quinta-feira, 4 de outubro de 2012

“In Memoriam” de Nene, Jogador de Futebol da Académica de Coimbra



Post de Rui Baptista:

As memórias procriam como se fossem pessoas vivas.
 Agustina Bessa-Luís.

Por pertença aos mortais que o fim de vida  não pode fazer cair no esquecimento público, trago à presença do leitor  a memória do talentoso Nene, jogador de futebol do Grupo Desportivo de Lourenço Marques e da Associação Académica de Coimbra.

Recordo-me dele, como meu aluno da Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque de Lourenço Marques quando, com a sua alegria de predestinado para o desporto-rei, encantava  todos aqueles que  tinham o prazer de o ver passear a sua enorme classe deliciando-os, com as sua fintas de  pés, quais verónicas de dextro toureador, nos torneios inter-turmas de futebol de 5, realizados no velhinho campo desportivo a céu aberto de uma saudoso estabelecimento de ensino técnico que diplomou homens de rija têmpera, profissionais de incontestável valor e  desportistas de grande mérito, v.g., Fernando Adrião, no Hóquei em Patins, e Paulo Carvalho, no Basquetebol.

Passados escassos dias do infaustoso falecimento de Nene, cumpridos que estavam apenas duas dezenas de anos de idade, lia-se in “A  Bola” (12/09/1971), em transcrição parcial que faço:

“Nascera em Madrid, mas cedo a família partiu de Moçambique. À aventura. Foi lá que despontou para o futebol no Desportivo de Lourenço Marques um rapazinho de seu nome Modesto Luís de Sousa Neves – (Nene) era o seu nome de guerra/alcunha no jogo de pontapeio da bola. Com 17 anos ruma a Coimbra. Matriculado no Instituto Industrial, tornou-se atleta-estudante da Académica de Coimbra e seu jogador cobiçado. Aos 20 anos, o Sporting acena-lhe com um contrato milionário: 1.350 contos.

Era o preço do seu génio, da sua imaginação cintilante, dos seus dribles irresistíveis, das suas arrancadas destruidoras, dos seus remates fulminantes. Mas numa noite tepidamente trágica naquele Agosto, depois de ter jantado em Coimbra, pegou no seu Austin oferecido pela Académica e partiu para a Figueira da Foz, nesse percurso numa curva traiçoeira perdeu o controlo do carro e foi enfaixar-se nas traseiras de uma camioneta…

E Coimbra em dor e lágrimas. Pela morte  de um ídolo ainda menino. E de um símbolo. Que era umas das maiores esperanças (se não a maior) do futebol Português. Jazia já no cemitério da Conchada em Coimbra”. Frase final que eu me atreveria complementar com respaldo em Fernando Pessoa: “Jazia já no cemitério da Conchada, 'o menino de sua mãe´”.

Também jovem, muito jovem, a caminho da consagração no firmamento de Hollywood, morreu, igualmente, em desastre de automóvel no  Porsche que conduzia (1955), James Dean, ícone da juventude rebelde da década de 50, como se o destino se comprazesse em ceifar a vida da sua melhor e mais promissora juventude. Igualmente se tratava de um menino de que o mecânico que o acompanhava na ambulância diz ter ouvido “um grito suave emitido por Jimmy : a lamúria de um menino chamando por sua mãe ou de um homem encarando Deus”! 

Em destaque merecido,  é recordado, em vésperas de nova participação da Académica na “Liga Europeia”, pelo médico de Coimbra Vitor Campos, seu companheiro de equipa, em jogo da 2.ª mão (1970), entre o Manchester City (que viria a conquistar a “Taça das Taças” desse ano) e a “Briosa”, em clima  épico em que esta seria vencida no campo adversário por 0-1, depois de um empate a zero em Coimbra, a pessoa de Nene, num artigo do” Diário de Coimbra” (18/09/2012). Nesse texto de jornal, relata-nos  Vitor Campos o seguinte:

 “’Ninguém nos conhecia em Inglaterra e eles, na 2.ª mão, pensavam que iam dar três ou quatro a zero’, recorda Vitor Campos, que assume com orgulho que a Académica fez ‘a vida negra’ ao Manchester City.

‘Tínhamos uma  equipa com qualidade, muito experiente’ afirma o antigo centrocampista que, apesar da derrota no prolongamento, não deixou de elogiar ´a grande jornada’ protagonizada pelos estudantes. 

