terça-feira, 28 de junho de 2011
Acasos felizes – das lágrimas há noventa anos ao sorriso sete anos depois...
Post convidado da autoria de Alexandra Nobre, da Universidade do Minho:
“… às vezes encontramos aquilo de que não andamos à procura ... a natureza faz a penicilina, eu só a descobri...” Alexander Fleming
Alexander Fleming (1881-1955) foi um bacteriologista escocês amplamente conhecido pela descoberta do primeiro antibiótico, a penicilina, razão que lhe valeu o título de Cavaleiro em 1944 e pelo qual foi galardoado com o prémio Nobel da Medicina em 1945 conjuntamente com Florey e Chain, ligados à implementação da produção industrial. Aliás, este é o marco que abre as portas à engenharia de bioprocessos já que a penicilina constitui o primeiro metabolito cuja produção é feita em larga escala (nos EUA convém dizer, afinal a Europa estava em guerra). Esta descoberta, indubitavelmente uma das mais importantes da história da medicina, está envolvida numa aura de acaso e imponderabilidade que não desmerece a sagacidade e argúcia de Fleming e que se encontra bem patente nestas suas palavras “nunca negligenciem um acontecimento ou aspecto só porque é extraordinário e inesperado”. Tudo aconteceu em 1928 quando Fleming estudava culturas bacterianas de Staphylococcus aureus isoladas de feridas humanas infectadas. O seu grande mérito residiu, primeiro em não ignorar um bolor azul-esverdeado mais tarde identificado como Penicillium notatum que acidentalmente se desenvolveu nessas caixas de Petri e à volta do qual se formou uma zona circular livre de bactérias e depois, por não ter desistido do seu propósito ao ser continua e assertivamente subestimado pelos seus colegas desde a altura em que, em lágrimas, descobriu a lisozima, sete anos antes. A substância activa libertada pelo fungo e por razões óbvias, denominada penicilina, não trata todas as infecções, apresenta constrangimentos de administração dada a sua sensibilidade a pH ácido, é mesmo fatal para muitas pessoas alérgicas; no entanto, já curou milhões de doentes em todo o mundo e é, ainda hoje, considerada a maior contribuição da ciência médica para a humanidade.
E pronto. Por aqui ficávamos e o essencial estava dito. Mas “...o essencial é invisível aos olhos...” e implica ter que ver com o coração, que é como quem diz, perceber o que está por trás do que se vê, na sombra dos aparentemente grandes feitos. E por trás está um homem, ou melhor, um menino com olhos, com coração e também com uma pontaria danada para ir aos pássaros. E é esta pontaria que o faz somar pontos e o aponta para a nobreza do Prémio Nobel em meados do século XX. Como? A história começa assim...
Era uma vez um menino chamado Alexander Fleming que nasceu em Ayrshire, num ambiente rural, criado em atmosfera de parcimónia no seio de uma família numerosa, sendo o sétimo de oito irmãos e meios-irmãos com quem passava grande parte do tempo saltando regatos e correndo pelos campos com uma fisga no bolso. Quando com 20 anos foi para Londres estudar, já a sua pontaria tinha aperfeiçoado na razão directa das aves que tinha aviado, que é como quem diz, dos pássaros que por sua causa tinham “ido à vida”. E sabe Deus quantos eram! Habituado a fazer contas e a pesar as despesas, não lhe pareceu má ideia dar ouvidos ao conselho do irmão mais velho e seguir-lhe os passos, passos estes que o levaram a cursar medicina no Hospital St. Mary. Um feliz acaso que veio a ditar uma boa fortuna...
Na Universidade segue o seu percurso de modo escorreito e brilhante-quanto-baste em termos académicos e esbanjando brilhantismo em termos desportivos, já que a respectiva equipa de tiro nunca mais perdeu uma prova entre pares desde que Fleming, exímio atirador, passou a fazer parte dela. Após conclusão da especialidade de cirurgia e não tendo lugar como clínico no mesmo hospital, adivinhava-se já a procura de emprego por outros lados quando foi convidado pelo director do laboratório de Bacteriologia e, simultaneamente chefe da equipa desportiva supracitada, não de modo desinteressado convenhamos, a permanecer como investigador entre microscópios, bicos de Bunsen e placas de Petri. Mais um feliz acaso na vida de Fleming...
