segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Provar uma negativa

Aparentemente provocou alguma perplexidade a minha afirmação, num comentário, de que é um mito científico a ideia de que não podemos "provar negativas". Aqui está um bom artigo de Steven D. Hales para mostrar que se pode provar negativas. Na verdade, o que ele diz é trivial e qualquer filósofo competente que pense nisto por um momento concordará com ele. Claro que há depois muitas complicações quando começarmos a desenvolver as coisas, mas o importante é que é uma ilusão pensar que não se pode provar negativas. Na verdade, se não se pudesse provar negativas não se podia provar que não se podia provar negativas, porque a própria tese em causa é uma negativa. Mas, claro, isto só é óbvio para quem está habituado a pensar filosoficamente. Quem não está habituado vai dizer que isto é um jogo de palavras.

A ideia de que não se pode provar negativas está intimamente relacionada com o verificacionismo, e isto é algo que o Hales não refere. Parece plausível a um cientista que não se pode provar negativas porque não há experiências decisivas que possam provar negativas. Claro que isto é disparatado porque não há experiências decisivas para provar seja o que for: mandamos uma sonda a Marte e ela fotografa água, mas a foto pode ter sido adulterada por qualquer coisa e ser enganadora; a máquina faz uma experiência química e manda o resultado; mas o resultado pode ter sido modificado por qualquer fenómeno físico; etc. Não há experiências cruciais em ciência que possam decidir teorias, e isso qualquer filósofo da ciência sabe, se com experiência crucial se quer dizer uma experiência que elimine a possibilidade lógica de a teoria estar errada. Mas, claro, há experiências cruciais no sentido banal do termo, mais fraco, em que geralmente quando vemos árvores elas existem realmente, apesar de poderem logicamente não existir por estarmos a sonhar ou a alucinar ou etc. Mas se aceitamos provas neste sentido mais fraco -- e devemos aceitá-las porque caso contrário morríamos e não teríamos ciência -- então também temos de aceitar que se pode provar que não há deuses, flogisto ou seja lá o que for. Uma maneira simples de provar uma negativa e mostrar que não temos razão alguma para supor que algo existe. Poderá isso existir? Sim. No mesmíssimo sentido em que quando pensamos que existe uma árvore porque a estamos a ver, podemos estar enganados porque estamos a sonhar ou a alucinar ou etc. 

O mito científico de que não se pode provar uma negativa é muito comum na Internet. Há muitos mitos na Internet, além deste, científicos e outros, porque a partir do momento em que metemos montes de gente à balda, surgem montes de mitos: afirmações que por uma razão ou outra têm tendência para parecer razoáveis à maior parte das pessoas, mas são falsas e ninguém se dá realmente ao tabalho de procurar a verdade cuidadosamente: os debates na Internet são como os debates na televisão (o objectivo não é chegar à verdade, mas destruir o parceiro) e não como os bons debates académicos são quando são bons e nos quais se procura arduamente e sinceramente descobrir a verdade das coisas e não trapacear o parceiro para ganhar... o quê, exactamente? Tolices. 

Uma falácia comum é pensar que as opiniões de um biólogo, por exemplo, têm um peso acrescido quando se trata de questões como a lógica, os fundamentos do conhecimento, deuses, ou política. (Veja-se nos EUA a ideia de saber em quem vão votar os Prémio Nobel, como se as ideias políticas de um Prémio Nobel da física fossem necessariamente melhores do que as de um advogado ou taxista que não ganhou qualquer Prémio Nobel. Chama-se a isto falácia da autoridade deslocada ou imprópria.)

A filosofia é inevitável. Mas começamos a pensar sobre questões fundamentais (o que é o conhecimento? o que é a realidade? que tipos de realidade há? etc.), desatamos a filosofar sem nos darmos conta disso. Acontece que as opiniões de um poeta com respeito a estes temas têm tanta plausibilidade quanto as de um Prémio Nobel em biologia, porque quem trata destes temas malucos são os filósofos e quem não conhece a bibliografia diz inevitavelmente disparates simplistas. Tal como eu tenho uma ideia disparatada e simplista da química. A diferença é que não finjo que tenho ideias interessantes em química. Deixo isso à Palmira, tal como ela deixa a filosofia para mim.

30 comentários:

bg disse...

A questão não e' não se poderem provar afirmações negativas (qualquer afirmação pode ser expressa como uma negação), mas sim de que não se pode provar que algo não existe. Não posso provar que não existem porcos com asas... mas posso, eventualmente, provar que porcos com asas são impossíveis devido a qualquer limitação imposta pela física.

joão boaventura disse...

Se foi possível fazer clones, também um dia os cientistas podem conseguir criar porcos com asas, ainda que rudimentares e que não permitam o voo.

