quinta-feira, 20 de junho de 2013

COIMBRA DOS DOUTORES


Post convidado de Galopim de Carvalho:

Nunca apreciei a tão falada Sala dos Actos da veneranda Universidade de Coimbra. Repositório de uma tradição de pompa e circunstância, ainda bem viva na cidade dos doutores que por ali passaram e estão a passar grandes vultos da inteligência lusitana. As poucas vezes que entrei neste casarão desconfortável, frio e soturno, fi-lo na condição de membro de júris em provas académicas, sempre ali realizadas num cerimonial muito ao gosto dos meus colegas coimbrões. Quais avejões negros, em ritual funéreo, os meus pares, carregados de circunspecção, perpetuam uma prática elitista, aos meus olhos obsoleta e bafienta, com a qual nunca me identifiquei.

 Eu, que por decisão própria, não adquiri o traje académico que me competia usar, sempre aqui me apresentei, mal-ajeitado, numa farda que não era a minha, ora apertada, ora larga e comprida, emprestada para o efeito. Fazendo um breve parêntese, recordo que, em idênticas provas na Universidade de Lisboa, a obrigatoriedade do uso do traje académico (concebido e aprovado ao tempo do Prof. Marcelo Caetano, como Reitor) tem vindo a esmorecer, quanto a mim, louvavelmente, num testemunho de maior valorização dos conteúdos, isto é, da criação do saber, relativamente à forma, ou seja, à encenação.

 A última vez que participei como membro de um júri em Coimbra, nesta imensa sala e bem ao estilo da austeridade e da fidalguia intelectual de tempos idos, jurei a mim próprio que nunca mais ali voltaria em serviço da Universidade. E cumpri. Foi em meados dos anos 90 do século que passou.

 Ao fundo, num cadeirão enorme, feito trono, em posição de destaque, como é tradição, o Reitor presidia, solitário e de longe, às provas de agregação de um dos seus Doutores. Aparentemente desinteressado, cumprindo o seu dever, escondia o bocejar atrás de um molho de folhas de papel A4 que, ora folheava, a modos de ler qualquer coisa, ora usava como abano, mais para passar o tempo ou iludir o tédio do que para suavizar o calor ou afugentar uma mosca, duas coisas que ali não havia.

 Em baixo, o candidato configurava o réu, falando e olhando para cima, para nós, seus inquisidores. Nós, pelo contrário, do alto dos nossos assentos e, também, da nossa importância, falávamos, olhando-o de cima para baixo. Mas, até aí, tudo bem. Simpática ou não, tradição é tradição e não sou eu, nem muitos como eu, que a vamos alterar. O pior estava para vir.

 Uma vez por outra, eu levantava os olhos para o alto da grande parede em frente e ia recordando a História de Portugal, aprendida meio século atrás, na 4ª classe, ali evocada numa correnteza de grandes e toscos retratos dos nossos gloriosos reis, a começar no que fundou a nacionalidade, logo seguido do D. Sancho I, e por aí fora, até ao limite da visibilidade possível a partir do lugar onde, desconfortavelmente, me sentava e os pés baloiçavam e me arrefeciam.

 Deste júri faziam parte sete professores da casa e três de fora, entre os quais, eu. O desenrolar das provas não se afastou daquela normalidade em que candidato e arguentes debatem desapaixonadamente os seus pontos de vista em torno do trabalho em apreciação. Nada que se parecesse a autênticas batalhas, a que me foi dado assistir em décadas de docência, nas quais, muitas vezes, mais do que arguir, o arguente queria era brilhar e exibir o seu muitíssimo saber. Tudo foi correcto e tranquilo nesta sessão em que a argumentação foi confiada a dois dos professores visitantes e na qual, os professores da casa, calados, foram meros assistentes entre um público constituído por alunos, colegas, pais e outros familiares do candidato.

 Findas as provas e numa outra sala, o júri reuniu para votar. Cada membro daquele colectivo recebeu, da mão do Reitor, duas bolas do tamanho de berlindes, uma branca e outra preta. Sobre uma mesa, à nossa frente, havia duas urnas, uma branca e outra preta. Para votar a aprovação do candidato, cada um de nós devia colocar a bola branca na urna branca e a bola preta na urna preta. Trocar as cores das bolas com as das urnas significava reprová-lo.

