segunda-feira, 24 de março de 2014

Livros com Química: Ravelstein de Saul Bellow


Saul Bellow (imagem tinhouse.com)
Ravelstein é um livro de Saul Bellow que, partindo da biografia de Alan Bloom, autor de um livro que teve bastante impacto nos EUA (Cultura Inculta, na tradução portuguesa), nos conduz numa viagem humana e desorganizada pelos enigmas da doença e do envelhecimento. 

O narrador, Chick, é um autor de best sellers, casado com Vela, uma especialista em física do caos de origem balcânica, superficialmente sofisticada e de poucas palavras que, na verdade, o despreza. Chick, que toma quinino para o coração (na verdade quinidina, um isómero desta molécula) e procura agradar a todos, é amigo íntimo de Ravelstein, uma personagem transbordante, ideossincrática, professor idolatrado, com tiques e manias, fumador compulsivo, coleccionador de gadgets, cínico e sem maneiras, que se reconhece como homossexual ou invertido, mas não como “gay”.
Quinino (imagem wikipedia)


Além de SIDA, Ravelstein tem herpes zóster e a doença de Gullian-Barrié, duas viroses que podem ser muito dolorosas, é obeso, sofre dos dentes e tem tremuras nas mãos e pernas. Fumando de forma compulsiva, ouve música em altos berros, dedica-se a mexericos, reuniões, festas e conferências, mas, sobretudo, aparenta não ter medo da morte.

Chick, que prometeu a Ravelstein escrever a sua biografia, mas vai adiando fazê-lo, acaba por casar, depois da morte de Ravelstein, com Rosamud, uma antiga aluna deste último. Segundo Chick, Ravelstein ensinava o amor e erotismo com base em Aristófanes, Sócrates e a Bíblia, contrapondo-o às limitações do modelo biológico que dispensa a alma e sublinha a importância do alívio orgiástico da tensão. Na verdade, os modelo mecânicos do amor baseados em equilíbrios e desequilíbrios, tensões e válvulas de escape, são imagens mecânicas grosseiras, quase sempre falsas. A química e a biologia do amor não substituem a alma por modelos mecânicos e deterministas. De facto, as relações de Chick com Vela e Rosamud, como as dos demais comuns mortais, são complexas e apresentam caracterísiticas únicas que não se reduzem a modelos simples. A biologia e a química são importantes para o sucesso das relações e do amor, mas a alma das relações e do amor, não são redutíveis de forma simples, como já referi num outro texto, à biologia e à química.

maitotoxina (imagem wikipedia)
Numa viagem às Caraíbas, Chick fica doente e quase morre. A principal suspeita é ciguatera, um envenamento com toxinas provenientes de um microorganismo que vive nos corais, Gambrierdiscus toxicus, o qual pode contaminar peixes usados na alimentação. E as toxinas deste microorganismo são, de acordo com o World Records In Chemistry, as moléculas não proteicas mais tóxicas conhecidas: a maitotoxina, a ciguotoxina e a palitoxina. 

Este envenenamento recorda-nos que, contrariamente ao que pensa um certo senso comum as substâncias mais tóxicas que existem não são artificiais mas naturais. Nisso a natureza é inexcedível de eficiência: as moléculas mais tóxicas que existem são as toxinas do botulismo e do tétano, ambas proteínas de origem natural, venenosas em quantidades ínfimas. Numa imagem muito aproximada, cerca de 10 a 100g de toxina do botulismo poderia matar metade da população humana; o LD50 (a dose que mata em média metade dos indivíduos expostos) desta toxina tem valores entre 0.03 a 0.3 nanogramas por quilograma. De origem natural, mas não proteica, surgem logo em seguida as toxinas referidas acima (com LD50 de 0.05 a 0.5 microgramas por quilograma), a taipoxina, proveniente de uma cobra venenosa australiana, a batracotoxina presente nas rãs venenosas e a tetrodoxina do peixe-balão (estas últimas com LD50 entre 2 e 10 microgramas por quilograma). O rícino é uma glicoproteína de origem vegetal também muito venenosa (LD50 0.1 micrograma por quilograma). Os compostos de origem artificial surgem muito depois em nível de toxicidade. As dioxinas têm LD50 de 20 microgramas por quilograma, o paratião, o conhecido e famigerado agente de suicídio dos anos setenta, tem LD50 de 3.6 miligramas por quilograma e o cianeto de potássio 10 miligramas por quilograma. Alguns materiais artificiais radioactivos, como o polónio-210 (LD50 de 10 a 50 nanogramas por quilograma), têm toxicidades mais altas que os compostos artificiais anteriores, embora menores que os das toxinas naturais referidas, mas a toxicidade dos compostos radioactivos é difícil de avaliar, pois estes mantêm-se activos no organismo durante bastante tempo, induzindo outras doenças. Em 2006, o polónio-210 foi usado para matar Alexander Litvinenko e há suspeita de que tenha sido usado para matar também Arafat.

Ravelstein, embora do lado das humanidades, não deixa de ridicularizar com grande acutilância a ignorância e os medos irracionais envolvendo produtos químicos. De acordo com Chick, que não bebia o café de Ravelstein por este ser feito com água cheia de cloro, Ravelstein pregava anti-sermões de estilo picaresco acerca do medo do fumo do tabaco, dos conservantes dos alimentos, do amianto, dos pesticidas e das bactérias nas mão dos empregados dos restaurantes.

Infelizmente, o empastelamento dos riscos e a sobrevalorização de alguns riscos é muito comum e altamente desinformante. O fumo do tabaco é muitíssimo mais perigoso do que os conservantes dos alimentos. Os riscos de fumar são muito superiores aos dos pesticidas actuais, mesmo para os agricultores, se bem utilizados em tratamentos de protecção integrada (actualmente obrigatórios). E mesmo os riscos do amianto são bastante limitados para a a maioria das pessoas. Muitos outros exemplos poderiam ser dados.

Paralelamente à intoxicação, Chick tem uma pneumonia e problemas cardíacos, passando bastante tempo nos cuidados intensivos do hospital a delirar, medicado com midazolam (denominado no livro Verset), um analgésico muito potente. No final do livro, a vida segue, embora se tenha a certeza que esta não possa ser eterna.

Azidatimidina, AZT (imagem wikipedia)
Os aspectos químicos relacionados com as doenças de Ravelstein, em especial a SIDA, quase não são referidos no livro, com a excepção de um momento em que uma enfermeira vem trazer AZT, sigla pela qual é conhecida a azidatimidina, um fármaco bem conhecido por ser usado no tratamento desta doença. A SIDA é actualmente, nos países ocidentais, uma doença crónica. Mas em África, esta é ainda um flagelo e uma das principais causas de morte. Em 2007, um grupo de trabalho da UNESCO propôs que a química nas universidades sub-Sarianas fosse ensinada tendo como contexto esta doença. Nesse documento, que envolve propostas pedagógicas para o ensino da química, dos seus aspectos mais básicos aos mais avançados, podemos ver como a química é importante e central para o entendimento, rastreio e tratamento desta doença em particular. E, claro, podemos induzir que o mesmo se verifique para todas as outras doenças. E na verdade para tudo o que nos rodeia.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito interessante esta digressão pela química das toxinas e a sua importância na compreensão, rastreio e tratamento de doenças

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