“Portugal vive há séculos na superstição da palavra ‘doutor’. (…) Os ‘doutores’ no Parlamento e na administração eram os agentes da burguesia rural, camada dirigente do País” (António José Saraiva, Diário de Notícias, 31/08/1979).
Um comentário de João Boaventura, ao meu último «post» Cursos do Ensino Técnico no Brasil e em Portugal (08/09/2012), perspectiva esta temática em moldes que suportam este meu novo texto por vivermos num tempo, num país e numa sociedade em parece ser mais importante discutir o novo Acordo Ortográfico do que estabelecer e cumprir linhas orientadoras de um ensino que se preocupe com a respectiva qualidade.
E que, para além disso, não passe diplomas que pouco ou nada valem (com o fundamento de que, como escreveu La Rochefoucault, “o mundo recompensa com mais frequência as aparências do mérito do que o próprio mérito”); e, pior do que isso, sem nenhuma preocupação com a respectiva empregabilidade.
Como escreveu João Boaventura: "Atenção à Casa Pia. Ensina-se a arte da relojoaria, ensina-se a ordem da carpintaria, ensina-se a arte da metalurgia, a arte do electicista... Ali não há congeminações aristotélicas, ensinam-se a artes dos artistas e põem-se os rapazes a trabalha e no mercado. Com a vantagem de todos eles terem emprego...!!! E com a vantagem de não estarem à espera de normativos a esclarecerem se se chamam escolas técnicas ou quejandos... o que ora interessa é que se façam, que se ensine, que se ponha mão de obra feita e acabada cá fora, independentemente dos nomes, designações ou signos das sedes que os formam”.
Por tudo isto, começa a faltar-me paciência para continuar a tentar explicar o que salta à vista de toda a gente e que muito tem a ver com uma atávica tendência para a ignorância, que subjaz a certos diplomas universitários, sob os olhares cúmplices ou mesmo decisão do próprio aparelho de Estado.
Aliás, uma atávica propensão que nos persegue desde o século XIX (e que muito se agigantou nestas últimas décadas), muito bem retratada por Eça, escritor da minha declarada predilecção, ao escrever:
“Um dos maiores males de Portugal, e digamos o maior, é a ignorância. A completa, a perfeita, a absoluta ignorância. Nunca houve em Portugal um ministério que propriamente se dedicasse a dotar o país com um completo sistema de estudos populares (…). O mal desaparecerá com a instrução; sob esta ideia se desenvolvem em todos os pontos as escola, os estudos, os estabelecimentos de instrução(…). Em Portugal não se pensa nisso…”
Mas pior do que isso, como escreveu Francisco Sousa Tavares (que ninguém poderá incriminar de "fascista"), “estamos a formar não um país de analfabetos, como até aqui, mas um país de burros diplomados”. Ou seja, um “licenciado”, que pouco mais seja capaz do que escrever correctamente o seu nome, está apto, face a textos legais, a ocupar lugares de topo na hierarquia do funcionalismo público.
E mesmo os políticos que nem desse grau académico carecem não se conseguem subtrair ao fascínio de um título(zinho) a anteceder o seu nome numa época em que , como escreveu António José Saraiva, “podemos tratar o interlocutor por ‘tu’, por ‘você’, por o ‘senhor’ por ‘o senhor doutor (e fórmulas correspondentes. “’senhor engenheiro’, ‘senhor capitão’, etc). (…) Uma das maiores dificuldades de um mestre de Português no estrangeiro é explicar o significado e sobretudo o porquê desta enorme variedade de formas”. Ou seja, pelo andar da carruagem, um dia destes, corre-se o perigo de ter que "respeitosamente" acrescentar a estas formas de tratamento, supervalorizadas, estas duas outras: “Senhor ministro doutor” ou “senhor ministro engenheiro” .
Para além deste ridículo, será bem mais trágico o tratamento de “senhor doutor desempregado” ou “senhor engenheiro desempregado”. Sobreviverá esta “superstição”, hoje desfalcada de “burguesia rural” desaparecida, a um tempo que satisfaz com um saber atamancado, em certas estabelecimentos de ensino superior, para deslustrar um saber de saber fazer as coisas de que a nossa vida necessita para que não seja um corpo tetraplégico de uma cabeça, mesmo que bem pensante, mas incapaz de pregar um simples prego?
Este é o desafio de uma sociedade que deu cabo de um ensino técnico que lançou para o mercado de trabalho diplomados capazes de fazer coisas e sabendo como fazê-las!
Tudo o resto assume, quanto a mim, aspectos de uma espécie de discussão sobre o sexo dos anjos quando os turcos se encontram à porta de Constantinopla. Ou seja, numa altura em que o desemprego se encontra na disposição de tomar de assalto o mercado do trabalho! “E 'prontos', como dizem os jovens letrados” (Clara Ferreira-Alves, Expresso, 31/08/2012).
domingo, 9 de setembro de 2012
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