quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Apontamentos para a compreensão da polémica António Sérgio (1883-1969) vs. Abel Salazar (1889-1946) - II


Conclusão do post de António Mota de Aguiar sobre a polémica entre os dois grandes vultos da cultura portuguesa (na foto Abel Salazar):

O que distingue as posições destes dois homens na sociedade portuguesa de então é que António Sérgio se posiciona como filósofo criacionista e Abel Salazar como agnóstico, neo-positivista, defensor da ciência contra a metafísica.

Já dissemos aqui que António Sérgio foi um homem insubmisso e livre, mas Abel Salazar não o foi menos. Abel Salazar defendeu sempre com firmeza férrea as suas teorias, estruturando o seu ideário "em princípios abertos, em afirmações condicionais, em obstáculos epistemológicos que o revelam como um intelectual de acentuado pendor crítico…" (Norberto Ferreira da Cunha, Génese e Evolução do Ideário de Abel Salazar, Imprensa Nacional Casa da Moeda)

António Sérgio privilegiou o ensaio como forma de comunicação o que, como aqui já escrevi, dificulta a sistematização do seu pensamento. Daí que a obra de António Sérgio, em matérias filosóficas e científicas, ofereça grande discordância.

Magalhães Vilhena, que estudou a obra de Sérgio, atribui um carácter "ideal" à génese do ideário filosófico de António Sérgio, salientando que "o misticismo presente no idealismo sergiano aponta para fontes distintas das científicas".

De resto, várias vezes António Sérgio afirmou que as "ideias-relações-formas-estruturas" existiam fora do espaço e do tempo, o que revela o aspecto criacionista no seu pensamento.

Transcrevo a seguir este pequeno trecho das Cartas de Problemática, § 2, 5.ª Carta (a meio) que António Sérgio nos legou como seu pensamento:

"… o pensamento unitivo do verdadeiro místico (o que afirma a Unidade e a adesão à Unidade, ou aquele íntimo «amor intelectual de Deus», à feição de um Espinosa)…O essencial da filosofia, como a tenho eu entendido, é uma reflexão sobre as actividades espirituais do homem, designando por «espiritual» o pensar des-subjectivado, o pensar des-individualizado, o que tende pois para o absoluto, - tomando consciência de uma des-egocentrização da física que me parece acompanhar uma des-sensibilização da matemática." (…)

Num outro trabalho seu (Considerações sobre o Problema da Cultura), Sérgio diz-nos que:

"O mundo externo, tal como é dado pelas sensações, (…) não existe fora do sujeito pensante"

Carlos Leone (in O Essencial sobre António Sérgio) sintetizou a filosofia de Sérgio em quatro pontos. Saliento aqui o segundo:

"O conhecimento que temos do mundo exterior e, por maioria da razão, do próprio domínio da consciência é uma construção ou representação mental, isto é, todo o conhecimento é actividade mental, ainda que nem toda essa actividade seja consciente ao sujeito."

Nascidos em berços distintos, percorreram caminhos na vida diferentes um do outro, optando por filosofias também diferentes. Enquanto Sérgio se afirmou como criacionista, rebuscando no seu cérebro esquemas intelectuais que postulou como teorias filosóficas, Abel Salazar aderiu ao neo-positivismo, ultrapassando-o mesmo, ao veicular a falência da metafísica. Esta falência constituiria um golpe mortal no pensamento filosófico de Sérgio, um golpe que este não podia aceitar, já que toda a sua filosofia ficaria em causa.

Na década de 40 do século XIX Auguste Comte propôs o positivismo, doutrina filosófica marcada pelo optimismo de que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia iria desembocar numa sociedade de bem-estar generalizada. A doutrina positivista combateu as concepções idealistas e espiritualistas da Natureza, afirmando-se anti-teológica e anti-metafísica. Foi durante estas décadas que se assistiu em Portugal à implantação progressiva da corrente republicana que, adoptando em larga medida com o positivismo, se tornou na corrente filosófica mais influente no seio da intelectualidade portuguesa. Diga-se contudo, que António Sérgio não pertenceu a este movimento, nem tão pouco era afecto à República. “Para mim a Monarquia vale a Republica”, escreveu ele a Raul Proença. Até ao fim da década de 1910 Sérgio manteve uma vida republicana apagada.

No século XX, o positivismo evoluiu para o neo-positivismo fundado pelo Círculo de Viena. Como pilares de importância capital nas reflexões desta corrente filosófica, destacam-se a Teoria da Relatividade, a Mecânica Quântica e a Lógica Matemática. Não é pelo fato de Abel Salazar defender o neo-positivismo que os dois homens estiveram em desacordo, uma vez que o criacionista Leonardo Coimbra foi um importante relativista, defensor portanto de um dos pilares do neo-positivismo.

Tiro como ilação que o que profundamente separa os dois homens não é a problemática da divulgação da ciência, nem tão pouco o neo-positivismo, mas a crença ou não na metafísica. Para Sérgio havia a esperança do advir de um Deus redentor, para Abel Salazar havia… o desconhecido. É claro que, nas primeiras décadas do século XX, estas duas maneiras de ver a existência humana – tão extremadas como eram – implicavam posições sócio-políticas bem acentuadas e bem diferentes, que se alicerçaram nos berços tão diferenciados em que cada um deles nasceu.