 Com a urna branca na mão, prestes a tornar conhecido o seu conteúdo, o Reitor relembrou que o número de bolas brancas ali introduzidas versus o número de bolas pretas ditaria o resultado. Mais brancas do que pretas, o candidato estava aprovado; mais pretas do que brancas determinavam a sua reprovação. Em confirmação do resultado desta primeira contagem, abrir-se-ia a urna preta, na qual as bolas tinham significado inverso.

 Da urna branca saíram, então, sete bolas pretas e três brancas. Incrédulo do que estava a ver, a iniquidade desta votação era, de seguida, confirmada com a abertura da urna preta. O candidato fora reprovado. O modo em que as provas haviam decorrido não apontava, de modo nenhum, para um desfecho assim. Matematicamente, a maioria daquelas sete bolas pretas reflectia a vontade dos professores da casa. Soube, que além de mim, outro dos professores convidados votara a favor do candidato. Feitas as contas, era evidente que, pelos menos, seis dos sete coimbrões votaram contra ele. Tornou-se-me então evidente que, entre os meus colegas da cidade dos doutores, havia entendimento prévio relativamente a este triste resultado, por razões que desconheço, mas que, também ficou evidente, nada terem a ver com a competência científica e profissional do visado. Não custa deduzir que sabiam, à partida, que tinham maioria para manter o seu propósito. Este propósito não foi, porém, declarado na reunião de júri que, por regulamento, antecede as provas públicas, e na qual se discutiu e se decidiu sobre a admissibilidade do candidato às mesmas. Nessa reunião prévia, os professores da casa podiam, por maioria, ter recusado admiti-lo, só que cada um deles teria de justificar, de cara destapada, a sua decisão. Na acta dessa reunião ficou, pois, registada a admissão do candidato às provas que requerera.

 Se, por razões que me escapam, as cúpulas locais não desejavam admitir o candidato no seu seio, deviam tê-lo declarado na dita reunião prévia e não o fizeram. Tinham, assim, evitado todo o incómodo, todo o trabalho que nos causaram e todo o mau estar que este lamentável episódio provocou. Como se costuma dizer, caiu-me o coração aos pés. Caíram também aos pés todos os corações dos que, cá fora, rodeando o candidato, aguardavam o momento de o felicitar. Um balde de água gélida desceu a nobre escadaria da Universidade. Nos rostos dos presentes pairavam lágrimas, dentes cerrados e olhares apáticos, imobilizados pela estupefacção. Sem querer e sem o saber eu acabava de participar num acto que considero vergonhoso e que recordo como o pior episódio que me foi dado testemunhar em quarenta anos ao serviço da universidade portuguesa. Esta deselegância, por parte dos colegas coimbrões, pôs a nu laivos de hipocrisia dissimulada sob uma habitual falsa capa de bonitas palavras e gestos de simpatia e de afecto.

 De pasta na mão e farda dobrada no antebraço do outro lado, os meus colegas de Coimbra iam saindo, a caminho da sua importância, sem olhar para o grupo dos ofendidos a que me juntei.

 Numa pastelaria da cidade, apalavrada para servir o habitual beberete, em regozijo deste tipo de acontecimentos, as confecções secaram sobre as mesas postas, os copos permaneceram vazios nas toalhas brancas onde haviam sido alinhados e as garrafas não foram abertas.

 Felizmente que o tempo tem vindo a varrer estes avejões e parte do que de obsoleto e bafiento perdurava nestas e noutras torres de marfim. As cátedras estão a dar lugar a disciplinas, acabaram-se os lentes, substituídos por professores, e os sábios fossilizaram, tendo evoluído, democraticamente, para investigadores ou trabalhadores científicos, como se preferir chamar-lhes. Banalizado pelo número crescente de universidades públicas e privadas, nem sempre dignas desse nome, o título de Reitor tem vindo a perder o prestígio que o adjectivo Magnífico lhe conferia, um termo a juntar a outros caídos em desuso.

 Não tinha passado um mês sobre a redacção que fiz desta lamentável ocorrência, o Jornal de Notícias divulgava através da net, em 16/03/07, a medida à qual dou todo o meu aplauso: o Governo instituiu, relativamente às provas de agregação, a obrigatoriedade de a maioria dos membros do júri ser externa à universidade onde são prestadas. A votação do júri deve ser nominal e fundamentada, “terminando com o inaceitável secretismo actual”.