Vamos assistindo aos impossíveis de ontem, convertidos em possíveis amanhã.

Não dizia Bertrand Russell que "Os cientistas esforçam-se por tornar possível o impossível" ?

Por isso os espanhóis, a cada nova descoberta, exclamam:
"Las ciencias adelantan que és una barbaridad".

M disse...

O tema da «prova das negativas» pode estar muito ligado ao verificacionismo, mas é-lhe anterior em largos séculos e volumosos volumes. O post do Desidério devia acrescentar que há um cheirinho de verdade da teoria da «impossibilidade de prova das negativas». É que, quanto à maior parte das afirmações que fazemos no dia-a-dia, é muito mais fácil provar as «positivas» do que as correspondentes «negativas». É mais fácil provar que o João foi assassinado do que provar que não foi assassinado. É mais fácil provar que a Maria pagou ao Joaquim os dez contos que lhe devia, do que provar que nunca os pagou. É mais fácil provar (se for verdade) que a Zulmira disparou contra o João do que provar (se for verdade) que a Zulmira não o fez. Por isto é que há uma tese antiga (também, em rigor, errada, mas útil na maioria dos casos) que diz que, perante um tribunal, o ónus da prova cabe a quem «afirma», e não a quem «nega». (Relevem-me as aspas, são sinal da necessidade de abreviar.)

Ivo Timóteo disse...

Apreciei bastante este post, bravo.

susskind disse...

Nao estou de acordo com o ultimo paragrafo. Um fisico ou um biologo pensa sobre questoes fundamentais sobre a realidade e enfrenta a questao de saber o que e' o conhecimento e como se pode conhecer alguma coisa sobre a realidade. Estes sao temas de interesse geral para um cientista.

Pelo contrario, nao e' evidente que a supercondutividade ou os mecanismos de transcricao dos genes sejam de interesse geral para outros cientistas ou para filosofos. Logo, nao existe uma posicao simetrica como pareces querer sugerir entre muitos temas filosoficos e cientificos.

Por exemplo, qual e' a natureza da realidade e' algo que faz parte inteira da fisica fundamental -quais sao os constituintes ultimos da materia, existem ou a natureza e' constituida por camadas de cebola por ai' abaixo (ou dentro), houve um inicio do tempo, o universo e' finito ou infinito, qual a origem da vida, etc? Tudo questoes que fazerm parte da historia da filosofia, ou nao? O que e' o conhecimento e como podemos conhecer as coisas e' parte inteira da investigacao neuro-biologoca da consciencia. Nao existe uma linha divisoria entre a filosofia e a ciencia.


Talvez nos aqui que fazemos estes comentarios sejamos demasiado burros e ignorantes para tirar partido dessa proximidade e desenvolver algo de interessante. Mas e' um argumento muito fraco esse de utilizar a nossa falta de jeito e esperteza para ilustrar - e como uma justificacao - de uma tese muitissimo discutivel.

A plausibilidade da argumentacao sobre qualquer assunto - seja filosofico ou cientifico - baseia-se na inteligencia, criterio, conhecimentos e na profundidade que alguem dedicou ao assunto em questao. Provavelmente, torna-se cada vez mais dificil reunir todas estas condicoes numa unica pessoa e nao e' dificil imaginar que existem questoes (filosoficas) nas quais os filosofos podem encontrar lacunas nos seus proprios conhecimentos sobre a realidade ... empirica. O mesmo se aplica aos cientistas...

A realidade e a natureza nao se organizam por departamentos universitarios.

susskind disse...

Tenho uma pergunta relacionada com o termo 'provar'. Eu interpreto que provar uma proposicao quer significar que e' possivel mostrar que a proposicao e' verdadeira. Sem ambiguidade, sem incerteza. Isto seria provar no sentido forte.

1) em matematica, pode-se provar negativas (ou positivas), certo?
Nao existe solucao regular para uma dada equacao diferencial,por exemplo. Posso, em geral, provar teoremas.

2) o que e' que se quer dizer com
provar proposicoes sobre a realidade empirica? suponho que provar, neste caso, tem sempre um significado muito mais fraco, no sentido que todo o conhecimento sobre a realidade empirica e' conjectural e a minha confianca nesse conhecimento e' baseada na minha experiencia prevcia que me permite atribuir diferentes 'graus de probabilidade' (sem pretensao de rigor) a diferentes tipos de proposicao.

Em conclusao, nao e' possivel provar no sentido forte (o da demonstracao matematica) nenhuma proposicao sobre a realidade empirica. Estamos de acordo?

Anónimo disse...

