terça-feira, 14 de junho de 2011
O caso Escherichia coli
Minha crónica semanal publicada no "Diário de Coimbra".
Uma determinada descoberta científica é válida se for reprodutível e verificável através da experiência pela comunidade internacional de cientistas.
O que é que significa neste contexto validar? Significa que os resultados encontrados podem ser obtidos e confirmados por qualquer investigador ou cientista ao repetir o procedimento experimental efectuado em primeiro lugar pelos que alegam a sua descoberta. Repetidos os mesmos passos experimentais nas mesmas condições qualquer um poderá obter os mesmos resultados. Esta confirmação experimental inter-laboratorial, efectuada por cientistas diferentes em lugares diferentes, garante a reprodutibilidade dos resultados e logo a validação e aceitação dos mesmos. Isto confere segurança, credibilidade e “universalidade” à descoberta.
Mas isto ainda não é suficiente. A descoberta tem de ser partilhada, divulgada, para que a ela tenham acesso todos os que dela tenham necessidade ou todos os que sobre ela tenham curiosidade. E neste processo da validação é fundamental a sua publicação.
A publicação em revistas científicas dos resultados conjuntamente com a descrição das condições laboratoriais e experimentais em que foram obtidos está sujeita à validação por especialistas da área em causa, escolhidos pelos editores e tratados de forma anónima para tentar garantir a imparcialidade da aceitação ou sua rejeição. É a chamada revisão ou arbitragem pelos pares. Em geral, quanto maior for a exigência nesta arbitragem e verificação, maior será a segurança de que os resultados publicados são reprodutíveis e credíveis. Este procedimento é também a razão do prestígio de revistas científicas como a Nature ou a Science, mas seguramente o garante da qualidade científica da comunicação de conhecimento científico.
O sistema não é, porém, infalível.
O sistema de verificação e validação das descobertas e, portanto, da produção de conhecimento científico, tendo passado ao longo do tempo por várias circunstâncias e modelos, continua actualmente a ser alvo de debate acesso e contínuo, exactamente sobre a sua eficácia no rastreio e identificação de fraudes, da falta de honestidade intelectual, da probidade intelectual dos investigadores, do rigor nos resultados obtidos. Isto porque, apesar de todos os procedimentos indicados, que não são de censura mas sim de verificação, a história regista vários artigos fraudulentos publicados em revistas mesmo as mais prestigiadas. O sistema não é perfeito. (Altura da eterna exclamação interrogativa: haverá sistemas humanos perfeitos?!).
Se os cientistas insistem em referir as fontes que sustentam uma dada afirmação, não o fazem para tornar difícil o acesso à informação que pretendem transmitir, mas sim para sustentar a sua credibilidade. A diminuta literacia científica e de espírito crítico da população em geral permite que determinadas afirmações não sustentadas por quaisquer provas ou referências de credibilidade perturbem as sociedades do conhecimento. O caso actual sobre a identificação da fonte inicial de contaminação da bactéria Escherichia coli é disso um bom exemplo.
A questão não passa tanto pela discussão sobre a importância do aumento de um conhecimento geral sobre quais as bactérias que coabitam no nosso corpo, quais as patogénicas e porque é que o são, quais os mecanismos e meios de contaminação, etc. Este conhecimento é importante até para percebermos a higienização verificada ao longo do século XX e que permitiu a diminuição da mortalidade infantil, do tempo pós-operatório, a maior longevidade, etc. Mas não retira o lugar da "ferramenta" reflexiva que o nosso cérebro é para sermos bons receptores da informação que nos é transmitida.
A questão, no meu entender, passa pelo aumento de uma atitude crítica sobre a informação que recebemos sem qualquer interacção ou diálogo e que nos leva a reagir, por vezes em acto contínuo. de forma precipitada. Uma maior literacia científica cívica não passa tanto por um saber enciclopédico sobre quase tudo na população em geral, mas mais por uma atitude que valoriza o rigor na informação e a credibilidade das fontes. Estas têm de ser verificáveis para poderem gerar credibilidade. Com uma atitude crítica não só poderíamos aspirar a uma melhor saúde pública mas também a uma melhor economia e uma maior transparência na regulação dos mercados alimentares, para não fugir ao exemplo presente.
Estarei a exagerar? O caso E. coli demonstra exactamente que não.
(Continua - porque o caso ainda não acabou e carece ainda de muita verificação científica).
António Piedade
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4 comentários:
Não sejamos inocentes!!!
Alguns de nós sabem (e sofrem) o quanto a ciência está avançada para lá daquilo que é do domínio público.
Literacia científica ajuda com certeza mas não é a única questão envolvida. Há os interesses económicos que geram (des)informação conforme lhes convém porque há muito em jogo, inclusivé a própria subsistência de alguns inocentes que se calhar da próxima vez serão os primeiros a lançar boatos noutra qualquer direcção.
Talvez precisemos regulação sobre como se emitem avisos sobre produtos a evitar nestas situações. Como existe para as sondagens eleitorais (também não são perfeitas - nas últimas eleições fizeram abertura de telejornais resultados de sondagens apenas com 150 respostas válidas e os contactos foram exclusivamente por telefone fixo que muita gente não tem).
Concordo plenamente que o aumento da cultura científica poderá evitar reacções desproporcionadas das pessoas face a casos destes; no entanto, a grande fatia da culpa continua a ser das autoridades alemãs, que não agiram com a devida responsabilidade.
Até parece que a humanidade deveria substimar ao que a natureza lhe é possível contornar, inclusive é admirável à um cientista como Sr. António Piedade indignar-se com esta situação. Partindo do contexto de a a ciência hoje é como sempre o fora, e para qualquer pesquisa parte do zero ao que tudo seja possível, é quase um princípio de humildade...
Então nada mais do que o distancimento as vezes possa trazer este sentido de impotência, ao que seja natural ou, desproporcional por conhecimentos já pré-estabelecidos.
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