia o tamanho típico das distâncias interatómicas e havia bons motivos para suspeitar que o comprimento de onda dos raios X era da mesma ordem de grandeza. 

Apesar de alguma resistência inicial à ideia por parte de Sommerfeld, o certo é que dois assistentes deste, Paul Knipping and Walter Friedrich, na Universidade Ludwig-Maxmilian  de Munique, logo realizaram a experiência usando um vulgar cristal de sulfato de cobre, seguindo as recomendações de von Laue, que era um teórico e não um experimentalista. O padrão de interferência da radiação X numa chapa fotográfica era manifesto, confirmando duas coisas: por um lado, a natureza ondulatória dos raiox X (na época não era ainda nada evidente!) e, por outro, a natureza atómica da matéria sólida (uma ideia que já estava interiorizada). O próprio Sommerfeld anunciou ao mundo científico a novidade em Junho de 1912. Agora dispunha-se de um meio para ver as coisas por dentro e a dupla familiar William Henry Bragg e William Lawrence Bragg, respectivamente pai e filho, do outro lado do canal da Mancha, rapidamente o aproveitaram  para conseguirem avanços notáveis na área, num trabalho  que lhes valeria o Nobel em 1915. Bragg filho tinha então apenas 25 anos, o que lhe concede a distinção de ser o mais jovem de todos os laureados Nobel até hoje. Foram merecidamente rápidos os prémios Nobel para a cristalografia. A técnica generalizou-se. Nem von Laue nem os Braggs poderiam imaginar que hoje a difracção de sólidos por raios X continua a ser, em várias disciplinas científicas, uma ferramenta essencial.  Pode-se até falar de “indústria” da difracção de raios X, seja para descobrir a estrutura de uma proteína, seja para descobrir a natureza íntima de um mineral.

Von Laue obteve um lugar de professor em 1912 em Zurique, em 1914 em Frankfurt e em 1919 em Berlim. Haveria de se manter na Universidade de Berlim até 1943 quando se reformou. Foi, portanto, um dos sábios alemães que ficaram no seu país durante o governo de Hitler. Mas isso não o impediu de, com os limitados meios à sua disposição, ter resistido ao regime nazi. Ele era, de resto, um claro adepto da teoria da relatividade, que a “ciência alemã” procurava ridicularizar. Von Laue foi, em Berlim, colega e amigo de Einstein (os dois tinham a mesma idade), que deixou a Alemanha logo que Hitler chegou ao poder. Em 1945, numa operação de caça aos sábios alemães, um comando aliado prendeu-o em sua casa e levou-o para a famosa propriedade, repleta de microfones escondidos,  de Farm Hall, na Inglaterra, onde, com Heisenberg, Hahn, von Weizsaecker e outros, receberia a notícia da bomba sobre Hiroshima. Na prisão von Laue escreveu um artigo sobre a interferência de raios X que foi publicado na Acta Crystalographica, nada mau para um reformado. 

Von Laue, que recuperaria as honrarias científicas na Alemanha, morreu após um acidente automóvel em 1960, cinco anos após Einstein. Os dois simbolizam os dois grupos de físicos alemães, os que ficaram  e os que abandonaram a sua pátria, temendo a perseguição nazi. A física unia-os a todos.

Sem comentários:

O QUE É FEITO DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS?

Passaram mil dias - mil dias! - sobre o início de uma das maiores guerras que conferem ao presente esta tonalidade sinistra de que é impossí...