Nos meus debates internéticos sobre religião quando se chegava à questão "Deus existe?" quem respondia "Não existe!" caia sempre num impasse pois exigia que eu provasse o contrário, isto é, que Deus existia.

Invariavavalmente, os debates acabavam sempre numa enorme gritaria (também por culpa minha que não sou nenhum anjinho) sem que alguém conseguisse argumentar coisa alguma.

Finalmente vejo alguém afirmar que é possível encontrar argumentos para a não existência de Deus! Eu considero isto um autêntico milagre!

LA disse...

"porque quem trata destes temas malucos são os filósofos"
Temas malucos?! Não parecem assim tão malucos, parecem-me normais.
Essa coisa de que se pode provar uma negativa não é assim tão difícil de perceber, não vamos elevar isso a um estrato tão elevado.
Será que se nota aqui um bocado de dor de cotovelo com a dificuldade da ciência?
Parece. É que uma coisa é ir lendo sobre filosofia actual e outra coisa é ler sobre física quântica, exigem diferentes preparações.
É exactamente por isso que aparecem poetas e cientistas a mandar palpites sobre a filosofia mas nenhum filósofo (ou quase nenhum) manda palpites sobre o bosão de Higgs.
É tão chato a filosofia não ser assim TÃO importante, não é?

Gostei da boca sobre os votos dos prémios nobel, que também já passaram por este blogue.

Anónimo disse...

la

Por acaso a tua referência sobre o bosão de Higgs é muito interessante. Ainda ontem troquei uns mails com um físico sobre o bosão. Pedi que ele mo explicasse em linguagem para sargentos.

Depois de 17 mails perguntei-lhe: então vcs cientistas não nos andaram a vender que o Lhc era para descobrir o princípio de tudo? Resposta: descobrir o princípio de tudo isso é para filósofos.

É a vitória da filosofia sobre a física quântica, la. Ainda por cima não há astrólogo que não use a física quântica para fazer futurologia. Ainda não ouviste falar em astrologia filosófica, pois não? Vais ouvir no futuro mas por agora não ouves. Mas dás pontapés na física quântica em cada esquina.

Fernando Dias disse...

Muito interessante.

De forma indirecta o Desidério remete-me para a antinomia essência/ideia.
Claro que há grandes diferenças entre ideias triviais que podem estar erradas e ideias não-triviais que raramente estão erradas.

As ideias não-triviais são como se estivessem num estado de fusão com o infinito (o cadáver projecta-se no infinito do mundo e reciprocamente o infinito do mundo reflui sobre o cadáver) de tal modo que não é possível dizer o que pertence ao cadáver e o que pertence ao infinito.

O cadáver é compacto, é substância. Mas é ilusória a sua essência quando sabemos que a caminho do infinito ele se dissolve em nada. Pelo contrário, a ideia (ou a alma), insubstancial, ilusoriamente uma coisa negativa, perdura na eternidade. Mas quando queremos captar a alma por meio de palavras ela dissolve-se. Portanto é uma negativa. E o cadáver a caminho do infinito também se dissolve. Também é uma negativa.

perspectiva disse...

Desidério Murcho diz:

"...então também temos de aceitar que se pode provar que não há deuses, flogisto ou seja lá o que for"

A questão não é saber se há deuses, na medida em que se existem vários deuses, isso significa que nenhum deles é realmente Deus.

A questão também não é saber se se pode provar a existência do Deus da Bíblia, na medida em que Deus é espírito, não podendo ser observado nem sujeito a experiências. Era o que faltava...


A questão é saber se, apesar de tudo, se pode corroborar (não provar) a existência de Deus a partir de observações científicas e históricas.

E aí, a resposta é claramente positiva.

A presença e os efeitos de Deus são perfeitamente detectáveis.

1. O Universo é um efeito da presença de Deus, já que ele não tem condições para se produzir a si próprio. Ele teve um princípio, estando hoje a perder energia e complexidade. Por isso, ele necessitou de uma causa que lhe tenha fornecido energia e ordem no princípio, e que não tenha tido ela mesmo um princípio.

Essa causa só pode ser um Deus todo poderoso, racional e eterno, tal como a Bíblia ensina.

2. O Universo encontra-se estruturado de acordo com leis físicas, as chamadas leis naturais. Por isso, ele pode ser estudado racionalmente.

A ordem e a racionalidade inerentes ao Universo, juntamente com a sua extrema complexidade, permitem-nos corroborar a racionalidade, a omnisciência e a omnipotência de Deus.

As leis da natureza são descobertas pelos cientistas, mas foram criadas por Deus. Ele é o legislador.

3) O Universo encontra-se plenamente sintonizado para a vida, falando os cientistas da existência de centenas de coincidências antrópicas. É com base nessa observação que se fala também no princípio antrópico.

