“Toda a realidade é um excesso
Uma alucinação
Extraordinariamente nítida”
(Álvaro de Campos)
“Toda a verdade gera um escândalo”, disse-o Marguerite Yourcenar. Mas, apesar de um possível incómodo que me possa trazer, entendo ter o dever cívico de não silenciar uma discussão que tem reflexos sociais que merecem ser meditados e discutidos publicamente, que é a do desemprego dos actuais professores e futuros candidatos à carreira docente dos ensinos básico e secundário.
Em antecipação, escrevi duas décadas e meia atrás: “A macromelia aí está, as super-escolas superiores de educação, dezasseis no seu total. E se os actuais licenciados pelas faculdades de Letras excedem já em muito a procura do mercado o que sucederá daqui a meia dúzia de anos com, o espantoso acréscimo de outros desempregados, saídos das escolas superiores de educação, a concorrerem à docência do ensino básico que, dentro de nove anos, segundo a Lei de Bases, se estenderá até ao nono ano de escolaridade obrigatória?” (Diário de Coimbra, 21/02/87).
Desta forma, foi sem pingo de surpresa que tomei conhecimento, do polémico artigo de opinião publicado no Jornal de Notícias (05/08/2012), intitulado Pela escola descentralizada, da autoria de Rui Moreira, membro do Senado da Universidade do Porto e presidente da Associação Comercial dessa mesma urbe nortenha, instituição secular que, décadas atrás, lançava o seguinte alarme público: “Ensina-se pouco, educa-se menos e exige-se quase nada”.
Entendo, portanto, merecer este texto, no que concerne, essencialmente, ao desemprego dos professores, uma leitura atenta e crítica, despojada de um qualquer partidarismo político de quem, porventura, possa concordar ou discordar do seu autor, mas com a necessária lucidez de não isentar de culpas os responsáveis pelo assalto à carreira docente de indivíduos sem a necessária habilitação. Foi esta situação génese deste statu quo com dirigentes partidários e sindicais seus participantes com o intuito, os primeiros, de ganhar votos, os segundos, em engordar os cofres sindicais não podendo ambos, como tal e agora, lavaram as mãos em bacia de Pilatos.
Com incidência no desemprego dos professores, transcrevem-se alguns excertos do referido artigo Pela escola descentralizada:
“Os sindicatos dos professores rasgam as suas vestes, enquanto alguns dos seus militantes têm um comportamento pouco edificante no Parlamento, dando um péssimo exemplo às crianças e adolescentes que reclamam querer proteger. Tudo isto, porque o Ministério vai contratar menos professores, e porque alguns irão ficar sem turmas. Naturalmente, os professores reclamam que tudo isto irá ter impacto negativo no ensino, e escandalizam-se por haver turmas que, no limite, poderão ter trinta alunos. As federações dos paizinhos, cuja representatividade conhecemos, alinham pelo mesmo diapasão.
(…) Perante o problema de natalidade que se vai agravar, seria sempre impossível garantir emprego a todos os professores, porque não há matéria-prima que os justifique e sustente. Esta é a realidade nua e crua e que se sustenta em números: por cada professor, existem, na escola pública, menos de oito alunos.
Por muito que custe aos sindicatos, que tantas vezes invocam a Constituição da República, esta apenas promete que os portugueses terão acesso à educação. Não conheço nenhum capítulo da mesma lei fundamental que garanta que a escola tem de assegurar emprego a todos quantos têm formação para dar aulas, tanto mais que são muitos os professores que tiraram cursos não diretamente vocacionados para o ensino, como sucede com a Economia, ou com o Direito.
(…) Entretanto, os professores com horário zero irão para uma bolsa de substituição e depois, nos próximos anos, serão usados para reduzir o número de contratados. Entende-se que se sintam ameaçados por isso? Claro que sim, mas dificilmente se compreendem as reclamações dos sindicatos que nunca se insurgiram no passado contra o facto de haver muitos professores que gozavam desse privilégio, até porque muitos deles eram, precisamente, dirigentes sindicais.
(…) Por isso, torna-se urgente dar maior responsabilidade a cada escola, ou a cada agrupamento, para que faça as suas escolhas e para que determine o número de professores de que necessita, em função das suas especificidades. Ou seja, a Educação precisa de uma organização equivalente àquela que hoje existe em todos os outros setores do Estado. Nunca se ouvirá o professor Nogueira reclamar por isso, porque sabe bem que não resulta em seu benefício. Pelo contrário, espera-se que, um dia destes, os bons professores, que não compreendem as colocações, que não entendem os critérios, que são prejudicados pelas regras cegas, que estão fartos dos paizinhos e da indisciplina, que têm uma vocação que tem sido desrespeitada e muitas vezes mal compreendida, se organizem e exijam o fim de um modelo centralista e absurdo”.