 António Galopim de Carvalho


13 comentários:

joão viegas disse...

Serei o unico a achar este texto interessante e corajoso ? E preocupante ?

Boas

Anónimo disse...

É tudo isso. E também dos poucos que neste blogue tem valido a pena ler e reter.

Celso Ferreira

Anónimo disse...

O silêncio que o artigo do Professor Galopim provocou neste blog de doutores de Coimbra não deixa de ser muito curioso.

MM disse...

Muito bem, assim se vê a dinâmica intelectualidade desta cidade. Naftalina tresanda nas ruas.

João Boavida disse...

Os textos do Professor Galopim de Carvalho têm sido excelentes, e eu já aqui o disse. Este texto é corajoso ao denunciar uma situação lamentável por ele vivida,mas o que estava mal era o processo de aprovação ou reprovação por bolas pretas e brancas, que se usava nas provas de agregação, suponho em todas as universidades portuguesas e não só em Coimbra, e que se prestava a situações deste tipo. É claro que há aqui, neste caso, e acredito que tenha sido tal como Galopim de Carvalho relata, hipocrisia e cobardia dos que, não participando no debate, votaram contra o candidato. Mas poderia haver muitas razões para o fazer, algumas científicas outras de natureza diferente. Embora não sendo obrigados a isso os membros do júri deviam ter apresentado previamente as suas razões. Não conheço o caso nem as pessoas, mas sei por experiência que nem sempre os candidatos que mais trabalhos têm publicados e mais documentos apresentam são os mais competentes,os mais trabalhadores e os cientificamente melhores. Neste caso, só havia um candidato e parece ter havido cobardia da parte do júri, mas nem sempre as coisas são tão simples como parece a quem as olha de fora. De qualquer maneira ouvi relatos idênticos passados noutras universidades, porque o que estava mal era o processo usado.
Já agora era bom que não se caísse, como fizeram alguns comentadores, no lugar comum de dizer mal de Coimbra só porque uma certa mentalidade anos 60, que ainda domina a nossa comunicação social, continua a selecionar notícias relativas a Coimbra omitindo o bom, avantajando o mau e não se dando conta de que a universidade de hoje pouco ou nada tem que ver com a do século passado. Não esquecer, no entanto, o contributo que os estudantes de Coimbra deram, nesse finais dos anos 60 para o enfraquecimento do antigo regime, e, já agora, os repetidos lugares cimeiros entre as universidades portuguesas nas classificações feitas por critérios e entidades internacionais .

Anónimo disse...

Por falar em omitir o bom e avantajar o mau: já que fala no contributo dos estudantes de Coimbra para o enfraquecimento do antigo regime, porque não falar no grande contributo que deram a esse mesmo regime, a começar pelo seu protagonista?

João Boavida disse...