Também isso é inteiramente consistente com a presença e com os efeitos de um Deus vivo que criou o Universo para manifestar a sua glória e para permitir a vida do ser humano criado à sua imagem e semelhança.

A sintonia do Universo para a vida só é um mistério para quem não conhece o Deus da Bíblia.

4) O Código de DNA contém informação codificada, especifidando a produção,a reprodução, o funcionamento e a adaptação dos seres vivos, em quantidade e qualidade que transcendem tudo o que o ser humano é capaz de compreender e imitar.

Não existe informação sem inteligência.Não existe código sem inteligência.

A vida só é possível graças à existência simultânea de informação codificada e do mecanismo necessário para a sua transcrição, tradução e execução.

A vida é um efeito visível de Deus.

De resto, não se conhece qualquer explicação naturalista para a origem da vida ou de informação codificada. A vida nunca poderia surgir por processos naturalisticos, na medida em que ela necessita de um ingrediente não naturalistico: informação codificada.

A existência de quantidades inabarcáveis de informação codificada no DNA, altamente complexa e especializada, é inteiramente consistente com a existência de um Deus omnipotente e omnisciente que se apresenta como PALAVRA.

5) Deus apresenta-se como Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. Deus não é uma abstracção impessoal. Ele é um Deus pessoal. Ele pode ser associado a pessoas e a lugares determinados. Através da sua aliança com o Povo de Israel ele marcou presença na História. Apesar de ser um povo pequeno e relativamente insignificante, os judeus sempre tiveram um peso muito mais do que proporcional ao seu número na história humana. Também foram aqueles que mais vezes sentiram a ameaça do extermínio. Sentiram-na com Hitler e sentem-na hoje com o Presidente do Irão. Ele mantém toda a sua vitalidade.

As promessas de Deus ao seu povo são eternas. Se Hitler tivesse conseguido a pretendida "solução final" para os judeus, então teríamos que duvidar das promessas de Deus.

Mas Hitler suicidou-se em Berlim e os judeus viram reconhecido o seu Estado na Palestina depois de quase 2000 anos de exílio.

6) Jesus Cristo, Deus connosco, foi visto por muitas pessoas, as quais presenciaram e registaram os seus milagres e a sua ressurreição.

Os seus companheiros registaram que Jesus era todo o poderoso e que a natureza obedecia prontamente às suas ordens.

Ele curava cegos, ressuscitava mortos, transformava a água em vinho, andava sobre as águas, acalmava as tempestades, etc. Jesus mostrou as suas qualidades de Criador.

Isso foi visto e registado, podendo ser investigado historicamente.

Infelizmente para os evolucionistas, o Big Bang nunca foi observada por ninguém.

A origem do sistema solar a partir de uma nebulosa tão pouco foi observada.

A origem casual da vida, também nunca foi observada ou explicada. Também o hipotético ancestral comum nunca foi visto ou descrito.


Também a transformação de uma espécie menos complexa noutra mais complexa também não foi vista.

Curiosamente, alguns evolucionistas dizem que essa tranformação é demasiado lenta para poder ser observada em laboratório e demasiado rápida para ser observada no registo fóssil.

O certo é que ela nunca foi nem pode ser observada.


Tanto basta para mostrar que a teoria da evolução é pura ilusão naturalista.

Mesmo de acordo com critérios empíricos a mensagem bíblica é bastante mais sólida do que a evolução naturalista das espécies, que nunca foi observada por ninguém, apesar de ser postulada por muitos.


Se contarmos com Deus nos nossos pensamentos à cerca da história do Universo e da Vida, podemos tirar algumas conclusões interessantes.

Podemos saber que a teoria do Big Bang não funciona, porque viola a lei da conservação da energia e porque o Universo é constituído por informação, cuja origem a matéria e a energia não explicam.

Podemos saber que a vida nunca pode ter surgido por acaso, na medida em que ela depende da codificação das instruções necessárias à sua especificação e reprodução e isso só uma inteligência pode fazer. Não existe informação codificada sem inteligência.

Podemos saber que o suposto “junk” DNA afinal não é junk, portador de alegados vestígios da evolução, mas antes contém múltiplos níveis de informação codificada, com uma complexidade inimaginável e inabarcável pela mente humana.

Podemos saber que afinal a Lucy é, na realidade, um verdadeiro macaco e que os Neandertais são, afinal, verdadeiros seres humanos.

Podemos saber que a coluna geológica e os fósseis não retratam a evolução naturalista ao longo de millhões de anos, mas uma catástrofe global, como a Bíblia ensina.

Podemos saber que não somos um acidente cósmico, mas fomos criados intencionalmente por Deus.

