domingo, 4 de maio de 2014

Conhecimento e liberdade

Segunda parte da entrevista/aula do Professor Veiga Simão que teve lugar há quatro anos na Universidade de Coimbra (a primeira parte encontra-se aqui).


"Tenho a dizer-vos que o conhecimento e a liberdade são bens 
que estão interligados e não são da mesma natureza das mercadorias, 
não são escassos e raros como estas. 
O conhecimento e a liberdade são potencialmente infinitos.
A sociedade do futuro há-de ter como pressuposto a 
partilha planetária e transparente do conhecimento e da liberdade. 
É nestes bem que temos de pensar quando desenhamos 
políticas de educação e formação."

José Veiga Simão, 2010

A crise pela qual passamos significa que não estamos a conseguir mobilizar devidamente o conhecimento?

"Ora bem, o meu amigo faz-me uma pergunta, que eu, aliás, julgo que é da essência do vosso Mestrado, que se relaciona com a Educação e a Sociedade do Conhecimento. temo-nos preparado, desde há muito tempo, para sermos um país mais próspero, para conseguirmos atingir indicadores qualitativos e quantitativos, quer de competitividade de Portugal entre as nações, quer do desenvolvimento e da inovação, quer também da qualificação dos portugueses, e não há dúvidas nenhumas de que temos feito muitos progressos.

Deixem-me dizer-vos que nunca aderi muito a fazer comparações de nós próprios. Considerava profundamente errado no Estado Novo e nos livros escolares por onde eu aprendi, pôr-se em relevo os progressos materiais que se iam fazendo por comparação com a Primeira República, dando ênfase, não aos ideais da Primeira República, mas à instabilidade governativa que não permitia governos eficazes e eficientes e dai decorrendo uma certa anarquia na sociedade. Passaram já trinta e muitos anos depois da queda do antigo regime e parece que não temos outras coisas para fazer senão, de vez em quando, comparações com o antigo regime, considerando as vitórias que fazemos grandes vitórias. Entendo isso o principal sinal de derrota.

Temos é de ver de onde partimos e de nos comparar com outros países. E, meus caros amigos, está à vista que a evolução não é muito positiva. Por exemplo, podemos ver como a Espanha nos ultrapassou. Quando fui para Cambridge, deslocava-me de comboio: apanhava na Estação Velha o Sud Express, aí ia eu até Irun, depois Hendaye, Paris, Paris-Austerlitz, Paris-Nord, Calais, Dover, Londres e, enfim, Cambridge, onde chegava passados três dias. Eram viagens admiráveis! Os espanhóis naqueles anos cinquenta, cinquenta e três…, eram mais atrasados do que nós. A Guarda Civil andava de pantufas, os “bagageiros” apanhavam as nossas malas, punham-lhe um arame e queriam cinquenta pesetas, os comboios eram todos a carvão e paravam em sítios em que nada se via. Nós tínhamos a estação de Vilar Formoso, muito bonita, com azulejos, e ofereciam-nos uns almoços, ofereciam-nos não, pagávamos, que eram esplêndidos, e eu orgulhoso de Portugal junto dos estrangeiros. Quando apanhávamos ali um comboio a diesel, tudo andava mais depressa. Naturalmente, se comparasse no domínio ferroviário com a França, sentia-me amargurado, e no domínio das ciências e das tecnologias a Inglaterra, menos de uma década depois da Guerra, era, para mim, realmente um paradigma, algo a atingir.

Devo dizer que criei muitas amizades em Inglaterra mas uma das coisas que me perturbou foi a maneira como os ingleses, olhavam para nós, portugueses, olhavam para mim como um bicho esquisito ido de uma terra que desconheciam. Por exemplo, quando praticávamos desporto, diziam assim: “Afinal o José é branco”. Convidavam-me para “tea partys”, para “cocktails” e perguntavam-me: “Onde é Portugal?, Onde fica isso?”. “Venho da Universidade de Coimbra”, dizia eu. “Coimbra? Onde fica isso? Em Marrocos? É no norte de África?” Eu aprendi, justamente em Coimbra, a reagir a este tipo de desafios. Nunca me zanguei e, com o mesmo humor inglês, dizia-lhes: “Vocês têm todos razão. Na minha escola também ninguém me ensinou Geografia. Imaginem que quando vim aqui para Inglaterra, julgava que a capital era Edimburgo”. O inglês corava de vergonha…

Isto é para dizer, que o conhecimento é muito importante. Que nós temos de conhecer para argumentar, temos de estudar para argumentar e que só com conhecimento das coisas é que podemos exercer algo que é fundamental para a pessoa humana. Era Agostinho da Silva que dizia, julgo eu, que “o homem não nasceu para trabalhar”. Concordo com ele: o homem nasceu para criar, o trabalho é o elemento fundamental para essa libertação, é uma componente da crítica.

