"Temos como futuro o esquecimento" - José Luis Borges.
Num comentário ao post “Uma carta de Eugénio Lisboa enviada à direcção da ‘Árvore’ ” (24/07/2010)”, foi escrito por um anónimo: "A obra literária de Saramago (sem discutir, sequer, o seu valor) não deve ser divorciada dos seus deveres de cidadão" diz alguém acima. Mas já se deve divorciar no caso de José Hermano Saraiva que merece todas as homenagens por ser um bom comunicador!! Vá a gente entender a mente humana”.
Por ser eu o autor deste breve texto, embora não sentindo a necessidade de me sujeitar a uma sessão de psicanálise, nem sequer estar para aí virado, para desvendar o que me vai na mente, basta-me esclarecer a minha posição. E, para isso, nada melhor do que transcrever um artigo de opinião que escrevi no Diário de Coimbra, em 4 de Agosto de 2005, intitulado “O Historiador José Hermano Saraiva”:
“Os desvairados impropérios dirigidos ao Prof. José Hermano Saraiva pelo senhor Acácio Barradas, nas colunas de 'Cartas ao Director' (Público, 26/Julho/2005), espelham bem a sentença de Buffon: “O estilo é o próprio homem!”. E toda essa raiva , porquê? Pelo frisson que lhe parece ter causado a reportagem, datada de 24/Julho/2005, da autoria do jornalista do Público, Adelino Gomes, com o testemunho de personalidades (de entre elas, José Hermano Saraiva) dos mais variados espectros políticos sobre a ordem do falecido Prof. Rui Grácio, à época secretário de Estado de Orientação Pedagógica, para que fossem destruídos pelo fogo livros de índole “fascista” (ao tempo, revolucionários houve que tiveram os Lusíadas nesse rol) que fazem parte de um espólio secular de um país em que o mau uso da liberdade passou a ser desculpa para todos os desmandos.
Num momento pouco agradável de uma vida vítima de torpeza, apraz-me a oportunidade que me é dada de dizer que, em fins da década de 40, tive a honra de ser aluno de liceu do Prof. José Hermano Saraiva. E dele me recordo a dar as aulas da disciplina de História com o mesmo entusiasmo e aplauso que desperta na legião de pessoas que o escutam e o vêem nos seus programas televisivos por se tratar de um pedagogo que em nada se assemelha aos 'pedabobos' a quem os ventos da revolução trouxeram uma mudança radical nas suas 'convicções políticas anteriores', e que pululam por esse Portugal fora arrastando-o para o lugar de lanterna vermelha em estudos comparativos sobre Educação, relativamente a outros países europeus! E que bem ele utilizava a pedagogia de fazer para aprender: quando das matérias referentes aos descobrimentos, passava como trabalho de casa, a feitura de mapas a eles referentes bem como a construção – em madeira de balsa talhada a canivete e as velas em pano com a Cruz de Cristo pintadas - das caravelas de antanho, sendo atribuídas classificações que contavam para a nota de fim de período.
Ma a minha discordância maior reside a montante do ataque que lhe é desferido na supracitada carta, e que eu abomino com todas as minhas forças, na vã tentativa de apoucar os sagrados laços de família, pela evocação despudorada do nome de seu irmão, António José Saraiva (1917-1993), segundo Acácio Barradas, aqui com verdade, 'um dos portugueses mais perseguidos por questões políticas durante o regime do Estado Novo'. Vejamos o que, a este propósito, escreve Maria Ana Sequeira de Medeiros, nos seus dados biográficos: 'Expulso do ensino superior em 1943, na sequência de um processo disciplinar motivado por um desentendimento com Vitorino Nemésio, António José Saraiva ingressou no ensino liceal' ('António José Saraiva e Óscar Lopes: Correspondência', Gradiva, 2005).
A deturpação dos motivos desta expulsão logo é aproveitada por certa esquerda – que transforma deuses em demónios e demónios em deuses, a seu bel-prazer e ao sabor das suas conveniências – para lhe atribuir um cariz político. Sejamos honestos: reporta-se esta referência feita a António José Saraiva só a parte da vida de uma proeminente figura do mundo da Cultura. E a outra? Quando, 'verbis gratia', com a sabedoria, a reflexão e os desenganos que a idade traz à vida, denuncia os crimes cometidos pela ex-União Soviética nas estepes geladas da Sibéria? Ou, ainda, quando se manifesta contra a forma como se processou a 'descolonização exemplar em que os militares de Abril deixaram as colónias como pardais, largando armas e calçado, abandonado os portugueses e africanos que confiaram neles?'