Meu caro Anónimo, não sei em que medida se pode falar no "contributo dos estudantes de Coimbra para o antigo regime". Havia estudantes de todas as cores e paladares, como hoje, e até aos anos 50 a grande maioria dos portugueses (estudantes incluídos) alinhavam mais ao menos pelo regime político vigente. A massa estudantil refletia a massa nacional e a mentalidade coletiva. (Não esquecer, porém, a republicana crise académica de 1907, e que nos anos 40 Salgado Zenha foi presidente eleito da Associação Académica de Coimbra, com uma lista de esquerda). Nos finais dos anos 50 princípios de 60 a realidade começou a alterar-se muito significativamente. Foi no ambiente académico que começaram a dar-se alterações de fundo, com a vitória, para presidente da Associação Académica, do Carlos Candal, e logo depois com Jorge Aguiar, direção esta que o Regime salazarista "atropelou" pelo caminho. E foi por essa altura que apareceu na "Via Latina" a célebre "Carta a uma jovem portuguesa", que abanou a mentalidade nacional de alto a baixo. Depois seguiram-se as crises académicas de 62 e 69, e outras menores, pelo meio, com o correspondente clima de agitação, que, de facto, deram um forte abanão no salazarismo e na sua credibilidade. Muitos dos estudantes que então foram presos e mobilizados, por castigo, foram autêntico fermento de ideias novas entre os militares; isto é sabido e é reconhecido. É bom lembrar ainda que a crise de 69 resultou do enfrentamento direto e público do Presidente da República, Américo Tomaz, pelo então presidente da AAC, Alberto Martins, que revelou, por si só, grande coragem. Na altura não era pouca coisa, como deve saber. Mas a ação estudantil de então, com uma adesão em massa, teve um enorme reflexo no País, abriu os olhos a muitíssima gente, apesar da censura e da deturpação dos factos, em que eles eram especialistas. É pois muito injusto falar, nestes termos, em apoiantes do regime. Que os havia, é claro, alguns dos quais andam por aí, agora, em partidos e na vida política, à esquerda e à direita.
Por outro lado, o facto de Salazar ser professor em Coimbra não me parece nada significativo. Ele foi chamado para o Governo porque era um bom especialista em finanças, segundo consta. Como agora Vitor Gaspar. Se houvesse ao tempo (e não devia haver) um bom especialista em Lisboa, e as coisas tivesses evoluído a partir de um professor de Lisboa, será que ainda andavam hoje a acusar Lisboa de reacionária por nos ter "dado" um professor de finanças que se tornou em ditador? Tenho a certeza que não.
Desculpe, mas é o tipo de argumento que mostra como há uma mentalidade dominante, que, precisamente por ser dominante, é redutora, simplista e injusta, pensando-se o contrário disto tudo. Na comunicação social é evidente a sistemática e cirúrgica ação de apoucamento da Universidade e da cidade, de "esquecimento", ou indiferença. Quando se lembram, e para compensar, vêm às repúblicas, e à "tradição" e à copofonia, aspetos muitas vezes lamentáveis mas quase sempre residuais. Mas que reforçam uma ideia e uma mentalidade, que, de facto, embora não pareça, está em perda. E que já nos anos 60 era minoritária, é bom que se diga.

José Batista disse...

Embora atrasado, não quero deixar de me congratular com o extraordinário texto do Professor Galopim de Carvalho. Penso sobretudo nos arremedos e variações a que os alunos supostamente universitários chamam "praxe", multiplicados até à náusea por esse país fora. Esta é matéria em que os nossos jovens têm sido "empreendedores"... Fossem os pais deles tão pobres quanto os meus e, suponho, seriam menos ostensivos... Digo isto não por falta de respeito pelas tradições coimbrãs, mas por sempre ter discordado dos excessos, da presunção e da imaturidade com que muitos, debaixo de um traje que não honram, enxovalham o próximo, que, pelo seu lado, espera pela sua vez... E vejo essas atitudes e comportamentos radicando no pior que o fundo do ser humano encerra.

Mas Coimbra tem os seus merecidos pergaminhos, e é honrosamente património da humanidade, como sempre foi e tantos de nós pareciam desconhecer.

Congratulo-me também com os comentários do Professor João Boavida, na linha do rigor honesto e límpido que sempre conheci nele.

Que bons Professores que eu tive.
Obrigado bons Mestres.

Anónimo disse...

@João Boavida

li com agrado a sua resposta, a sua apologia quase épica das lutas estudantis dos anos 60. Mas mais uma vez, só quer ver o lado positivo da coisa.

Que o ditador tenha aprendido e reproduzido no governo do país as atitudes autocráticas, estreitas e mesquinhas de uma universidade poeirenta e a cheirar a bolor, isso já não lhe interessa.

Anónimo disse...

Ah, e quase me esquecia: o mais engraçado é ainda ver como esses arautos das novas ideias, esses revolucionários das berças, uma vez instalados como lentes, se tornam iguaizinhos aos seus predecessores. É assim uma espécie de doença "lental".

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Um tema ainda que breve, tanto que ontem conversava com o monsenhor mui amigo, a respeito da matriz humanista no Brasil. E, a referencia do conhecimento que gestara na distinção europeia, destacara os setecentos anos respondidos a ciência da universidade de Coimbra.

É claro, que alonguei-me impressionada e impressionando pela descoberta, justamente o quê a meu ver confere uma identidade sem ideologia. Conversando entende-se, e de repente elucidada a questão. Só faria e, para tanto só faz sentido, toda e qualquer responsabilidade que fora de principio, de zelo. Ora na integridade a causa maior.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

princípio *

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Coimbra dos Doutores Honoris Causa !

CARTA A UM JOVEM DECENTE

Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente .  N...