Podemos saber que depois da morte física temos a possibilidade de viver eternamente com o Criador, com um corpo incorruptível. ou de morrer eternamente sem Ele.

Podemos saber que, havendo um único Deus, realmente não existem deuses.

Indefinível disse...

Peço desculpa pela reacção, mas este post, ou melhor, a sua parte final, irritou-me profundamente.

Considero que esta forma de snobismo associativista não faz qualquer sentido. Qualquer pessoa pode entender de filosofia ou de outra coisa qualquer, com ou sem canudo. A universidade e os sistemas educativos em geral servem para nos proporcionar um estudo acompanhado de determinadas matérias que seriam difíceis de aprender sozinhos. Mas se o conseguirmos, em que somos menos qualificados do que alguém que cursou determinada matéria numa universidade? Em nada. Um bom estudante "amador" pode saber mais sobre um assunto do que um estudante "profissional" que gasta as suas horas de estudo em ressacas.

E, na verdade, a bibliografia conhecida é também sobrestimada neste discurso. E é algo que se esperaria vindo da área da Filosofia, mas não do Desidério. Aliás, eu também tenho formação em Filosofia, e não defendo de forma alguma este princípio.

Mas, como há algum tempo ouvi alguém dizer, se um filósofo entra num congresso de Física sem ter lido Heisenberg, a sua opinião ainda assim será ouvida. Mas se um físico aparecer num congresso de Filosofia e admitir nunca ter lido Platão, é fuzilado.

Mesmo num blog científico, e sendo o Desidério tão promotor da abertura interdisciplinar, continua a defender este mito associativista da bibliografia.
Acredito que as ideias, sobretudo na área da Filosofia, tal como a sua discussão, podem e devem ser fundamentadas em conhecimentos passados. Aliás, até convém que o sejam. Mas insistir que isto da Filosofia (a sério) está vedado aos Filósofos (a sério) parece-me ignorar a principal fonte bibliográfica, que é a História da Humanidade.

A generalidade dos grandes pensadores e mesmo filósofos não tinha formação técnica em Filosofia. E um curso de Filosofia não cria filósofos: cria professores de Filosofia... Lerem-se 50 livros por mês é mais importante para um professor do que para um Filósofo. Pelo menos um Filósofo a sério.

Luisa disse...

também só um comentário à parte final - no geral concordo com o post e gostei do texto do Steven Hales: acho que falar de um dado assunto, ter e expôr ideias sobre ele, qualquer que ele seja, não é uma prerrogativa dos especialistas na matéria (não será essa prerrogativa também uma falácia da autoridade deslocada?...). TAmbém não acho que as pessoas devam andar para aí a expôr-se ao ridículo de desfiarem disparates a torto e a direito porque acham que os outros têm a obrigação de os ouvir - e às vezes têm mesmo... - mas lá porque alguém fala de uma área em que não é especialista não quer dizer que não tenha ideias válidas e as formule correctamente, podendo até trazer algo de novo e refrescante a uma discussão que, quando se repete entre os mesmos interlocutores ou as mesmas escolas e linhas de pensamento espcializado numa dada matéria, acabam muitas vezes em círculos viciosos e falsas verdades impostas por repetição. Não é este blog precisamente sobre a mistura das ideias e das ciências? Ou afinal vocês têm isto muito bem seccionadinho e cada um só fala daquilo em que não tem medo de se enganar ou ser contestado?

Barba Rija disse...

Agradeço o post, Desidério, e concordo absolutamente com ele. Sei bem que o escreveste pelo menos em parte por causa de um comentário meu. No entanto, não me compreendeste. Foste tu que colocaste palavras na minha boca a dizer que provar negativas é impossível. Desafio-te a encontrar um comentário meu onde disse tamanha barbaridade!

Dizes também que o meu comportamento não dignifica o blog. Penso que "straw mans" não te dignificam.

...desatamos a filosofar sem nos darmos conta disso...

Bem, tomas todos por parvos, definitivamente! Olha, lá porque discordam contigo num ponto ou noutro, não significa que sejam necessariamente burros, okay?

Barba Rija disse...

Guardo também, como comentadores prévios, as minhas reservações sobre essa compartimentação do conhecimento. Embora reconheça as autoridades no seu domínio, isso não é nunca um "jail free card", mas pelo contrário, um reconhecimento de como determinada pessoa se debruçou tanto sobre esse assunto que levamos muito mais a sério o seu juízo do que se fosse outra pessoa qualquer. Não a excusa de ter de justificar nos meios formais aquilo em que acredita (obviamente que os blogs não são meios formais), nem evita que pessoas terceiras não possam conceber opiniões contrastantes e contrárias.