Por último, esta é uma sentida e singela homenagem (que muito peca por tardia) de um antigo aluno que lamenta que a condição de octogenário do seu antigo professor, que dedicou grande parte de uma vida ao estudo e divulgação escrita e oral da historiografia – 'não só pelo achado de documentos novos , mas também pelo surto de ideias fecundas', como defendeu António Sérgio - , e à sua divulgação popular lhe não permita já a destreza física para dar umas boas bengaladas nos costados de quem bem as merecia por pôr em causa, como fez, o estatuto profissional de historiador de José Hermano Saraiva!”
Quer se queira ou não, há duas coisas que distinguem estes dois "josés": um, José Saramago, foi laureado com o Prémio Nobel, outro, José Hermano Saraiva, não; José Hermano Saraiva, que conste, e muito menos que se documente, não saneou professores quando ministro "com a faca e o queijo na mão", José Saramago (1975), na direcção do “Diário de Notícias”, saneou 30 jornalistas com a seguinte justificação: “Quem não está com a Revolução, é melhor não estar no Diário de Notícias”.
Razão bastante para eu não precisar de separar a obra de José Hermano Saraiva (sem discutir, sequer, o seu valor) dos seus deveres de cidadão que se não compagina com o oportunismo de renegar um passado para se juntar aos detentores de um novo poder, como sucedeu com tantos figurões que andam para aí travestidos de progressistas e que muito gostariam de ver ressuscitado "o lápis azul" dos coronéis da Censura do Estado Novo.
17 comentários:
Excelente texto, Caro Rui Baptista.
Completamente de acordo acerca do Prof. José Hermano Saraiva.
Já sobre José Saramago e sobre o velho mito acerca do famoso saneamento ( que não teve nada de básico ) ver p.f. o livro recentemente publicado pela Guerra e Paz/Edições Pluma de João Marques Lopes "Biografia José Saramago", Cap.5 " O Diário de Noticias ao serviço da classe operária e do socialismo (1974-1975) Pag. 53.
José Hermano Saraiva é tanto historiador como eu sou padre ou médico.
Só quem não percebe nada de historiografia e do que é a verdadeira histórica com fundamentos científicos pode afirmar tal coisa.
A história cientifica começou nos anos 30, cá chegou apenas após o 25 de Abril e não José Hermano Saraiva não faz parte dessa geração.
É um bom comunicador e contador de histórias, apenas isso.
PROF. JOSÉ HERMANO SARAIVA
Gosto de ouvi-lo, Inquestionavelmente.
Gosto do seu discurso literário
que tonifica o nosso imaginário,
fazendo-se entender de toda a gente.
Encanta-me o seu modo diferente
de evocar o percurso extraordinário
do nosso povo pelo mundo vário
onde hoje ainda a sua acção se sente.
Tem uma forma de falar da história
que nos fascina pela sua prosa
da mais directa e límpida oratória.
Como em contrapartida é odiosa
a pesporrência, nos televisores,
de certos presumidos "professores"!
JOÃO DE CASTRO NUNES
A moralidade hoje é esta: se é bom comunicador, se é historiador medíocre, se se dava bem com o salazarismo, se queria ver o marxismo tratado pela PIDE, merece homenagem pois é bom comunicador e os homenageantes não são sectários esquecem o resto.
Mas se é um intelectual ou artista de craveira mas andou pelo marxismo, não se pode esquecer que não defendeu a liberdade, logo prestar-lhe homenagem é estar contra a liberdade.
JOSÉ SARAMAGO
Pelo que à alma humana diz respeito,
há nódoas por tal forma resistentes
que não existem, creio, detergentes
que as limpem sem deixar qualquer defeito.
Às faltas de carácter me refiro
entre outras manchas de índole moral
que fazem deste mundo um lodaçal
envenenando os ares que respiro.
As agressões à dignidade humana,
ao sentimento pátrio, à liberdade,
procedem sempre de uma mente insana.
