sexta-feira, 31 de outubro de 2008
OS PRIMÓRDIOS DA TSF E O INSTITUTO DE COIMBRA
Artigo escrito em colaboração com António José Leonardo e Décio Ruivo Martins e parte de um trabalho maior sobre a história da telegrafia eléctrica em Portugal vista nas páginas de "O Instituto", jornal da Academia coimbrã (na foto os aviadores Sacadura Cabral e Gago Coutinho):
A telegrafia sem fios (TSF) interessou bastante os sócios do Instituto de Coimbra (IC), Academia ligada à Universidade de Coimbra, na viragem do século XIX para o XX. Os avanços efectuados na TSF, graças ao sistema patenteado em 1896 pelo físico italiano Guglielmo Marconi (1874-1937), mereceram particular atenção por parte do Professor Álvaro José da Silva Basto (1873-1924), catedrático da Faculdade de Filosofia (a Faculdade de Ciências só surgiria com a República) e sócio do IC, que publicou em 1903 um artigo em várias partes intitulado Os fenómenos e as disposições experimentais de telegrafia sem fios. A actividade deste académico abrangeu as mais diversas áreas da ciência. Licenciou-se em Matemática em 1895 com uma dissertação sobre geóides, abordando no acto de conclusões magnas a equação de Laplace; a sua dissertação de licenciatura em Filosofia, dois anos depois, teve como tema os Índices cefálicos dos portugueses e, no acto de conclusões magnas, abordou os Raios X de Roentgen. Tendo-se doutorado por duas Faculdades, de Filosofia e de Matemática, concorreu no mesmo ano ao magistério superior com um trabalho sobre a Teoria da dissociação electrolítica. Em 1902, foi nomeado lente catedrático de Mineralogia e, no ano seguinte, assumiu a docência da cadeira de Química Orgânica até 1906, ano em que iniciou o ensino da cadeira de Química Analítica, que manteve até à morte. Foi Director do Laboratório de Química em 1911, quando foi encarregue pela sua Faculdade efectuar uma viagem científica a várias escolas europeias.
No seu artigo de 1903 em O Instituto Silva Basto descrevia sistemas de telegrafia por indução electromagnética. Referiu-se aí à inovação de Marconi para aumentar a distância de transmissão: a substituição das lâminas metálicas por um fio vertical, com a extremidade inferior ligada ao solo (antena). A capacidade de recepção do sinal estava intimamente dependente das características de uma peça chamada coesor de Branly, nomeadamente do seu tamanho, da pressão a que estava sujeita a limalha, dos metais usados, etc. Este foi sofrendo sucessivas alterações e aperfeiçoamentos, surgindo um tipo de coesores que não necessitavam de nenhuma pancada para regressarem ao estado inicial, contando para isso com uma pequena gota de mercúrio que dilatava, quando electrizada pela radiação, e regressava ao tamanho inicial logo que a carga eléctrica se descarregasse por contacto nos eléctrodos.
Um português esteve envolvido nesta tarefa, desenvolvendo uma melhoria do aparelho de Branly (do nome do físico francês Édouard Branly, 1844-1940), que patenteou em 30 de Junho de 1900. Tratou-se do Almirante Carlos Viegas Gago Coutinho (1869-1959), que ficaria conhecido pela primeira travessia aérea do Atlântico Sul, realizada em 1922, com Sacadura Cabral, entre Lisboa e o Rio de Janeiro. Este militar e sócio do IC sempre foi um apaixonado pela ciência, tendo sido incluído por Sousa Viterbo na sua lista de inventores portugueses publicada n’ O Instituto em 1902. Contudo, Gago Coutinho não obteve prioridade na sua invenção. O Diário de Notícias de 19 de Março de 1902 descrevia um novo aparelho, exposto nas páginas da Nature, em que Branly substituía a limalha do seu dispositivo original por contactos de agulhas de aço, cujos vestígios invisíveis de oxidação são suficientes para impedirem a passagem de corrente eléctrica, o que se assemelhava muito ao rádio-condutor de Gago Coutinho, constituído por uma agulha de cozer e um alfinete de ouro e também muito sensível às ondulações eléctricas. Outros detectores foram sendo desenvolvidos, mas a invenção da válvula viria a traduzir-se no maior avanço tecnológico da TSF nas primeiras décadas do século XX.