É esta mesma possibilidade que me permite concluir que toda a Teologia é treta, assim como as teorias da Astrologia.

Parece-me que o Desidério já entrou num caminho de auto-defesa bastante acentuado, e isto só consigo justificar por causa desta passagem da mesma página que ele referencia:

Though empiricists will disagree, others will embrace BonJour's claim that philosophy must be a priori “if it has any intellectual standing at all”

João disse...

Caro Desidério:

acreditas realmente nisto?

"Tanto basta para mostrar que a teoria da evolução é pura ilusão naturalista."

Se realmente acreditas podes desenvolver a ideia?

E se podes desenvolver a ideia não admites que podes ter ultrapassado os teus limites?

Gostava de lembrar que a Teoria da Evolução é das teorias mais bem provadas de sempre. (não não está provada até ao infinito, mas penso que estamos de acordo que tal não é nesseçario).
´
So quero saber.

Desidério Murcho disse...

Obrigado pelos muitos comentários!

Esclareço algumas coisas: não está implícito no meu post a ideia de que as disciplinas devam ser estanques. Sempre defendi que as disciplinas são meros artifícios académicos, que resultam da nossa estupidez: somos incapazes de dominar ao mesmo tempo física, biologia, filosofia, história, musicologia, etc., e por isso dividimos as coisas.

Também não está implícito nem é sugerido no meu texto que só quem tem qualificações académicas pode ser filósofo; isso seria particularmente tonto da minha parte dado que apesar de Kant, por exemplo, ter esse tipo de qualificação, Descartes não as tinha, nem Hume, assim como tantos outros. Apesar de ser verdade que hoje em dia é raro ou impossível encontrar filósofos que não tenham formação académica, pela mesma razão de que já não se encontram físicos ou biólogos amadores que façam trabalhos pioneiros fora das academias: é que a complexidade crescente das coisas torna a dedicação exclusiva cada vez mais necessária e a integração numa comunidade que nos corrige os erros e com a qual trabalhamos em rede cada vez mais imprescindível.

O sentido da parte final do meu post é este: é inevitável entrar em temas filosóficos mal se começa a pensar sobre alguns temas (será o aborto moralmente permissível? O que é a realidade? O que podemos realmente conhecer? O que é uma prova? Etc.). Claro que toda a gente tem a liberdade depois de dizer o que muito bem lhe apetecer sobre tais temas. Mas as pessoas precisam de saber que esses são precisamente os temas sobre os quais os filósofos trabalham e acerca dos quais há excelente bibliografia. Se ignorarmos isso, estaremos apenas a repetir ideias que já foram exploradas. Seria como eu estar a tentar sozinho descobrir qual é a composição da atmosfera de Marte. É tolo, apenas. Mas tenho a liberdade de o fazer, claro.

Por outro lado, é preciso estudar filosofia para ter o género de habilidades ou competências necessárias para fazer filosofia, tal como é preciso estudar piano para saber ter o género de habilidades ou competências necessárias para tocar piano. Traçar distinções relevantes, argumentar de modo sofisticado, teorizar cuidadosamente, ver os pontos fracos das teorias, etc., são habilidades ou competências que sem formação filosófica explícita — académica ou não, isso é irrelevante — as pessoas não adquirem. Sem essa formação, a confusão é constante.

Veja-se por exemplo o caso de “prova”: o Miguel já percebeu que tem de haver outra noção mais fraca de prova, caso contrário só em lógica e matemática haveria provas. Por outro lado, tem também a noção de que o conhecimento científico é provisório. Mas logo aqui mete água. Não é o conhecimento científico que é provisório. Nenhum conhecimento é provisório, porque o conhecimento é factivo. O que é provisório é a crença científica. Eu posso explicar estas coisas todas longamente. Mas quando eu entro em modo explicativo estou a dar aulas, não estou a discutir de igual para igual. Tal como o Miguel me pode dar aulas de biologia ou lá o que é que é a especialidade dele.

A questão é só esta: se não estudarmos filosofia estaremos sempre a um nível elementar, tendo de esclarecer coisas elementares, e nunca poderemos avançar. Eu não tenho de explicar a um aluno bem formado de filosofia que o conhecimento é factivo; isso para ele é banal, e ele é então capaz de ver sozinho que quando as pessoas dizem que o conhecimento científico é provisório é o mesmo do que as pessoas que não sabem física e confundem peso com massa. Em filosofia não temos o género de resultados tecnológicos que dão prestígio às ciências empíricas; mas temos resultados negativos, no sentido de termos afastado ao longo do tempo imensas confusões que qualquer pessoa faz quase necessariamente quando começa a filosofar sozinha. Se estudarmos filosofia, evitamos essas confusões.

