domingo, 16 de junho de 2013

A TEORIA QUÂNTICA E O PROBLEMA DO GATO


Na sequência de meu post anterior sobre a teoria quântica:

A teoria quântica tem problemas conceptuais. O maior é o chamado "problema da medida", que está associado ao "colapso da função de onda". De facto, a função de onda, que é solução da equação de Schroedinger, descreve um comportamento ondulatório, mas recolhem-se partículas no detector. Reside aqui o “problema da medida”, debatido por muitos ao longo de décadas, mas resolvido na chamada interpretação de Copenhaga. Apesar do nome, é mais do que uma interpretação entre muitas, por ser aceite por quase todos os físicos praticantes: há até quem entenda que não se pode aplicar a teoria quântica sem a interpretação de Copenhaga por não haver alternativa válida.

 Nessa interpretação aceita-se, como postulado, o “colapso da função de onda”, isto é, no detector o estado do sistema descrito pela função de onda muda instantaneamente para um estado componente dessa função: a função de onda é a soma de muitas funções e só fica uma destas seleccionada aleatoriamente. Uma onda estendida no espaço dá origem, no colapso, a uma ondícula, que descreve uma partícula num dado sítio (falo de sítio porque, na prática, não se trata de um ponto matemático, que é algo ideal; para se ter uma partícula localizada exactamente num ponto haveria um problema com a altura infinita da função de onda, isto é, vale o Princípio da Incerteza de Heisenberg). Esta transformação súbita NÃO é descrita pela equação de Schroedinger do sistema, é algo que tem de ser acrescentado para compreender a observação de uma partícula individual. É um fenómeno irreversível no tempo – o sistema não pode voltar atrás – enquanto a equação de Schroedinger é reversível no tempo.

 O colapso também se aplica a estados que não são representados espacialmente: por exemplo, um spin,  propriedade de um electrão responsável pela magnetização e que pode ser reconhecida aplicando um campo magnético, pode estar numa sobreposição de um estado para cima (+) e um estado para baixo (-). Porém, quando há uma detecção (prefiro esta palavra do que observação, embora sejam sinónimas), vê-se que o spin ou está para cima ou está para baixo, aleatoriamente: a medida é sempre + ou – e não as duas coisas. Pode-se indicar a probabilidade de se ter + ou de se ser – e, feitas numerosas experiências (ou uma só experiência para muitos electrões), o resultado é o previsto.

 O famoso gato de Schroedinger é uma amplificação macroscópica desta sobreposição microcópica: devido a um acontecimento quântico, o “gato quântico” está numa sobreposição entre o vivo e o morto, mas, quando o observamos, ele ou está vivo ou está morto, aleatoriamente, e não as duas coisas ao mesmo tempo. Podemos imaginar um conjunto ou "ensemble" de caixas e, por exemplo, em metade delas o gato estará vivo e na outra metade estará morto, Claro que não é a observação que o mata!

 O colapso da função de onda é, de facto, muito misterioso e tem inquietado numerosos físicos. O problema tem sido resolvido modernamente (não quero dizer que está resolvido) nas teorias chamadas de decoerência: alarga-se a equação de Schroedinger para incluir não só o sistema, mas também a vizinhança ou ambiente, e falamos de interacção entre entre o sistema e o ambiente, considerando explicitamente o detector como parte do ambiente. Neste caso, o colapso não precisa de ser postulado, sendo antes uma consequência da interacção. Este assunto é ainda bastante controverso. Alguns físicos de inegável importância histórica como von Neumann e Wigner invocaram observadores dotados de mente ou consciência, mas cada vez mais é claro que é apenas preciso haver uma interacção do sistema microscópico com algo macroscópico. A transição microscópico-macroscópico acontece no detector. Portanto, a ser correcta a teoria da decoerência, uma onda decompõe-se nas suas parcelas, sendo recolhida uma destas. Dizemos que o estado de mistura inicial dá origem a um só estado que antes estava contido na mistura. A aleatoriedade da teoria quântica surge aqui em consequência da interacção com o ambiente. Por outras palavras, a interpretação de Copenhaga da função de onda que em todas as experiências tem funcionado na perfeição, parece estar a encontrar algum apoio teórico.

 Repito que a interpretação de Copenhaga não tem alternativas viáveis: a interpretação dos universos paralelos, apesar de  muito badalada ultimamente por causa de questões cosmológicas, só tem aceitação residual entre os físicos, por levantar mais problemas do que aqueles que resolve. A teoria dos universos paralelos, segundo a qual os universos vão aparecendo em cada experiência de medida, cada um deles exibindo um dos resultados possíveis, não faz nem pode fazer previsões físicas. É mais metafísica do que física. E as teorias de variáveis escondidas têm problemas que parecem inultrapassáveis: violam, em geral, as desigualdades de Bell, que têm sido respeitadas pela teoria quântica em inúmeras experiências. Várias teorias de variáveis escondidas, que eram apenas hipóteses para Einstein, foram formuladas, colocadas à prova e... falharam.

 Restam problemas filosóficos, o que não admira pois há e haverá sempre problemas filosóficos. É certo que os físicos se preocupam pouco ou nada com eles, mas isso não impede que os haja. Há mais áreas para além da física e a filosofia é uma área extremamente importante.

