segunda-feira, 8 de novembro de 2010
AS PALAVRAS QUE MARIA DE LOURDES NOS DEU
Texto convidado do ensaísta Eugénio Lisboa, que já tem colaborado neste blogue e que promete continuar a colaborar. Aqui recenseia um livro de Maria de Lourdes Pintassilgo que saiu há alguns anos na editora Livros Horizonte:
Embora a inteligência, a cultura, a energia e a coragem de Maria de Lourdes Pintassilgo me fossem, de há muito, conhecidas (fui seu colega no Instituto Superior Técnico e éramos vizinhos, ao pé da Fonte Luminosa), confesso que leitura do seu livro póstumo, Palavras Dadas, me fez uma funda impressão: pela ampla abertura e energia do pensamento, pela insaciável fome de conhecimento que revela nas áreas mais diversas das ciências e das humanidades, pelo testemunho de um empenho vigoroso em causas meritórias, mas sem o gosto insalubre das “certezas” perigosas e ameaçadoras. No prefácio que escrevera para este livro, Maria de Lourdes deixou-nos esta coisa luminosa, que só alguém fecundado pelo verdadeiro espírito de investigação saberia formular:
“Resposta, mesmo resposta, não há! Todos os meus “eus” são interrogativos, tanto mais quanto a afirmação é esperada e a decisão se impõe. Neles, o princípio da incerteza coexiste com a procura einsteiniana de uma grande verdade.”
O agnóstico Bertrand Russell, também ele homem de causas, de coragem e de sacrifícios, estaria aqui de acordo com a católica Maria de Lourdes Pintassilgo: os extremos tocam-se e como é belo quando isso acontece!
Espírito interrogativo, de mais perguntar que responder, Maria de Lourdes pressentiria talvez a alguma verdade que pode entrever-se nas palavras de Saint-Exupéry: “A verdade não é aquilo que é demonstrável, é aquilo que é inelutável.” A possibilidade de um mundo melhor e mais justo para todos terá parecido à autora de Palavras Dadas uma verdade inelutável.; com a alegre e decidida energia que se lhe conhecia terá até porventura achado que o inelutável era afinal demonstrável – e toda a sua vida que, como ela tão bem sublinha, foi uma luta empenhada mas não uma carreira, terá sido um longo percurso que se foi aproximando assintoticamente da almejada demonstração. Porque não? Afinal bastava ir por aí fora perguntando, insaciavelmente. No texto dedicado a Alberto Martins (p. 20) di-lo, com todas as letras: “Desde muito cedo intuíra que aprender era perguntar.”
Ler ou ouvir a Maria de Lourdes tornava-nos exigentes, sobretudo para com nós próprios. Por isso tenho aqui uma confissão a fazer: confissão que nasceu de ter querido interrogar-me, na linha de rigor com que nos seduz o discurso inesquecível da minha ex-colega do Instituto Superior Técnico. Embora fascinado pelo espírito pertinazmente inquisitivo da colega com que, diariamente, subia e descia a alameda Afonso Henriques, pelo seu entusiasmo, pela sua curiosidade infatigável, pela força e alegria com que queria saber mais, embora seduzido (mas um pouco inibido), alimentei durante muito tempo, algumas reservas ou, se preferirem, reticências... ou preconceitos, em relação à mulher que seria a nossa primeira Primeira Ministra. Por duas principais razões: a primeira, tê-la conhecido, quando fomos colegas do Técnico, ligada a uma Juventude Universitária Católica que, nessa altura, não era um modelo de instituição progressista; depois, ter sabido que, logo a seguir ao 25 de Abril, tentara justificar ou “compreender” o exercício de alguma censura em países africanos de recente independência: achei que, à representante de um país que acabara de emergir de quase 50 anos de palavra censurada, não ficava bem tentar compreender a censura de outros. Tudo isto me confundiu um pouco e, embora não anulasse a admiração que por ela sempre tive – admiração acrescida de algum fascínio -, senti-me um pouco abalado. Mas a verdade é que fui também compreendendo que havia, da minha parte, um certo teor de irredutibilidade, ao sublinhar demais, dentro de mim, aspectos porventura efémeros e ultrapassados por um longo e vigoroso percurso de coragem, audácia e invulgar empenhamento. E também de incompreensões, de ostracismos e de mesquinhez política e outra. Portugal tem sido sempre um país que maltrata alguns dos seus melhores filhos e que sobretudo não perdoa com facilidade o talento reconhecido lá fora e tido como afrontoso, cá dentro. A Maria de Lourdes que eu próprio – embora moderada e discretamente – talvez não tenha julgado com justeza nem com justiça, pelo menos até certa altura, era um ser de convicções mas não de dogma: era ela quem diria, já próximo do fim, que “a vida tornou-se poliédrica e sem verdades absolutas.” Ter convicções profundas – e não ter medo da acção – mas não se acreditar em “verdades absolutas” põe uma dificuldade de difícil ou impossível solução. Bertrand Russell, também campeão melhorista, como disse, achou que o máximo a que se podia chegar era a isto (ver Bertrand Russell Speaks His Mind, London, 1960):
“Creio que a espécie de filosofia em que acredito é útil desta maneira: permite às pessoas que actuem com vigor, mesmo quando não estão absolutamente certas de que se trata da acção apropriada. Penso que ninguém deve estar certo de nada. Se estivermos certos de alguma coisa, estaremos certamente errados, porque nada merece certezas, e portanto devemos sempre manter todas as nossas crenças com um certo elemento de dúvida e, por outro lado, devemos ser capazes de actuar vigorosamente, apesar dessas dúvidas.”
É, em suma, a existência da dúvida que assegurará ao homem (ou à mulher) de acção a possibilidade, se necessária, do recuo ou da mudança de rota – o não cair em certezas fundamentalistas. Creio que foi também a isto que chegou, por si própria, Maria de Lourdes Pintassilgo: aquecia-nos, quando a líamos ou com ela falávamos, todo o vigor caloroso de convicções profundas e actuantes, mas nunca o fundamentalismo intolerante, que tanto mal tem feito ao mundo: porque o seu calor originava-se num ser vigoroso mas inteligente, eternamente curioso e gostosamente capaz de mudar de curso, se defrontasse argumentos novos que a isso o persuadissem. Quando nos cruzamos na vida com pessoas assim, acontece-nos um pouco o que o místico escritor indiano, Rabindranath Tagore, contou ter-lhe acontecido um dia, ao conversar, num jardim de Cambridge, com o lógico matemático, Bertrand Russell: disse, depois desse encontro, ter alcançado “um estado de consciência mais elevado.” O mesmo se passou comigo, ao ler as belas Palavras Dadas, de Maria de Lourdes Pintassilgo. Um estado de consciência mais elevado... Que melhor legado nos poderia ela ter deixado?
Eugénio Lisboa
- Palavras Dadas de Maria de Lourdes Pintasilgo, coord. de Isabel Allegro de Magalhães, Lisboa, Livros Horizonte, 2005
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4 comentários:
Palavras de uma Mulher de palavra! JCN
Sim. Mulher de palavra. De pensamento. De acção. E de coração.
Terá sido por isso que alguns dos nossos mais proeminentes políticos a trataram (tão) mal?
É de presumir. A verticalidade não se coaduna com a horizontalidade dos batráquios. Sem ofensa para estes pobres bichos... que bem gostariam de não sê-lo, a julgar pelos seus grandes olhos devassando as alturas. JCN
ANÓNIMA - ' ...por uma ecologia do coração ' - lembro-me de lhe ter ouvido esta expressão e gostava muito de reler / recuperar o contexto. Alguém sabe onde?
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