Ora bem, se tivermos universidades perdidas em problemas intra-muros, se tivermos escolas sem autonomia obedientes a leis sem rosto nem alma, se não entendermos que a criatividade é essencial numa escola, se não dermos aos professores a possibilidade de fazerem coisas novas, acompanhando-os, corrigindo os seus erros, se não percebermos que só há reforma educativa com os professores e nunca contra os professores, se quisermos escolas iguais, desde Miranda do Corvo até à Avenida de Roma, se não tomarmos medidas esclarecidas e se fizermos as coisas a tempo, estamos perdidos.

Eu aprendi na física, e a física está muito próxima da filosofia. Um dos meus primeiros artigos está publicado na Humanitas, que é uma revista da Faculdade de Letras, e intitula-se “A Física Atómica e os Gregos”. Lá notei a importância da inter-relação entre as diferentes áreas de conhecimento, se não desenvolvermos a interdisciplinaridade, se as faculdades forem ilhas isoladas numa universidade federativa, se não houver uma verdadeira universidade, o conhecimento não abunda e a criatividade também não.

Falava-vos, antes, da democratização da educação, como sendo um sonho de ontem, um esforço de hoje e a força do amanhã, mas temos de lhe associar outros: temos, por exemplo, reforçar a componente da cultura como um elemento essencial da sociedade do conhecimento. Ainda não percebi como, país pequeno que somos, não introduzimos a cultura na área produtiva, porque não apostamos nas empresas culturais, porque não valorizamos os aspectos regionais.

Meus caros amigos há aqui um drama nacional, que se parece com os “tsunamis” e do qual, porventura, não nos damos conta. Num trabalho recente das Nações Unidas, aponta-se que se continuarmos, com as políticas públicas e as estratégias empresariais dos últimos anos, oitenta por cento da população ficará concentrada na região da grande Lisboa e do grande Porto, ficando vinte por cento no resto do país. Temos tido alguns sucessos, temos tido coisas boas, no domínio da educação há nichos de qualidade como nunca houve mas se continuarmos o caminho em que estamos que futuro teremos neste país?

Vejo e ouço que se fecham unidades de saúde, maternidades, escolas, fecha isto, fecha aquilo, e com argumentos de racionalidade muito poderosos e também económicos, que são muito importantes, mas será só isso? Não creio, o caso é que não temos uma visão estratégica para Portugal. Se insistirmos neste economicismo que está ligado ao mercado selvagem não teremos futuro. Será que os outros países estão a fazer o mesmo? Se alguns conseguem, porque é que nós não conseguimos? Porque é que insistimos em falar de desenvolvimento regional, quando, depois de todos os investimentos nesse sentido, o despovoamento do interior indica que Portugal vai ficar reduzido a uma pequena faixa e vazio onde há potencialidades, qualidade de vida. Não sei se as belas auto-estradas que possuímos são de saída ou de entrada…

E que educação e formação estamos a dar nas escolas para que os conceitos de consciência da terra, de qualidade de vida, de natureza ambiental, conceitos que permitam, como dizia Herbert Marcuse, “uma vida digna de ser vivida”, não entram nas nossas congeminações, a não ser em propagandas momentâneas, quando se pretendem obter ganhos eleitorais.

Tudo isto é preocupante porque não podemos fazer reformas educativas com remendos e retalhos, não podemos continuar com este modelo de desenvolvimento com consequências que são bem visíveis; o nosso modelo de desenvolvimento está esgotado. Adoptámos a opção de integrar a Europa, que consolidou a nossa democracia, e eu orgulho-me de ter sido Ministro na altura em que essa opção foi consagrada no Mosteiro dos Jerónimos.

A integração europeia foi necessária e é importante mas, não teremos, sido mais atraídos pelos dinheiros de Bruxelas do que pela tradição euro-atlântica? Não seria essa tradição uma mais valia para a própria Europa? O que é que nós fizemos sobre a economia do mar? Os meus amigos vivem aqui no baixo Mondego? O que é que sabem em termos de demografia? Como é que ela está a evoluir? Quais são as actividades educativas e formativas que digam respeito a isso? Que empresas é que aqui estão instaladas? De que conhecimento essencial necessitam? O que é que se aprende na universidade a esse respeito?

Meus caros amigos, vou dizer-vos o seguinte: ao ler as cartas regionais do baixo Mondego, que vão ser publicadas, vejo uma coisa fantástica, a área de Coimbra, em termos, de educação básica, secundária e superior, apresenta as taxas mais elevadas e mais significativas do nosso país. Mas para onde vão as pessoas que se formam? Quais são as oportunidades, que esta área oferece para que os seus conhecimentos possam ser aplicados para o desenvolvimento desta região ou de outras. Não tenho resposta para todas as questões mas é necessário estudá-las, é necessário reflectir.

