Trecho sobre "Racionalismo e empirismo" do livro "Introdução à Teoria do Conhecimento", de Dan O'Brien, que acaba de sair na Gradiva (colecção Filosofia Aberta) com tradução de Pedro Gaspar e revisão científica de Aires Almeida:
"Os racionalistas acentuam a importância do conhecimento a priori, e aqui será útil introduzir um pensador
racionalista de vulto e avaliar o papel do conhecimento a priori na sua epistemologia. Descartes é
porventura o epistemólogo mais influente da filosofia
ocidental, e iremos considerar vários aspectos do seu
pensamento ao longo do livro. As suas Meditações foram
escritas num tom autobiográfico: o filósofo aparece-
nos sentado à lareira, matutando sobre a natureza
do conhecimento. Primeiro, levanta algumas dúvidas
de natureza céptica no sentido de que poderemos não
ter qualquer conhecimento do mundo (capítulo 9); no
entanto, encontra salvação num elemento seguro do
conhecimento: «cogito, ergo sum» («Penso, logo existo
»); isto é por vezes referido como o cogito. A nossa
própria existência é algo acerca do qual não podemos
estar enganados. Depois, usando um raciocínio inteiramente
a priori, tenta demonstrar que Deus também
existe (capítulo 15). Deus, bom como é — uma vez
mais, algo que podemos saber a priori — não poderia
permitir que fôssemos criaturas epistemicamente tão
limitadas, e assim temos certas crenças justificadas
acerca do mundo empírico. Certos aspectos cruciais da
epistemologia de Descartes são, pois, desenvolvidos
por meio do raciocínio a priori. Importa esclarecer, no
entanto, que Descartes não renega toda a experiência.
Depois de encontrarmos uma demonstração a priori da
existência de Deus, temos de proceder a observações
cuidadosas do mundo a fim de adquirir maior conhecimento.
No entanto, é o conhecimento a priori que
permite, em última instância, justificar as crenças
empíricas que adquirimos dessa forma.
Os empiristas aceitam que algumas verdades podem
ser conhecidas a priori, mas essas verdades são
consideradas desinteressantes, não-instrutivas e tautológicas.
Ao tomarmos conhecimento de que os solteiros
são homens não-casados, não aprendemos nada de
substancial acerca do mundo, mas apenas algo acerca
do significado das nossas palavras, ou seja, que, em
português, «solteiro» tem o mesmo significado que
«homem não-casado».
[A]s verdades da razão pura, as proposições que sabemos
serem válidas independentemente de toda a experiência,
são-no em virtude da sua falta de conteúdo factual.
Dizer que uma proposição é verdadeira a priori é dizer que
é uma tautologia. E as tautologias, embora possam servir
para nos guiar na nossa demanda empírica do conhecimento,
não contêm em si mesmas qualquer informação
sobre qualquer questão de facto. (Ayer, 1990, p. 83)
Este tipo de conhecimento é a priori porque pode
ser adquirido em virtude da mera compreensão dos
conceitos relevantes; não requer qualquer outro tipo
de investigação do mundo. Os empiristas afirmam que
todas as verdades a priori são «analíticas», tal como as
descreveu Immanuel Kant. São verdadeiras em virtude
dos significados dos termos utilizados para as exprimir,
e a sua verdade só pode ser descoberta com
recurso à análise filosófica. As verdades analíticas contrastam,
deste ponto de vista, com as verdades que são
«sintéticas». As verdades sintéticas não dependem
apenas do que os nossos termos significam, mas também
daquilo que o mundo revela ser. O facto de os
coalas comerem folhas de eucalipto não faz parte do
conceito de COALA; não obstante, é verdadeiro, e é-o porque
descobrimos que é isto que os coalas fazem. É uma
verdade sintética. Não devemos, no entanto, equiparar a
distinção entre o empírico e o a priori à distinção entre o
sintético e o analítico. A primeira é uma distinção
epistemológica: tem a ver com a fonte da justificação
para as nossas crenças. A segunda é uma distinção semântica:
o que está em causa é se certas verdades o são
apenas em virtude dos significados dos conceitos relevantes.
Apesar de estas distinções dizerem respeito à
justificação e ao significado, respectivamente —dois aspectos
distintos da linguagem e do pensamento — o
empirista afirma que elas moldam o nosso conhecimento
da mesma maneira: todo o nosso conhecimento a priori,
e apenas ele, é analítico, e todo o nosso conhecimento
empírico, e apenas ele, é sintético. O único conhecimento
independente da nossa experiência que podemos ter é,
segundo o empirista, o que diz respeito ao significado
das nossas palavras e pensamentos; qualquer conhecimento
substancial do mundo deve ser adquirido através
da experiência. É esta posição que iremos questionar na
secção seguinte. (No capítulo 11 iremos examinar também
a tese de Willard Quine segundo a qual todo o
conhecimento é empírico e nada pode ser conhecido a
priori, nem mesmo os significados.)"
Dan O'Brien
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2 comentários:
Continuam a ser duas questões muito importantes para a compreensão da epistemologia. Parabéns pela publicação.
Leitura urgente para quem muito necessita dela: http://lishbuna.blogspot.pt/2013/08/blog-post_1340.html
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