Uma nota final: um comentador parece ter sugerido que eu defenderia uma posição elitista, digamos, em que a filosofia seria reservada apenas a alguns. Que a filosofia é reservada apenas a alguns parece-me óbvio, tal como a pintura ou a serralharia, pelo simples facto de que a maior parte das pessoas não se interessa por qualquer dessas coisas, e tem todo o direito a isso. Mas nenhuma dessas coisas é reservada no sentido em que qualquer pessoa que se interesse por isso pode tornar-se pintor ou filósofo ou serralheiro. O que não pode é tornar-se qualquer dessas coisas à balda, sem preparação, sem estudo sério, sem formação adequada.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Concordo com o Barba Rija e o João, em termos gerais, quando denunciam a estratégia de "auto-defesa".

Ironicamente, no actual momento de crise financeira, afirmar que a filosofia é especulação, significa que produz "dinheiro falso". E, como isto, não pretendo negar o papel da especulação teórica na vida em geral, porque essa é uma capacidade humana universal e não pertence a nenhuma disciplina em particular. Apenas pretendo dizer que a Filosofia é um campo de batalha desde a sua origem: Platão caracterizou-a assim, bem como Kant. Sem uma metafilosofia aceite por toda a comunidade filosófica, ninguém pode seriamente falar em nome da Filosofia, mas somente em nome da filosofia praticada pela sua escola de pensamento e, mesmo neste caso, podem surgir divergências internas. Murcho pode ter a sua filiação e defender os seus pontos de vista, desde que reconheça os pontos de vista adversários e saiba discutir, tendo em vista uma busca cooperativa da verdade. Caso contrário, o jogo está viciado e marcado pelo dogmatismo ou mero jogo de palavras.

João disse...

Isso quer dizer que estou readmitido a discutir consigo ou não? Se o fizer vou voltar a ser tratado como antes? Eu cometi excessos, perdi o respeito que lhe devia, mas admiti-o. A conclusão que eu tiro é que só posso argumentar com o Desidério se o Desidéio assim o desejar porque senão vou invariavelmente encontrar-me numa posição de desafio à autoridade em vez de posição de contestação argumentativa. Muitos de nós aqui não temos o vocabulario tecnico e não sabemos tanto como o Desidério sabe. Mas se estamos aqui, é porque queremos saber mais e queremos saber se o que sabemos presta para alguma coisa. Estamos em parte também a por à prova as nossas ideias. O Desidério também é posto à prova, é esse o preço de se assumir como autoridade, e por isso admiro a sua coragem de aqui estar neste Blog de cientistas. Mas penso que se o Desidério aceita o desafio é porque compreende que divulgar e levar o debate em frente é positivo. Eu se quiser continuar a debater só posso faze-lo se o Desidério tiver a paciencia de traduzir o meu portugues para "linguagem filosofica". Queria exclarecer que a posição que eu tenho do significado da autoridade é muito parecida com a sua. Se não houver autoridade então reina uma anarquia e o conhecimento não avança. Se a autoridade for prepotente acaba-se igualmente o avanço. Cabe à autoridade "abrir as portas" a quem tenta debater seriamente. Um divulgador quer fazer isso ou não?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Eis um erro crasso de DM:

"A filosofia é inevitável."

Todos sabemos que a filosofia e a ciência são invenções ocidentais. A esmagadora maioria das sociedades não elaboraram uma filosofia ou uma ciência. Nem grandes civilizações alcançaram o pensamento filosófico. A filosofia não é inevitável. Por exemplo, no nosso tempo, os países árabes e outros adoptam a nossa ciência e tecnologia, mas conservam o seu pensamento religioso, muito avesso à filosofia.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É em pequenos detalhes como este que referi anteriormente que se revela a grandeza ou a pobreza de um filósofo!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Quem conheça a bibliografia filosófica não falaria da inevitabilidade da filosofia, até porque o conceito de inevitabilidade se encontra elaborado nas filosofias que lhe são adversárias. Ele trnsporta consigo toda uma concepção da história avessa ao mero jogo de palavras! Não é uma falácia, é falta de conhecimento e de honestidade intelectual, que faz eco no silêncio do desconhecimento total.

Desidério Murcho disse...

João, quem afirmou essa palermice sobre a teoria da evolução foi outra pessoa e não eu. Claro que a teoria da evolução é uma teoria científica amplamente comprovada, como tantas outras. A única razão para haver quem a conteste é ideológica, nada mais.

Desidério Murcho disse...

João, claro que podemos falar!