Qual é a ontologia da função de onda? Ela existe mesmo? Pode-se debater o assunto, mas o certo é que essa função conduz a resultados observados e nesse sentido existe, embora não seja algo directamente mensurável como um campo (não tem energia como um campo, por exemplo o campo electromagnético). Existem partículas ou ondas antes de serem observadas ou sem serem observadas? Esta questão é muito interessante: os físicos, em geral, dizem que sim, mas Bohr ensinou que só podemos falar daquilo que podemos observar, ou melhor, medir: “a Física não trata da Natureza, mas daquilo que podemos dizer sobre a Natureza.” Como as experiências para os mesmos sistemas de partículas dão resultados diversos conforme as montagens laboratoriais, convém especificar completamente o dispositivo experimental, incluindo o aparelho de medida. É nesse sentido que Bohr nos ensina que o processo de observação deve ser incluído na definição de fenómeno e, generalizando com algum perigo, que o observador faz parte da descrição da realidade observada. Esta afirmação é epistemologicamente muito importante pois impede a separação clara entre sujeito e objecto, mas não pode ser levada à letra no sentido de considerar que há aqui um elemento humano, mental ou consciente, responsável pela realidade quântica. Nada abona nesse sentido. Embora haja pessoas que, confrontadas com um mistério quântico e com um mistério da consciência, os queiram unir, ficando um só mistério, o certo é que até agora isso não resolveu nem um nem outro desses mistérios. Para um certo fenómeno só podemos em teoria quântica prever e descrever o que vemos num dado momento: não faz sentido nenhum dizer que electrão passa ao mesmo tempo por duas fendas, pois estamos a transportar para o domínio quântico a noção clássica de trajectória de uma partícula. Não podemos dizer nada sobre o comportamento como partícula do electrão durante o tempo anterior à medida. Não devemos sequer falar da partícula electrão antes de de a recolhermos no detector. É um abuso de linguagem e as questões da linguagem são muito importantes na teoria quântica, domínio onde facilmente se “escorrega” em palavras, que estão associadas à física clássica e ao senso comum.

 De onde vem a aleatoriedade? A aleatoriedade parece ser uma característica intrínseca da teoria quântica: ela surge na relação entre  função de onda e observação. A função de onda fornece uma descrição probabilístico-estatística das observações. Uma vez que, para a mesma montagem, experiências repetidas dão resultados um pouco distintos mas estatisticamente idênticos, temos de rever a noção de determinismo clássico: para a teoria quântica continua a ser válido um princípio de determinismo geral, pois podemos fazer previsões, embora apenas de carácter estatístico (sistemas preparados da mesma maneira comportam-se estatisticamente da mesma maneira!), mas temos de rever a noção de determinismo individual. Embora a imprevisibilidade de um partícula quântica pareça ser intrínseca, avanços na teoria da decoerência façam supor que ela poderá vir da interacção de um sistema microscópico, relativamente simples, com um sistema macroscópico, bastante mais complexo. Até agora aceitamos a imprevisibilidade porque ela nos aparece: “Deus joga mesmo aos dados”, aceitando a expressão metafórica de Einstein. Einstein dizia que Deus não jogava aos dados e Bohr replicava que não competia a Einstein dizer a Deus o que fazer. Curiosamente, nenhum deles era crente.

1 comentário:

Unknown disse...

“Colapso” da função de onda

Foi formulada em 1926 por Erwin Schroedinger uma equação diferencial parcial que descreve como o estado quântico de um sistema físico muda com o tempo. Em 1933, esse trabalho rendeu-lhe o Prêmio Nobel (juntamente com Paul Dirac).

Ela contém o termo Ψ, referido de forma um tanto inadequada como “função de onda” e cujo significado inicialmente não foi entendido, até que Max Born a interpretou como definidora da probabilidade de se encontrar uma partícula num determinado lugar do espaço. Ele recebeu por isso o Prêmio Nobel em 1932. A possibilidade pode ser representada por uma curva de Gauss, com o máximo no centro e tendendo assintoticamente a zero nas extremidades. O formalismo matemático adotado deixa claro que quando a localização da partícula é feita, toda probabilidade desaparece. Estranhamente, desde a sua formulação até hoje vem dando origem a numerosas discussões sobre o significado desse desaparecimento, afirmando-se que haveria algo misterioso nisso, Ora, quando temos um dado na mão e vamos lançá-lo, a possibilidade de cada uma das faces cair para cima é de uma para seis. No momento em que ele cai sobre a mesa e se imobiliza, evidentemente não se pode mais falar em probabilidades, pois uma das faces foi definida. É um fato corriqueiro, não há nada de misterioso nele, como aliás ressaltaram Einstein e o próprio Niels Bohr

É o que acontece quando se acha que a Física obrigatoriamente precisa ser descrita por fórmulas matemáticas, mesmo quando elas são desnecessárias, como é o caso. Nesse amor pelo misterioso, até hoje é corrente que a função de onda significaria que a partícula poderia estar, de maneira mágica, em todos os lugares ao mesmo tempo, e a teoria quântica ofereceria a possbilidade de se criar um computador capaz de realizar simultaneamente infinitas operações matemáticas, o que poderia ser muito útil, por exemplo, na quebra de escritos criptografados.

Outro equívoco atual que tem a mesma origem consiste na chamada "interpretação de múltiplos universos", a qual afirma a realidade objetiva da função de onda universal.

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