Embora os avanços da TSF nessa época tenham feito aumentar muito o seu alcance (nem os obstáculos e elevações do terreno, nem as condições meteorológicas afectavam a propagação das ondas transmissoras), este ainda tinha vozes críticas que referiam os problemas da sintonização entre emissor e receptor. Alguns detractores do sistema de Marconi geraram, no final do século XIX, o boato de que Marconi seria capaz, com os seus emissores, de detonar paióis de navios. Um outro professor de Coimbra, Vellado Pereira da Fonseca (1873-1903), esclareceu, na sua tese de 1897, onde na parte final já apresentava a invenção de Marconi e discutia várias questões da TSF, que esta situação só seria possível se um ressoador, afinado com o excitador, fizesse parte do material embarcado. Fonseca foi catedrático de Filosofia em Coimbra, sócio do IC e deputado pelo Porto e Penafiel. Dele era de esperar uma brilhante carreira académica e política, mas faleceu em 1903, com apenas 30 anos.
Silva Basto concluía o seu artigo n' O Instituto revelando os últimos resultados e objectivos da TSF. Referiu-se os recentes sucessos de Marconi, nomeadamente a generalização das transmissões transatlânticas entre a estação de Poldhu na Irlanda, e o cabo bretão da Nova Escócia na América, depois do primeiro ensaio realizado em 1901, e a recepção de despachos por Marconi na sua viagem no navio Carlos Alberto, em Agosto de 1902, aos quais não pôde responder em face do pequeno alcance do emissor instalado no barco. Descreveu também um problema ainda sem solução, nomeadamente o aparente efeito prejudicial da luz diurna na transmissão, que era mais eficiente durante a noite. Foi preciso esperar vinte anos para desvendar o mistério: não era a luz do dia a afectar as transmissões, mas sim a reflexão das ondas curtas na ionosfera.
Silva Basto não era um grande adepto da TSF, não a vendo como uma ameaça à telegrafia com fios, embora reconhecendo a sua utilidade nas circunstâncias em que a última não era aplicável, nomeadamente à comunicação entre dois navios e entre um navio e a costa. Seria preciso esperar alguns anos para se assistir ao uso desta tecnologia no salvamento de vidas no mar, como aconteceu no naufrágio do Titanic na noite de 14 de Abril de 1912.
Em Portugal, as primeiras experiências de TSF foram realizadas em Março de 1901, decretando o governo, em 23 de Maio desse ano, o monopólio do estado dos sistemas classificados como telegrafia hertziana, telegrafia etérea ou semelhante. A primeira estação portuguesa de radiotelegrafia iniciou o serviço a 16 de Fevereiro de 1910 no Arsenal da Marinha. A utilização dos aparelhos de Marconi justificou a primeira visita do físico e empresário italiano a Portugal, a 22 de Maio de 1912, durante a qual foi assinado um contrato entre o governo português e a sua empresa para instalar postos radiotelegráficos em Portugal e Cabo Verde. Foi recebido na Sociedade de Geografia de Lisboa, para dar uma conferência, pelo seu presidente Bernardino Machado (1851-1944), um professor também ligado ao IC (foi presidente dessa instituição entre 1896 e 1908), e que foi mais tarde Presidente da República. Marconi, Prémio Nobel da Física de 1909, haveria de regressar a Portugal mais duas vezes, em 1920 e em 1929.
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1 comentário:
Meu caro Professor, pode observar os respectivos desenho de documentação por nós transcrita em
http://gagocoutinho.wordpress.com/2009/09/17/telegrafia-electrica/
Cumprimentos
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