sexta-feira, 10 de maio de 2013

AÇORDA DE MÃO NO BOLSO

CABEÇA DE CEIFEIRO ALENTEJANO (1941) Dórdio Gomes (1890-1976)
Numa destruição galopante dos belos ideais de Abril, estamos hoje a assistir a quadros como este de que fui testemunha, em finais dos anos 30 do século que passou.

Nesses anos da minha infância, a fome nos campos do Alentejo era muita. Sem um quinhão de terra para cultivarem, as famílias viviam das magras e esporádicas jornas, ao sabor dos caprichos do Sol, das chuvas e das geadas.

Sem trabalho, os cifrões cresciam no livro dos fiados, na venda da aldeia, sem esperança de os ver reduzir ou apagar. Os homens, nunca as mulheres, acabavam por vir para a cidade, pedir esmola.

Vinham aos grupos de três ou quatro, não para se imporem pelo número, mas porque se envergonhavam e intimidavam se viessem sozinhos. Batiam-nos à porta, e tendo vindo abrir-lha, cumprimentavam de chapéu na mão e o que falava apenas dizia que não tinham trabalho e que precisavam de levar de comer para os filhos.

Voltando à cozinha, a chamar a minha mãe, dizia:
- Estão ali os trabalhadores do campo, a pedir!

Não lhes chamávamos pobrezinhos nem, muito menos, mendigos porque, de facto, não o pareciam nem eram. Tinham dignidade e majestade e, na resignação que mostravam, adivinhava-se a revolta dentro do peito. Pediam pão ou algum dinheiro para comprarem avio que levassem de volta para casa.

A minha mãe respeitava-os profundamente e dava-lhes o que podia, como se fossem irmãos. Sem que o dissesse abertamente, ensinou-me a amá-los. E, embora a vida fizesse mais de mim um menino, um rapaz e um homem da cidade, sempre me senti filho do campo e irmão dos camponeses.

Com eles, não só aprendi a olhar os homens e a natureza, como fiquei a saber o que é comer “pão com navalha”, uma forma muito expressiva de dizer pão sem conduto, e que “açorda de mão no bolso”, no seu sentido crítico pleno de humor, muito comum neste povo, significa que, não havendo na tijela mais do que o caldo e o pão migado, só se usava a mão que pegava na colher.
Galopim de Carvalho

10 comentários:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Haveria neste dia o quinhão de partilhar; a lição em compreendia-se ao pequenino olhar.

Na majestade de peregrino, este andante destino!


Saber encontra-se.
D'outro lado a tinta.

José Batista disse...

Sim, estamos.

Na minha escola, desde há três ou quatro anos quintuplicou o número de jovens que comem na cantina. A minha escola é das poucas que ainda tem cozinheira e ajudantes e a comida é elogiada por quase todos. Como não há dinheiro para meter mais funcionários, estamos aflitos com a possibilidade de ter que fechar a cantina, por falta de capacidade de resposta, sendo que a seguir o trabalho seria entregue a uma empresa, daquelas que conseguem sempre fazer refeições mais baratas, mesmo que intragáveis...
Na minha escola já temos quem vá ajudar nos trabalhos da cantina em troca apenas da possibilidade de poder... almoçar!
Na última reunião em que participei e em que abordámos o assunto sugeri que envolvamos os encarregados de educação para ver se é possível arranjar mais colaboradores a custo... zero (ou o almoço). Custou-me fazer a proposta, pelo medo de ser mal interpretado: por exemplo de aproveitar o estado de necessidade de alguém para lhe pedir ajuda. Mas, em tempos de guerra não se limpam armas. E isto é uma guerra. Ou pelo menos assim o sinto. De tal modo que, se a coisa ficar mesmo irremediável, conto oferecer-me eu mesmo para ajudar no que puder, nos dias em que o meu horário lectivo o permitir. Fica dito. Sei que haverá colegas meus que vão achar isto uma forma de "prostituir" o papel do professor. Mas eu julgo que a situação que vivemos é já uma situação de "prostituição" da dignidade das pessoas, especialmente daquelas que menos têm e menos podem.
Porque guerra é guerra expus as minhas armas.

José Batista disse...

Na segunda linha, leia-se: ..."ainda têm cozinheira"... em vez ..."ainda tem cozinheira"...

a kuettner de magalhaes disse...

Está-me a retroceder, tanto, tanto......já vamos mais de 20 banos atrás!!!!!!!

E não pára de recuar....

João Boavida disse...

Belo e comovente texto este, de Galopim de Carvalho. Tem aqui escrito textos excelentes e este é um deles. Parabéns! Era grande a miséria no Alentejo e por todo o país, embora o minifúndio no Centro e no Norte amenizasse um pouco as coisas. Mas só em parte, a dependência do trabalho, que muitas vezes não havia, a ausência completa de assistência médica, os apoios sociais inexistentes, deixavam os pobres entregues à sua sorte. Será que estamos a voltar ao mesmo, como me dá a entender o meu amigo José Batista? Penso que, apesar de tudo, e por enquanto, estamos ainda longe desta situação. Mas ninguém garante que não se agravará.

José Batista disse...

Meu caríssimo Professor

Espero não voltar ao tempo de ver jovens e adultos descalços, mesmo no Inverno... Mas há já casos desesperados. Muitos. E a tendência é para as coisas se agravarem. O arcebispo de Braga parece partilhar os meus receios. Transcrevo:
“Tenho receio que estas medidas em determinado grupo de pessoas sejam verdadeiramente desastrosas, impedindo-as de terem o minimamente indispensável para viver”, disse D. Jorge Ortiga aos jornalistas na conferência de imprensa que antecedeu o convívio com a comunicação social sediada dentro do território da arquidiocese, por ocasião do Dia Mundial das Comunicações Sociais.

António Bettencourt disse...

Caro Professor Galopim,

Venha ao Alentejo e veja como andam a viver os trabalhadores imigrantes. E sabe quem são os piores patrões, aqueles que os tratam abaixo de cão? Os grandes comunistas e democratas da Reforma Agrária e que tanto lucraram com a mesma, comportando-se hoje mil vezes pior e mais desumanamente que os agrários que tanto criticavam.

De Rerum Natura disse...

Meu caro António Bettencourt
Acredito no seu relato mas acho que isso nada tem a ver com o rótulo ideológico que cada um carrega consigo. Quem assim procede não é democrata nem, sequer, é gente. Está a acontecer o mesmo com muitos dos lideres nacionalistas que conquistaram a independência dos territórios que nós e outros colonizámos. Veja o que, infelizmente, se passa com alguns dos socialistas, sociais democratas e democratas cristãos que, com o nosso consentimento, nos têm (des)governado.
A. Galopim de Carvalho

Ildefonso Dias disse...

Eu até já ouvi de um retardado estas palavras "se não fossem os 'romenos' a azeitona do Alentejo nem sequer era apanhada, pois os alentejanos não querem trabalhar".

Ildefonso Dias disse...

No link abaixo está uma noticia de que falta mão-de-obra no Alentejo - Alqueva, mas talvez seja porque os alentejanos se recusam e não querem trabalhar por € 10 ou € 15 por dia. Não querem esse regresso ao passado. E ainda bem.


http://www.tsf.pt/PaginaInicial/Vida/Interior.aspx?content_id=3237031

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...