Prémio não há que lave a sujidade
de quem a crença alheia escarneceu
em tudo quanto disse ou escreveu!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Anónimo (26 de Julho, 11:57):
A questão não está em ter andado (ou continuar mesmo a andar) pelo marxismo. A questão está, portanto, na forma como se fez ou faz esse percurso. Como diferente é não se ser um paladino da liberdade ou atentar-se contra o direito sagrado de expressão mandando para o desemprego jornalistas que não alinhavam pelo impérvio critério de liberdade cumprido com o desvelo dos fanáticos.
Para abreviar razões, embora a procissão ainda possa estar no adro, “that is the question!”
Caro Professor João de Castro Nunes:
Li com agrado os seus versos.
A poesia tem uma maneira sublime de dizer as coisas que a prosa da polémica não alcança. Talvez por não ser capaz de alinhavar uma simples quadra ou mesmo aquela poesia moderna (ou pós-moderna?) que se escreve "em prosa" (dir-me-á se estou a dizer um disparate) vou optando pela polémica na medida do meu fraco engenho. Como diz o povo, "quem faz o que pode, a mais não é obrigado". Ou deve ser!
Cumprimentos cordiais.
Anónimo (26 de Julho, 02:30):
Acabo de publicar um post, "Ainda o Historiador José Hermano Saraiva", em resposta a este seu comentário.
Ainda sobre a grafia do apelido Mattoso com duplo "t", recordo o episódio ocorrido entre José Relvas e o seu amigo Sacadura Botte, a quem, escrevendo um dia, pôs no sobrescrito Bote em vez de Botte, apressando-se este a lembrar a José Relvas que Botte se escrevia com "t" dobrado. Na próxima missiva, que não se fez esperar, José Relvas escreveu Bottte com três "t", ou seja, em triplicado, não fosse perder-se um pelo caminho. Há quem também, não se contentando com duas bossas, escreva Camelllo em vez de Camello, apelido muito frequente na região do aristocrático Sacadura Botte. JCN
Hoje em dia, na era da informática, uma letra a mais ou a menos num apelido faz toda a diferença. Uma das minha filhas estava no último ano do curso de Economia. Afadigada, em vésperas de exame, pediu-me para ir à faculdade marcar um desses exames.
O funcionário que me atendeu declarou-me peremptoriamente que o nome dela não constava da lista de alunos. Insisti, e ele nada! Até que, de repente, me lembrei que um dos seus apelidos tinha duplos "ll". Dito e feito! Em nova busca lá apareceu o seu apelido e o exame foi marcado.
Em seu tempo, Camilo escreveu: "Pode-se asnear nos tratamentos, mas na gramática gira mais fino" Em nosso tempo, de servidão à informática, eu quase diria que na gramática se pode asnear (não muito à vontade), mas nos nomes gira mais fino.” Como reconheceu o próprio Cícero, mudam-se os tempos, mudam-se os costumes. O que era tido ontem como pedantismo , hoje pode deixar de o ser!
Tudo muito certo, meu caro Dr. Rui Baptista: só que escrever Camello com duplo "ll" não passa de uma camelice! Não acha? JCN
Meu Caro Professor:
"Vade retro Satanas!" O apelido da minha filha, que referi, não é Camello. Se fosse, eu não faria referência ao facto. Não acha?
Meu caro Dr. Rui Baptista:
Não ponha na minha boca aquilo que eu não disse nem pela cabeça me passou. Não acha que fez do meu texto uma leitura extrapolada? De resto, nem todas as consoantes dobradas... são sintoma de camelice. Há-as que resultam de legítimas tradições familiares, o que não deve ser o caso de Mattoso, que do ponto de vista linguístico nada tem a aboná-lo. Bizantinices! JCN
Meu Caro Professor JCN:
Sob minha palavra, reconhecendo a elegância com que sempre me tem tratado (e a que sempre tenho pretendido corresponder), nunca tomaria o seu comentário como uma indelicadeza.
Agora que há por aí (por esse mundo fora) muito Camelo, com consoante dobrada ou não, lá isso há.
Cordiais cumprimentos,
Meu caro Dr. Rui Baptista:
Felicito-o efusivamente pela exímia verónica, à Manolete, como rematou esta inofensiva e faceta diatribe onomástica! JCN
Parabéns, Rui Baptista, deve estar muito orgulhoso por defender um homem que pouco antes de morrer chamou Salazar de santo.
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