Mais tarde, enquanto cirurgião militar em hospitais de campanha durante a Primeira Grande Guerra, Fleming inova uma série de tratamentos e confirma a urgência em anti-sépticos, por um lado inócuos do ponto de vista histológico e imunitário ao contrário dos que se conheciam da altura, e por outro, tão eficientes que evitassem a infecção das feridas e a sua evolução em gangrena. Na verdade, era impressionante como os estilhaços das granadas podiam decepar membros e dilacerar tecidos não levando a vida dos soldados atingidos, mas, em contrapartida, esta era incapaz de resistir à acção das minúsculas bactérias que dominavam a situação horas ou dias depois. Em 1921, exactamente 40 anos após ter vertido as suas primeiras, Fleming detecta nas lágrimas (diz-se que fruto de um espirro incontrolado, mas já me parece acaso a mais) a presença de uma proteína com propriedades anti-bacterianas a que deu o nome de lisozima e que lhe valeu a publicação de diversos trabalhos. Esta enzima capaz de lisar a parede bacteriana, está presente em ambientes tão diversos como os vários fluidos corporais e a clara de ovo e constitui uma estratégia de defesa dos organismos a ataques externos. No entanto, não há bela sem senão e a par do carácter quase ubíquo, a sua especificidade é baixa e a eficiência diminuta. Não se constituía portanto como alternativa viável aos anti-sépticos conhecidos...
Acredito que Fleming tenha pautado a sua vida por lemas como “cada acaso não ignorado constitui uma nova oportunidade de sucesso” ou “nada é por acaso” e foram eles que, mesmo após a descoberta da penicilina (saltamos esta parte, o texto vai longo e todos sabemos como foi) ainda hoje o antibiótico mais usado mundialmente, o levaram a procurar incessantemente novas substâncias, a escrever inúmeros artigos científicos de referência em áreas como bacteriologia, imunologia, quimioterapia e a doar qualquer prémio obtido em prol da investigação médica.
Fleming foi membro do Royal College of Surgeons (1909) e do Royal College of Physicians (1944), foi distinguido com inúmeros prémios como a Medalha de Mérito de USA (1947) e a Grande Cruz de Afonso X de Espanha (1948) e trabalhou sempre no mesmo laboratório do Hospital St. Mary, hoje Museu Fleming, até à sua morte repentina de ataque cardíaco em 1955, sendo enterrado como herói nacional na cripta da Catedral de São Paulo, em Londres. Genial! Não foi por acaso...
Alexandra Nobre
Foto amavelmente cedida por Kevin Brown, curador do Alexander Fleming Laboratory Museum e autor do livro “Penicillin Man: Alexander Fleming and the Antibiotic Revolution”
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7 comentários:
Que jeito tem a (Doutora) Alexandra Nobre para escrever.
Gostei deste artigo. Vou guardá-lo para usar em aulas minhas. Já agora, para tudo ficar na perfeição, bem que os nomes científicos "Staphylococcus aureus" e "Penicillium notatum" podiam estar entre aspas, em itálico ou sublinhados, como mandam as regras.
É que eu estou sempre a "moer a paciência" aos meus alunos com estas coisas. E por via disso...
Parabéns, senhora escritora.
E insista, por favor.
Que há muitos a desejar. E a precisar.
Caro José Batista da Ascensão, obrigado pelos reparos que se devem a falhas de edição. Já se encontram corrigidos.
Em divulgação científica não há muitos a escrever assim em português: "...exactamente 40 anos após ter vertido as suas primeiras, Fleming detecta nas lágrimas [...] lisozima...".
Lindo!
Rui Oliveira
Obrigada Alexandra por nos dares a conhecer, de forma tão elegante, um puco mais sobre Fleming. Parece que de facto há muitos acasos felizes na sua obra. No entanto, já dizia Pasteur "Os acasos só favorecem os espíritos preparados."
Célia Pais
"Le hasard favorise les esprits preparés"! Uma das minhas citações favoritas em ciência. O pessoal acha que o Newton teve uma iluminação quando estava a fazer a sesta debaixo de uma macieira. Newsflash: ele "chegou ao seu sistema do Mundo pensando arduamente dia e noite" durante a paraga de 1666, em que Cambridge encerrou devido à praga e não havia aulas, e a Maçã de Newton é uma história tão apócrifa como a do Eden. Obrigado Profª Alexandra. Queremos mais!
Desta vez, de quem foi a "tesourada"?! JCN
Outra descoberta muito interessante, em meados do séc. XX: tradicionalmente, os ciganos do Alentejo demolhavam pão em leite e deixavam desenvolver um bolor, para depois aplicarem esse pão em pachos nas feridas... Verificou-se que esse bolor era precisamente o "Penicillium notatum" e que essa "mezinha" tinha passado de geração em geração, desde tempos imemoriais, pela sua notável eficácia... Não é por acaso que a WHO/OMS tem um importante departamento dedicado ao estudo das Medicinas Tradicionais... :)
Abraço a ambos, Alexandra e Jorge!
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