E se, como nos legou Mark Twain, com notável verve, ser “a profecia algo muito difícil, especialmente em relação ao futuro”, no caso presente a antevisão de todo este lamentável descalabro estava à vista de toda a gente com o inevitável desemprego de quem se preparou ou preparava para ser professor cumprindo todos os trâmites académicos inerentes. Insisto, era este desemprego mais do que previsível para sindicalistas que, hoje, porventura, se queiram desresponsabilizar deste flagelo “assobiando para o lado”,como diz o povo, porque coniventes, de um futuro que não precisava de uma qualquer bola de cristal para se saber qual seriam os efeitos desastrosos e os ónus que o dia de amanhã traria consigo.
Ónus de que os avisos atempados que fui deixando na imprensa me desoneram da responsabilidade de omissão por este desastroso processo, embora me tragam pouco ou nenhum consolo perante esta verdadeira chaga social que é o desemprego, em nossos dias, e em que a docência não podia constituir milagrosa excepção perante as proporções desastrosas que ele assumiu em todos os estratos profissionais das sociedades portuguesa e de alguns outros países da União Europeia. Ou seja, para não se correr o risco, numa perspectiva orwelliana (Animal Farm, 1954) de os homens serem todos iguais, mas havendo uns mais iguais do que outros, o aguerrido e conflituoso sindicalismo docente não pode exigir soluções divorciadas da aflição de desemprego das profissões de engenheiro, de economista, de advogado, etc. Nem isso seria justo numa sociedade democrática igualitária em deveres e direitos de todos os seus cidadãos!
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9 comentários:
Por lamentável engano, eliminei este meu post aqui publicado ontem.Reproduzo-o novamente, apresentando as minhas desculpa a possíveis leitores.
Permita-me que coloque alguns «senões» ao seu post:
1. «a docência não podia constituir milagrosa excepção perante as proporções desastrosas que ele [desemprego] assumiu em todos os estratos profissionais das sociedades portuguesa e de alguns outros países da União Europeia» - tem que haver professores desempregados porque há muito desemprego parece-me pobre, como argumento. Mas adiante, seria aceitável se o desemprego não estivesse a ser construído à custa do aumento do número de alunos por turma e do sobrecarregar dos horários de quem ainda tem horário.
2. «por cada professor, existem, na escola pública, menos de oito alunos» - este número, tantas vezes esgrimido contra os professores, não tem qualquer significado. Talvez subsista alguma escola primária mais isolada com 8 alunos, mas duvido. É um número maldoso, obtido dividindo todos os alunos por todos os professores, sem contar com os professores que desempenham cargos de direcção e não leccionam ou têm apenas uma turma, os professores bibliotecários, os professores requisitados ou destacados... sabe do que falo, certo?
Qual é, ao certo, a intenção de quem emprega este número? Mostrar que os professores não trabalham?
3. O ataque ao sindicalismo, aos sindicatos em si e aos sindicalistas. Desculpe, mas já vivi num país sem sindicatos e não gostei.
Finalmente, deixe-me lamentar um facto que talvez nem esteja directamente ligado ao post em si, mas de cuja verdade o post forma mais uma achazinha: de há uns dez anos a esta parte os professores têm sido insultados, caluniados, rebaixados, vilipendiados das mais diversas maneiras. Sobrecarregaram-lhes os horários, congelaram-lhes as carreiras, diminuiram-lhes os vencimentos, pioraram-lhes sucessivamente as condições de trabalho. Fizeram crer às pessoas que isto era feito em favor dos seus filhos, os alunos. Não creio que haja neste momento, em Portugal, um pai que deseja ter um filho professor. Mas vai chegar um dia em que vão ser precisos professores e não os haverá. Fica aqui um «aviso atempado», porque mesmo as pessoas que escrevem calúnias contra os professores aprenderam a ler e a escrever com um professor.
Prezada Nan: Começo por lhe agaqadecer o seu comentário. Assim que puder (ainda hoje ou amanhã), terei imenso prazer em responder às questões que coloca, na intenção, assim o penso, de eu poder esclarecer certas perspectivas que possam ter ficado menos claras no meu post.
Errata: Obviamente, "agaqadecer", não. Agradecer, sim.
Prezado Nan:
Foi por si escrito: “Desculpe, mas já vivi num país sem sindicatos e não gostei”.
Esta sua frase, parece-me (embora possa estar enganado), melhor me situará no contexto do seu comentário a que, em promessa anterior, não me escusarei em responder. A pergunta é apenas esta: De que país se trata? Como nos diz o povo: “Cada terra com seu uso; cada roca com seu fuso”.
Cordialmente.
O país foi mesmo este - sou suficientemente «antiga» para me lembrar.
Prezada Man: Obrigado pelo esclarecimento. Desfez-me a minha dúvida, não fosse tratar-se da ex-União Soviética em que, segundo a Wikipédia, "os sindicatos, com a consolidação do stalinismo, acabaram ao fim da década de 1920 sob o controle a ferro-e-fogo do Partido e do Estado pela ação legal e da repressão. O planejamento centralizado acabou aplicado".
Uma desagradável gralha pousou no meu comentário anterior. "Man", em vez de Nan. Os meus pedidos de desculpa pelo erro.
Prezada Nan: Acabo de publicar a resposta ao seu comentário em forma de post, intitulado "Principais Factores do Desemprego dos Professores".
Cordialmente.
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