Repara aliás numa coisa: a posição de um divulgador é muito complicada. Se eu me limitar a divulgar coisas, não é possível discutir comigo porque eu nunca entro na discussão: em cada caso, limito-me a dizer quem defendeu o quê e como. O que é até parcialmente desonesto porque não conheço toda a bibliografia filosófica relevante para cada área da filosofia que vem à discussão. Mas se eu entro na discussão, as pessoas poderão pensar que estou a defender as ideias da “filosofia”, o que é absurdo porque não há ideias monolíticas em filosofia: diferentes filósofos defendem diferentes teorias. Então, o que eu procuro fazer é insistir mais em pontos que sejam transversais: aspectos acerca dos quais a generalidade dos filósofos que trabalham na área em causa hoje aceitam. No caso do a priori, por exemplo, não é pura e simplesmente verdade que os filósofos pensem todos que não há a priori, e se alguma tendência é discernível na bibliografia é um regresso do a priori, e não o contrário.

Por outro lado, um dos papéis cruciais da filosofia é a análise de argumentos. Se me disseres que acreditas na teoria da cordas porque sonhaste com isso ontem, eu nada tenho de saber sobre a teoria das cordas para argumentar contra ti: porque o argumento é mau, ainda que a teoria das cordas seja boa. O mesmo acontece com o que o Luís e tu mesmo defenderam relativamente ao a priori: pode ser que não haja a priori, mas os argumentos usados por vocês não funcionam (em parte porque se baseiam em confusões terminológicas). Por isso pode parecer que sou mais a favor do a priori do que na verdade sou: o que estou a contestar é os argumentos usados e não a inexistência do a priori em si.

Desidério Murcho disse...

Francisco, a objecção é boa. Se uma pessoa afirma que a filosofia é inevitável, que dizer de todas as muitas civilizações que não fizeram filosofia? Isto parece um contra-exemplo óbvio.

Contudo, não se segue da afirmação de que a filosofia é inevitável que tenhamos de a desenvolver explícita e sofisticadamente como se fez a partir dos gregos antigos. A filosofia é inevitável no sentido em que em todas as pessoas vamos encontrar crenças filosóficas, que elas podem ou não desenvolver explicitamente. Mal as pessoas começam a pensar tropeçam em problemas filosóficos. Podem é não lhes dar qualquer desenvolvimento.

susskind disse...

Desiderio, o problema em parte, pelo menos do meu lado e' estar a falar no teclado e escrever as coisas depressa e sem preocupacoes de rigor ... se estivessemos a falar pessoalmente, a maior parte dos mal entendidos dissipar-se-iam em minutos.

Exemplo: eu sei perfeitamente que o conhecimento e' factivo, embora nao costume utilizar esse termo. Como e' que eu o sei? Simples, vou dar um exemplo para mim familiar e trivial: a teoria de Newton da'-nos uma descricao adequada de muitos fenomenos tais como as orbitas dos planetas e dos satelites. Esse conhecimento nao deixa de ser valido, uma vez adquirido e utilizado com sucesso, continua a se-lo no futuro. Porem a nossa crenca de que a teoria de Newton era a teoria verdadeira sobre o universo terminou com a relatividade. Voila'. Acho que estou a falar do mesmo, e acho que nao meti agua. So' que para duas pessoas de background diferente falarem, tem de existir boa vontade e muita paciencia. ;-)

susskind disse...

"Traçar distinções relevantes, argumentar de modo sofisticado, teorizar cuidadosamente, ver os pontos fracos das teorias, etc., são habilidades ou competências que sem formação filosófica explícita "

Indeed .... como e' que os fisicos criaram a fisica, os biologos criaram a biologia, e os outros cientista criaram la' o que e' a ciencia deles, sem fazer isso que o Desiderio esta' dizer que eles nao sabem fazer?

João disse...

"Então, o que eu procuro fazer é insistir mais em pontos que sejam transversais: aspectos acerca dos quais a generalidade dos filósofos que trabalham na área em causa hoje aceitam" - absolutamente de acordo, mas acho de qualquer modo aceitavel que dez a tua opinião, desde que refiras o que pensa a maioria, num dado momento. Certo?

Quanto ao à priori, em termos biologicos proponho que a questão se ponha assim (usando um modelo darwiniano): ao criar novas synapses e novos circuitos neuronais de que modo uns são preferidos em relação a outros. Outros circuitos ja existentes num dado momento podem ser usados para reforçar a viabilidade dos novos, ou é sempre preciso circuitos neuronais com origem nos orgãos dos sentidos para que haja informação suficiente para causar o uso ou desuso desse novo circuito. É isso?

João disse...

Se é não tenho a minima duvida que acontece. A questão é com que frequencia.

João disse...

O problema miguel é que os bons cientistas são bons filosofos e os bons filosofos são bons cientistas... Eles é que não sabem...

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Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação e...