Trazia aqui algumas coisas em que pensei, com um ou outro aperfeiçoamento, em 1998 e escrevi num documento que é conhecido por alguns, desconhecido por outros, chamado “Carta Magna da Educação e Formação ao Longo da Vida”. Fui Presidente da Comissão Nacional da Educação e Formação ao Longo da Vida entre 1997 e 1998, e com um grupo de pessoas de diversas formações, Lídia Jorge, Almeida e Costa, Helena Melo, Margarida Sá, Cardoso Lopes, Alberto Melo e outros, redigi essa Carta Magna. Nela fazíamos uma reflexão sobre a nova realidade: os conceitos que estão ligados às políticas educativas e formativas e que não devem ser apenas de sobrevivência das pessoas, mas de filosofia da sua própria existência.

Quais são os novos conceitos de cidadania e de civilidade na sociedade do conhecimento, ou nas sociedades de permanente aprendizagem, ou sociedades de múltiplos saberes? O que é afinal o novo conceito de saber e de produção? Os meus amigos aqui há dezenas de anos, viam uma certa sequencia, primeiro saber, segundo avaliar e terceiro aplicar, mas hoje estes actos são muito simultâneos, e acontece que só sabe quem faz e só faz quem sabe. Por isso, nas sociedades onde a separação entre o sujeito que sabe e o que pratica encontram-se num atavismo. Enquanto formos por esse caminho, não estamos na linha da sociedade do conhecimento.

Tenho a dizer-vos que o conhecimento e a liberdade são bens que estão interligados e não são da mesma natureza das mercadorias, não são escassos e raros como estas. O conhecimento e a liberdade são potencialmente infinitos. A sociedade do futuro há-de ter como pressuposto a partilha planetária e transparente do conhecimento e da liberdade. É nestes bem que temos de pensar quando desenhamos políticas de educação e formação.

Não sei se é isso que estamos a fazer: havendo uma certa imprevisibilidade na evolução do mundo de trabalho parece querer-se que educação e a formação se tornem socialmente úteis, isto é empregáveis, isso não está totalmente errado mas não podemos excluir totalmente o saber pelo saber, porque senão em vez de formarmos para a empregabilidade, formamos para o desemprego. Para o desemprego eminente ou potencial.

A empregabilidade não se pode confundir, como oferta transitória de mão-de-obra qualificada disponível, deve antes propiciar maior igualdade de oportunidades e simultaneamente associar a capacidade de risco da mobilidade profissional com novos padrões de segurança social.

E aqui, meus caros amigos, há que flexibilizar os sistemas de cursos e de planos curriculares, o que requer uma alteração do papel do Estado, temos de ter um Estado mais inteligente. Temos de definir as futuras funções e missões do Estado, porque essa maneira de resolver problemas através de uma horizontalidade de medidas, determina que a administração pública seja cada vez menos capaz, e que seja fácil ser dominada, designadamente por influências obscenas dos partidos políticos. Temos de cultivar a educação do cidadão, temos de o preparar para a invenção e, ao mesmo tempo, colocar a civilidade no coração do desenvolvimento, construir organizações económicas mais racionais, temos de ter mais consciência da terra, sem a agredirmos tanto com propósitos de lucro imediato. Temos de estabelecer um melhor equilíbrio. Temos de estudar mais, de saber mais. Temos de investir na democracia participativa.

A sociedade do conhecimento já não é uma abstracção intelectual, é uma realidade e um imperativo da cultura que solicita um uso inteligente do tempo. Aprendi, com Einstein, na teoria da relatividade, o significado do tempo. Porque o conhecimento é facilmente volúvel e substituído por outro, quem não utilizar o conhecimento a tempo está perdido.

Meu caro amigo, o que eu lhe digo, é que criar conhecimento e aplicá-lo a tempo é necessário e fundamental, para progresso da nossa sociedade."

Este texto tem continuação....
Maria Helena Damião

1 comentário:

Augusto Küttner de Magalhães disse...

Este ano Veiga Simão deveria ter participado numa das Conferencias de um Ciclo muito interessante que aconteceu em Serralves (entre Dez.2013 e Fev.2014.).

Na própria noite, soubemos que seria substituido por Manuel Braga da Cruz por ter sido submetido a uma operaçao e não se poder deslocar no momento, mas mais tarde teria todo o gosto de ir falar em Serralves.

Não foi possivel acontecer e todos ficamos a perder......

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