António Mota de Aguiar

4 comentários:

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Recentemente, o Professor Rui Baptista, colocou um post no De Rerum Natura com a fotografia do Professor Sebastião e Silva, que considera um daqueles nomes “que por obras valorosas da lei da morte se vão libertando” (Camões) no domínio de uma educação ao serviço da elevação científica, cultural e ética do país.

Professor António Mota de Aguiar, é a Sebastião e Silva que recorro, pois creio que encontro aqui palavras que podem também, adensar, na compreensão daquilo que separa António Sérgio e Abel Salazar.

No Guia para Utilização do Compendio de Matemática Vol.2 e 3, diz-nos, Sebastião e Silva “… são dignas de reflexão as seguintes palavras de Guido Castelnuovo, proferidas em 1912, num congresso de professores em Génova:

“Nós ensinamos a desconfiar da aproximação, que é realidade, para adorar o ídolo de uma perfeição, que é ilusória. Nós representamos o universo como um edifício, cujas linhas têm perfeição geométrica, e nos parecem desfiguradas e enevoadas, apenas por causa da imprecisão dos nossos sentidos, quando, pelo contrário, deveríamos incitar os alunos a reconhecerem que as formas incertas reveladas pelos sentidos constituem a única realidade acessível – realidade que, para satisfazer certas exigências do nosso espírito, substituímos por uma precisão ideal […]. Não há melhor maneira de alcançar o objectivo [do ensino cientifico] do que conjugar a cada passo a teoria com a experiencia, a ciência com a aplicação […]”.

Esta atitude pode parecer anti-racionalista; na verdade. Só o é na medida em que se opõe a um platonismo ultrapassado”

Cordialmente,

Luís disse...

Tudo isto é tão pobre de compreensão da Filosofia... Breves exemplos:


"De resto, várias vezes António Sérgio afirmou que as "ideias-relações-formas-estruturas" existiam fora do espaço e do tempo, o que evidencia o aspecto criacionista no seu pensamento."

O autor confunde criacionismo com idealismo... em todas as suas múltiplas formas. Bravo! E adivinho que confunde espiritualismo com Filosofia. Ou seja, confundo o que é oposto. Bravo, uma vez mais!

"Como pilares de importância capital nas reflexões desta corrente filosófica, destacam-se a Teoria da Relatividade, a Mecânica Quântica"

Que exista quem defende a importância do neo-potivismo na formulação da Mecânica Quântica, ainda vá. Agora afirmar que a Mecânica Quântica é um dos pilares do neo-positivismo, para além de ser um caso onde o efeito precederia a causa, é disparatado filosoficamente. Para além de não saber em que consiste o neo-positivismo, adivinho que este autor não está a par da distinção entre teoria quântica antiga e Mecânica Quântica.

"Tiro como ilação que o que profundamente separa os dois homens não é a problemática da divulgação da ciência, nem tão pouco o neo-positivismo, mas a crença ou não na metafísica. Para Sérgio a esperança do advir de um Deus redentor, para Abel Salazar havia… o desconhecido"


"O mundo externo, tal como é dado pelas sensações, (…) não existe fora do sujeito pensante"

Até os neo-positivistas estão de acordo com esta afirmação. Aliás, toda a Filosofia e grande parte da Ciência estará de acordo neste ponto.

Portanto, afinal o neo-positismo não é relevante aqui para o caso. O relevante, segundo este tipo (custa-me chamar-lhe autor) é que Sérgio cria num ser divino e Abel Salazar sabe lá Deus em que acreditava (na positividade do espírito - que é como surge em Comte - científico?). A relação entre a crença em Deus e a crença (?) na Metafísica (o que será isso da crença na Metafísica?) é só mesmo para quem não está nada a perceber do que é a Metafísica.

Já agora, dois apontamentos e uma sugestão. O apontamentos: o neo-positivismo também contém um conjunto de posições e teses de cariz Metafísica. É uma pena mas é algo bem conhecido. Em segundo lugar, a Metafísica está bem, recomenda-se e as investidas para dar-lhe fim são quase tão antigas quanto a própria Filosofia.

Por fim, uma sugestão: para começar, vá ler os livros de Aristóteles que foram organizados sob o título de Metafísica. Olhe que só lhe fará muito bem.

Fernando de Leiria disse...

Ó Luis, no que respeita os teus argumentos tens aqui a resposta:

"Traditionally these are questions for philosophy, but philosophy is dead. Philosophy has not kept up with modern developments in science, particularly physics."

"The Grand Design", Stephen Hawking

Por isso leva lá os teus regougos para Leiria!

Luís disse...

Caro Fernando de reguengos de Leiria:

Agradeço-lhe sinceramente o seu comentário. Pois no mesmo movimento vulgar de invocar uma pretensa autoridade conseguiu - e isso é de génio - mostrar que essa autoridade é nula para o caso. Aliás, de tão ridicula que é acho mesmo que deveriam fazer T-Shirts com esta frase

"philosophy is dead" by Stephen Hawking


Nunca havia encontrado uma frase que tão claramente mostraasse o calibre intelecutal do Stephen Hawking.

Fico-lhe imensamente grato por me ter dado a conhecer tão risível citação.

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