Sem querer tirar o mérito ao colectivo, o médico fez questão de elogiar um companheiro em particular: ‘Não posso deixar de destacar o saudoso Nene, que era um jogador fantástico. Pôs em sentido toda a defesa com uma excelente exibição individual que nos ajudou muito’”

Quanto à equipa de Coimbra dos dias de hoje, Vitor Campos entende que ‘tudo pode acontecer na participação na Liga Europeia que começa na quinta-feira”.

Na noite de hoje e nesse “tudo pode acontecer”, seja uma  forma de homenagear “in memorian”, se possível, com uma vitória, Neno que vindo das longínquas e revoltas águas do Índico trouxe às calmas  margens do Mondego  toda a  magia, entusiasmo e juventude de um  futebol que permanece na lembrança nostálgica dos simples adeptos da Académica, dos seus  sócios  e dos seus desportistas  de capa e batina. De toda uma cidade que não deixou cair no olvido de um mundo de ingratidão  – que não reconhece o valor dos seus melhores em vida e daqueles que dela já partiram – um passado de glória desportiva  imprimindo nos sulcos da memória colectiva a sua marca indelével . 

Escreveu Fernando Pessoa: “Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor ao coração dos homens”. Bem haja Vitor Campos por ter pensamentos que revelou, compartilhando-os connosco, quando escreve: “Não posso deixar de destacar o saudoso Nene que era um jogador fantástico”!

Rui Baptista

5 comentários:

Joaquim Moreira disse...

Sim, o despiste mortal deu-se na estrada 111 no sentido Coimbra-F.Foz, num sábado à noite, a seguir à então passagem de nível das Alhadas.
Cumprimentos
JM

João Boavida disse...

Lembro-me muito bem desse desastre e do sentimento de perda que então todos vivemos. As estradas más e perigosas, uma certa euforia juvenil que tantos mata ao volante, ainda hoje, e que continuará a matar, a infelicidade pura, o acaso que tantas vezes nos aparece pela frente, sei lá. Todos lhe reconheciam qualidades futebolísticas extraordinárias, mas morreu cedo demais. Temos que agradecer a Vitor Campos e Rui Baptista esta pequena homenagem.

Rui Baptista disse...

Caro Joaquim Moreira: Ainda me lembro dessa fatídica passagem de nível que às vezes levava o trânsito automóvel a desesperar por uma longa espera para que se abrissem as cancelas desse apeadeiro.Para além dessa possibilidade, o facto da indecisão de Nene dec continuar na Briosa ou transferir-se para o Sporting, mercê de uma proposta milionária para a altura, poderá ter pesado para esse ingaustoso desastre. Meras hipóteses a considerar...

Cumprimentos,

Rui Baptista disse...

Prezado Professor João Boavida: O meu caro Professor e os então alunos da Academia, sócios ou simples simpatizantes da Académica, viveram intensamente esse desgostoso que o Dr. Vitor Campos relata, exaltando as qualidades de Nene nos resultados brilhantes da Briosa nos despiques com o forte Masnchester City. Eu mais não quis do que acrescentar algo, ainda que mesmo de pouca valia, para além da minha vivência de docente com o já então promissor aluno Nene, jogador do Grupo Desportivo de Lourenço Marques. Aliás, cidade que já tinha dado o seu contributo para o futebol continental através da mítica figura de Eusébio.

Mais: os atletas moçambicanos projectaram bem alto na altura o nome de Portugal com a conquista de Campeonatos Mundiais de Hóquei em Patins. O mesmo sucedeu com os nadadores de Moçambique que, em 1957, vieram à Metrópole disputarem os Campeonatos Nacionais de Natação fazendo cair (ou diria mesmo, pulverizar!) vários recordes nacionais da modalidade. E o que dizer dessa plêiade de basquetebolistas que tiveram lugar cativo, e de muito relevo, nas equipas nacionais que venceram vários campeonatos da bola ao cesto depois da sua vinda para Portugal quando este país, confinado a fronteiras europeias e insulares, deixou de se estender do Minho a Timor?

Cumprimentos amigos,

Rui Baptista disse...

Errata: 3.ª linha do 1.º §, onde está "desgostoso", deverá ler-se "desgosto".

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